quarta-feira, 18 de setembro de 2013

MENSALÃO E ANOS DE CHUMBO


Lei Dirceu e lei Fleury

Por Paulo Moreira Leite

Em 1973, com a ditadura militar no apogeu, o general-presidente Emílio Médici assinou um decreto que deu origem à Lei Fleury.

Sua finalidade era proteger o delegado Sérgio Paranhos Fleury, homem forte do porão militar, acusado de torturar presos políticos, que corria o risco de ir para a cadeia em função de crimes ligados ao Esquadrão da Morte e tráfico de drogas. A lei evitava que réus primários, com endereço conhecido e os chamados bons antecedentes, cumprissem pena de prisão na cadeia.

Exatamente quarenta anos depois, o país está às voltas com outra lei personalizada, mas com um sinal invertido. Trata-se da Lei José Dirceu.

Ela não possui texto escrito, mas pelo menos num aspecto guarda curiosa semelhança com a tortura no tempo de Médici e Fleury. Todo mundo sabe que existe, mas não é preciso ordem escrita para que seja praticada.

A lei Fleury nasceu para proteger um torturador-chefe, mas, com o passar do tempo, estudiosos isentos concluíram que cumpria uma função positiva do ponto de vista do Direito. Apesar da origem espúria, evitava punições excessivas e arbitrárias.

A lei Dirceu tem caráter inaceitável e odioso. Pretende impedir que um cidadão visto como símbolo da ação penal 470, tanto para aliados como para adversários do governo Lula, perseguido e preso pela policia de Fleury no Congresso de Ibiúna, em 1968, tenha acesso aos embargos infringentes, confirmados por decisão soberana do Congresso, em 1998.

No caso da Lei Fleury, o próprio ministro da Justiça de Médici, Alfredo Buzaid, professor da Faculdade de Direito da USP, assinou o decreto que lhe deu origem. Depois, ela seguiu os trâmites legais para se transformar em lei. No caso da lei Dirceu, tudo se faz à brasileira, nesta realidade perigosa, informal e arbitrária, em que há leis que existem – e não pegam – e aquelas que pegam, embora não existam.

Num exemplo acabado deste comportamento, pode-se ler no editorial da Folha de S. Paulo, publicado ontem:

“Que o recurso (embargo infringente) venha a acarretar, para José Dirceu, a conversão de sua pena do regime fechado para o semiaberto é algo que frustrará pesadamente parcelas consideráveis da opinião pública, já exausta e descrente de um Judiciário bizantino e um sistema político que parecem talhados à encomenda dos interesses da delinquencia, do desplante e do crime. Mesmo sem ser sinônimo de que a impunidade prevalece no mensalão, é diante desse risco que a decisão final de Celso de Mello será pronunciada nesta quarta-feira.”

O raciocínio, que está no jornal, mas também envolve outros observadores e comentaristas, é sinuoso: os embargos até seriam aceitáveis. Mas, como podem permitir que José Dirceu deixe o regime fechado, devem ser negados.

Outra consequência dramática deste raciocínio é ainda mais absurda. Para não correr o risco de assegurar um direito a Dirceu, deve-se evitar a concessão de embargos para os outros dez réus que poderiam beneficiar-se da medida. Banqueiros, publicitários, dirigentes do PT e parlamentares devem ser sacrificados – para impedir que Dirceu tenha o direito de pleitear por um benefício previsto em lei.

Eu acho escandaloso que se tenha chegado ao ponto de sugerir a um ministro do Supremo, o decano Celso de Mello, que deixe de cumprir sua obrigação legal – aplicar uma lei em vigor – em nome de determinadas preferências políticas.

Falando com franqueza: será que chegamos ao ponto de pressionar um ministro do STF, o decano Celso de Mello, a prevaricar? Assim, numa boa, em público?

O receio de permitir que José Dirceu possa apresentar seus argumentos uma segunda vez se explica por uma suposição óbvia. Embora seja absurdo acusar o STF de ter demonstrado qualquer simpatia pelos condenados em 2012, a denúncia de formação de quadrilha, pela qual Dirceu foi levado a cumprir pena em regime fechado, quase caiu na etapa anterior, por absoluta falta de indícios consistentes. Entre os quatro votos favoráveis obtidos na época, Dirceu recebeu absolvição de Rosa Weber e Carmen Lucia.

O que se teme, agora, é que, em novo ambiente no STF, seus argumentos possam prosperar e lhe trazer os votos de que necessita para chegar à absolvição.

Este é o ponto real.

O falso é alegar, agora, que a aprovação dos embargos pode frustrar “pesadamente parcelas consideráveis da opinião publica”, como se falou nos “olhos da nação”, “as ruas”, o “monstro”. Calma lá.

Não que estas forças não existam ou não tenham a importância que lhes é atribuída.

Acontece que sua presença, neste debate, funciona como um eufemismo de ocasião, que se aplica quando é conveniente, e se abandona quando não interessa.

Para ficar em exemplos menos incômodos. Não se temeu pela reação de “parcelas consideráveis da opinião publica” quando Supremo debateu medidas consideradas ofensivas por milhões de brasileiros, como pesquisas com células tronco e casamento gay. Por quê? Porque, apesar da opinião de “parcelas consideráveis”, considerou-se que valia a pena enfrentá-las no curso de modernização do país.

Para falar de um exemplo mais incômodo. Também não se considerou o “risco” do silêncio que acobertou, por anos a fio, o propinoduto tucano. Nem se evitou a concessão, aos réus do mensalão PSDB-MG, de direitos negados aos acusados pela ação penal 470.

A verdade é que os rituais democráticos e o respeito pelos direitos humanos sempre frustraram “pesadamente parcelas consideráveis da opinião pública”.

Durante a ditadura, nunca faltou quem aplaudisse a perseguição política aos adversários do regime.

Quando militantes eram presos na rua, porta-vozes dessa “parcela considerável” berravam: “morte aos terroristas.”

O mais cruel dos generais-presidentes, Emílio Médici, o mesmo da lei Fleury, também foi o único capaz de exibir alguma popularidade. Foi melhor por isso? A tortura doía menos durante seu governo?

Num livro muito instrutivo, "A Invenção dos Direitos Humanos", a historiadora Lynn Hunt recorda que a noção de que todos os homens devem ser respeitados em sua integridade física e moral não é um avanço inevitável das sociedades, mas uma criação política, nascida no iluminismo. Antes disso, as pessoas eram executadas -- e mesmo torturadas – em praça pública.

Se a jurisprudência das “parcelas consideráveis da opinião pública” fosse levada a sério na Europa do século XVIII, a Revolução Francesa não teria ocorrido.

Foram a construção e o amadurecimento da democracia, explica Lynn Hunt, que permitiram que se tivesse um padrão mais civilizado de respeito a todos e a todas.

Garantias democráticas não precisam ser populares, mas são universais por definição. Devem estar à disposição de homens e mulheres – qualquer que seja a origem social, a religião, a preferência política.

Ao selecionar politicamente aqueles que não podem ter direito a elas, revoga-se este princípio básico para favorecer uma república de privilégios, distribuídos conforme a preferência de nossos aristocratas.

Não cabe, aqui, julgar o homem publico José Dirceu. Essa missão cabe aos eleitores, aos aliados e adversários. Se não se deve esperar qualquer medida que represente um sinal de tolerância diante de irregularidade provada, cabe condenar uma política de discriminação, que diz muito mais sobre quem a pratica do que sobre quem a sofre.

A necessidade de negar a um cidadão um direito humano básico, que é defender sua liberdade em todas as formas permitidas pelas leis em vigor, expressa, essencialmente, uma postura retrógrada, fundada na noção da democracia de resultados, o mais conhecido projeto elitista de quem governou o país desde Pedro Álvares Cabral. Por esse caminho, quer-se uma Justiça que só condene nossos inimigos. Eleições que só sejam vencidas por nossos candidatos. E favores que só cheguem a nossos bolsos.

Este é o debate que democratas verdadeiros devem ter a coragem de enfrentar. (Fonte: aqui).

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