O nascimento da ética e sua aplicação ao Brasil de hoje
Por Sebastião Nunes
Sócrates, o mais sábio dos homens, passeava pelado nas praias do mar Jônico. Sempre que se afastava dos discípulos, buscava refúgio num sítio de amigos nos arredores de Delfos, às margens do Golfo de Corinto. Ali dispunha de tudo o que precisava: solidão e beleza. Mergulhado nelas como um caramujo em sua concha, devassava a própria mente, em busca de resposta para perguntas sem resposta: “quem sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, “qual é o sentido da vida?”.
Se eu fosse um romancista antigo, descreveria o mar batendo nas pedras e o reflexo do sol nas gotas reluzentes. Mas não sou romancista. Se eu fosse cineasta, filmaria o horizonte distante com nuvens douradas movendo-se lentamente. Mas não sou cineasta.
Foi então que Sócrates saltou de uma rocha e mergulhou no mar.
SARDINHA, GAROUPA, TUBARÃO
Praticante de ioga, Sócrates aprendera todas as técnicas respiratórias, inclusive a mais difícil delas: a de suspender a respiração e continuar vivo. Deixou, pois, de respirar, passando a vistoriar o fundo do mar.
Bem em frente, um cardume de sardinhas nadava velozmente. Uma delas, grande e gorda, provavelmente muito velha, ficou para trás, por mais que se esforçasse. Quando estava completamente só, surgiu uma garoupa de boca aberta.
Apavorada, a velha sardinha ainda conseguiu dizer:
– Não me devore, senhora garoupa, que salvarei sua vida!
– Você não me engana, sua gorducha! Prepare-se pra ser comida!
A sardinha deu um drible de corpo na garoupa, entrou numa gruta estreita e viu, satisfeita da vida, a garoupa ser engolida por um tubarão-martelo, que lambeu os beiços e se afastou arrotando.
Deslizando suavemente entre algas azuis e roxas, Sócrates concluiu que vira um espetáculo de comportamento digno da espécie humana. A sardinha, por ser vingativa. A garoupa, por não acreditar na sardinha. O tubarão, por lamber os beiços e arrotar.
– Humano, demasiado humano – concluiu Sócrates.
PEIXE-VOADOR, ROBALO, BALEIA
Continuando o passeio subaquático, viu Sócrates novo cardume, desta vez de peixes-voadores, que mergulhavam e saltavam, saltavam e mergulhavam. Assim se divertiam até que surgiu um enorme robalo e – zás! – engoliu meia dúzia dos distraídos e pachorrentos brincalhões. Mal se afastou, porém, satisfeito com a refeição, surgiu imensa baleia-azul de boca aberta.
Em vez de fugir, o robalo continuou seu passeio pós-almoço, abanando o rabo com desdém. Ainda por cima, muito do zombeteiro, arengou:
– Qual é, titia, pensando em me comer? Com essa boquinha? Pode desistir.
Não fosse por isso. Quando lembrou que tinha a garganta estreita, que só permitia a passagem de seres pequetitos, a baleia ficou irritadíssima e, investindo contra o robalo, deu-lhe tal cabeçada que o jogou contra as pedras e o transformou em patê.
Deslizando lentamente entre algas vermelhas e azuis, Sócrates concluiu que vira novo exemplo de comportamento tipicamente humano. Os peixes-voadores, porque foram ingênuos e se deixaram comer. O robalo, por menosprezar a baleia, julgando-se superior. A baleia, por se irritar a ponto de transformar em patê o robalo.
– Humano, demasiado humano – deduziu Sócrates.
ANÊMONA, TARTARUGA, POLVO
De respiração ainda suspensa, Sócrates continuou sua viagem, passando junto a belíssima colônia de anêmonas-do-mar, que capturavam minúsculos indivíduos com seus tentáculos em festa, sem se importarem com os gemidos das criaturinhas.
Estavam elas se banqueteando em paz e boa ordem quando surgiu enorme tartaruga-de-pente que, sem pedir licença, passou a mastigar os tentáculos das anêmonas. Espantadas e doloridas, reclamaram elas:
– Que diabo, dona tartaruga! Não se pode mais almoçar em paz?
Sem ligar a mínima, continuou sua mastigação a tartaruga, quando sentiu na carapaça rudes cócegas. Virou-se, também irritada com a interrupção, quando deparou com a cabeçorra de enormíssimo polvo, que começava a enlaçá-la por sua vez, com bamboleantes tentáculos.
– Ora, senhor polvo, não vê que está quebrando importante elo da cadeia alimentar submarina? Os indivíduos pequetitos comem porcaria, as anêmonas comem os pequetitos e eu, por minha vez, como as anêmonas. Isso não lhe basta? Por que não vai procurar alguém de seu tamanho, um tubarão, por exemplo?
Mas o polvo não estava nem aí para a tal de cadeia alimentar. E assim, sem se deter em comentários supérfluos, apertou a tartaruga até que ela botou a língua de fora, os bofes para fora e a alma entregou a Deus.
Deslizando mansamente entre algas roxas e vermelhas, Sócrates inferiu que vira novo espetáculo de comportamento tipicamente humano. As anêmonas, por não se preocuparem com a dor dos pequetitos. A tartaruga, por se preocupar apenas com a cadeia alimentar abaixo dela, mas não acima. E o polvo, por sua vez, ao se preocupar apenas em encher a pança.
– Humano, demasiado humano – suspirou Sócrates.
SÓCRATES, PLATÃO E O BRASIL
Saiu nosso filósofo do mar, penteou os cabelos e decidiu que era tempo de voltar para Atenas. Chegando, dirigiu-se imediatamente à ágora, onde encontrou o desocupado Platão, que perguntou, como sempre, o que tinha aprendido de novo.
– Quase nada, meu caro Platão. Apenas que ética e egoísmo são a mesma coisa.
Foi assim que Sócrates legou à elite branca brasileira o conceito de que ética é a maneira mais democrática de continuar enchendo a pança. (Fonte: aqui).
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