Mariano.
Por Deus, pela família, por Cunha
Por Leonardo Sakamoto
Você pode ser a favor ou contra o impeachment de Dilma Rousseff, não importa.
Mas se tem, pelo menos, dois neurônios funcionais irá concordar que grande parte da Câmara dos Deputados é composta de semoventes incapazes de demonstrar empatia, quiçá exercerem aquela que deveria ser a mais nobre das atividades, que é a política. Pelo contrário, consideram-se a si mesmos o centro do universo e seus interesses como os interesses do Estado. Se multiplicassem o seu bom senso pelo número de conchinhas do mar e elevassem o resultado ao número de estrelinhas do céu, eles ainda não veriam problema algum em agradecer ao seu poodle querido no microfone de votação.
Pois o que leva um mamífero, cuja imagem está sendo transmitida para o Brasil e o mundo (o deputado, não o poodle), em um dos momentos mais importantes de sua vida política, achar que está no Show da Xuxa e mandar um beijo para a família? Citar o nome de esposa, dos filhos, do gato pelado, para justificar uma posição que vai ditar os destinos da nação pelas próximas décadas? Teve gente que fez até versinho. VERSINHO! Sem contar, as declarações de afeto: “Leliane, meu amor, Lorenzo, nosso filho, esse voto…'' Eu, que não creio, clamava a Deus que me sacrificasse. Mas, como podem ver, ele não me ouviu.
E sabe por que não ouviu? Porque Deus estava chapado. Depois de ver, com os próprios olhos, dezenas de votos serem pronunciados em seu nome por pessoas de reputação tão ilibada, tomou uma caixa de Frontal e apagou. Dizem os querubins que ele pediu para ser acordado apenas quando o governo Temer acabar – se é que vai acabar. Ou seja, estamos por nossa conta – e depois me perguntam porque sou ateu. Nem o capeta dá para acionar neste momento porque ele já disse que não se mete com Eduardo Cunha. Tem medo. Vai saber quantos deputados couberam no seu bolso!
Toda vez que algum parlamentar ousava tecer críticas ao presidente da Câmara dos Deputados, réu em ação penal pela Lava Jato, sofria bullying de sua claque no plenário. Se o Brasil não fosse uma republiqueta, ele estaria desqualificado para conduzir uma sessão de impeachment presidencial. Mas o Brasil é uma republiqueta e, por isso, não só estava lá como foi, diversas vezes, aplaudido. Cunha foi o homem certo na hora certa, prestando os favores corretos para os grupos corretos. Talvez por isso, ontem mesmo no plenário, já se debatia uma anistia a ele – que, olha que bonito, pode vir a substituir Temer quando este precisar viajar para fora do país. O Brasil não é para principiantes. Chupa que a cana é doce, roteirista de House of Cards!
E a galera que citava os “dez milhões de empregos perdidos''? A incompetência deste governo, que nos jogou em uma situação econômica bizarra, deve ser lembrada até o final dos tempos, bem como sua tentativa de rifar os direitos de trabalhadores para fugir da crise. Mas considerando que o projeto de lei que amplia a terceirização legal, precarizando ainda mais a vida dos trabalhadores (leia mais aqui), está para ser votado e, se for, será aprovado, só posso crer que esses deputados estavam untados de óleo de peroba ao dar essas declarações.
Vamos ao ponto: raríssimos foram os casos em que parlamentares fizeram referência à questão dos decretos orçamentários usados como justificativa – insuficiente, diga-se de passagem – para dizer que Dilma (uma péssima, terrível, horrível, medonha presidente) havia cometido crime de responsabilidade. A bem da verdade, boa parte dos parlamentares não consegue explicar o que são decretos orçamentários, nem o que é uma “pedalada''. Não duvido que usem a Constituição como peso de papel ou rascunho em seus gabinetes.
Pouco depois de parabenizar Cunha, homenagear o açougueiro e torturador Brilhante Ustra (que se houvesse inferno, estaria tostando lá, neste momento) e cravar a ignomínia “perderam em 1964, perderam em 2016″, Jair Bolsonaro foi ovacionado nas redes sociais por aquela legião de pessoas que cabulava aula de história ou pouco se importa com a dignidade alheia. Bolsonaro foi um dos principais beneficiados por todo o (furdunço) do ano passado – ao lado de Michel Temer, claro. De congressista caricatural, ele já tem 8% do eleitorado. Em 2018, como estimei aqui, vai partir de índices de 15% para a campanha presidencial.
Donald Trump ocupou um espaço de porta-voz de comentaristas de redes sociais nos Estados Unidos, público insatisfeito pelo fato de que seus queridos preconceitos estão sendo atacados. Bolsonaro tenta o mesmo, sem o mesmo charme ou conteúdo.
Ambos dizem que essa parcela não precisa se sentir dessa forma, nem se adaptar. Basta lutar contra a ditadura do “politicamente correto'' – o que é outro grande equívoco. Pois se essa ditadura existisse, não haveria sem-tetos, gente passando fome, mulheres negras ganhando menos do que homens brancos, nem pessoas mortas por amar alguém do seu jeito. Ambos os políticos têm o aparente frescor da novidade – mesmo que sua narrativa esteja no poder desde que os brancos chegaram ao continente americano.
Como os principais partidos políticos não se esforçam para garantir mais participação popular, o governo e a oposição derraparam em dar respostas para a retomada do crescimento econômico e a vida do brasileiro (principalmente o mais pobre) foi piorando a olhos vistos, fomos assistindo ao crescimento de discursos que bradam que a democracia é questionável. PSDB e PT, os principais partidos após a redemocratização, perderam o bonde da construção de suas narrativas. Tanto a ideia de social-democracia naufragou no primeiro, quanto a importância da luta de classes desapareceu do segundo. Órfã, a população foi atrás de comprar o que estava disponível.
A verdade é que essa miríade de deputados, apesar dos discursos bizarros, sabe conversar com um público que quer saídas rápidas e fáceis para seus problemas. Conseguem entregar uma narrativa simples para que o público possa tocar suas vidas – coisa que não conseguem fazer intelectuais, líderes sindicais e parte da militância social que falam de um mundo complexo e cheio de tonalidades. A realidade realmente não é simples e, ao tentar simplificá-la, algo ou alguém sempre fica de fora. Nas narrativas coalhadas de ódio, por exemplo, exclui-se a dignidade humana.
A votação desse domingo deveria ser assistida de forma obrigatória por todo o eleitor antes das próximas eleições. Seria extremamente didático mostrar quem são as pessoas que discutem e constroem as leis que todos nós iremos seguir. Isso, é claro, se muitos dos eleitores não sentirem total empatia com aquele circo – afinal de contas, não podemos esquecer que jabuti não sobe sozinho em poste, nós os colocamos lá. Eles (os deputados, não os jabutis) também somos nós.
Desse clima atual de “que se vão todos'' pode brotar algo novo, baseado – por exemplo – na molecada que foi às ruas em junho de 2013. Eles não retornaram para pedir a saída ou a permanência de Dilma, mas impuseram uma rara derrota ao governo Geraldo Alckmin na questão da reorganização das escolas estaduais de São Paulo no ano passado. Estão por aí, debatendo, conversando.
Mas, se o descrédito na política continuar crescendo, esse clima pode abrir caminho para algum “salvador da pátria'', que não precisa de partidos, e promete botar ordem na casa sozinho, com a rigidez e o carinho de um Grande Pai. Que irá governar com um Congresso que pode ser igual ou pior do que esse que está aí. Afinal de contas, no fundo do poço, há sempre um alçapão. (Aqui).
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O diagnóstico definitivo é o seguinte: está tudo dominado. Ponto.
quarta-feira, 20 de abril de 2016
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