terça-feira, 20 de dezembro de 2011
OS LEGADOS DE CHRISTOPHER HITCHENS
Texto de CARLOS ORSI
Eu devia ter escrito algo sobre a morte de Hitchens já há alguns dias, mas passei o fim de semana no Rio de Janeiro sem acesso decente à internet, então não deu para lançar nada no blog. Daí é que, com atraso, sai esta postagem.
O principal legado de Christopher Hitchens é, obviamente, sua obra. Mal recebi a notícia de que ele havia morrido, baixei no kindle seu mais recente livro de ensaios, o Arguably. Lá estão a prosa ao mesmo tempo elegante e contundente, a descocertante combinação do eufemismo irônico com a honestidade bruta, um equilíbrio que Hitchens sabia manter como ninguém, manobrando com eficiência entre os abismos da afetação irritante, de um lado, e o da mera grosseria, do outro.
Mas esta postagem será sobre outro tipo de legado deixado por Hitchens, o legado oferecido por sua ruptura com o que ele mesmo chamava de "esquerda antiimperialista" e por sua campanha sem tréguas contra aquilo que "envenena tudo", a religião.
No primeiro caso, é notável que o jornalista, britânico de nascimento e naturalizado americano, tenha tido a estatura moral de sair do Fla-Flu ideológico a que o mundo parece, em vários níveis, reduzido. Como Richard Dawkins nota na entrevista que fez com Hitchens para a edição de Natal da revista New Statesman, quando se sabe a opinião de uma pessoa sobre um tema controverso -- pena de morte, por exemplo -- é possível prever, com alto grau de precisão, o que a mesma pessoa pensa sobre vários outros assuntos, da legalização do aborto à invasão do Iraque.
No caso de Hitchens, no entanto, esse tipo de "perfil ideológico" não funcionava. Obituaristas preguiçosos valeram-se do fato para afixar nele a pecha de "contraditório", mas o ponto não era esse: o ponto era que Christopher Hitchens formava suas opiniões de acordo com sua própria consciência, e não para agradar à manada.
A pressão de grupo, ou o "poder de manada" das ideologias (e das religiões, por falar nisso) é tão grande quanto pouco mencionado. Em seu romance O Homem Demolido, o escritor de ficção científica Alfred Bester imagina a existência de um grupo de pessoas capazes de se comunicar por meio da transmissão de pensamentos; esse grupo vive sob regras estritas, e a única pena para os violadores do código da guilda é a exclusão: todos os demais telepatas fecham suas mentes para o rebelde, que se vê condenado à terrível pena de só poder se comunicar com pessoas "inferiores", as que dependem do uso rude da palavra.
O homem de esquerda (ou de direita, ou o católico, luterano, judeu, muçulmano) que deixa de recitar a "linha do partido" sofre um tipo de exclusão semelhante no mundo polarizado atual. A tendência do militante que se vê excluído dessa forma é cair nos braços do polo oposto -- de fato, seus ex-colegas assumem que foi exatamente isso que aconteceu.
(Essa tendência de tratar o dissidente como vira-casaca é uma forma muito conveniente de defesa das próprias crenças: é fácil descontar as opiniões de uma pessoa que discorda de você em tudo -- basta presumir que ela está errada ou tem má-fé -- mas pessoas que discordam parcialmente são especialmente perturbadoras: é difícil descontar como canalha ou idiota alguém que, em alguns temas importantes, chegou às mesmas conclusões que você.)
Hitchens, no entanto, manteve-se suficientemente fiel à própria consciência para abandonar o "consensão" da esquerda sem, no entanto, aderir ao "consensão" da direita. Ao mesmo tempo em que era capaz de defender o uso do poderio militar americano para derrubar ditaduras e de dizer que a independência dos EUA tinha sido a única revolução legítima da modernidade, ele também condenava os "métodos avançados de interrogatório" da CIA como tortura, elogiava o romance socialista de Upton Sinclair, The Jungle, e, claro, condenava de modo veemente a interferência da religião na vida pública.
Isso faz dele um homem contraditório? Só se você assumir que os "consensões" a que ele se recusava a aderir são perfeitamente consistentes e mutuamente excludentes. Eu, cá comigo, já tenho minhas dúvidas.
A segunda lição de Hitchens que eu gostaria de destacar é forma virulenta, impiedosa, quase cruel, com que ele atacava as religiões em geral. Uma de suas últimas frases de efeito -- a de que, nos anos 30, em boa parte da Europa catolicismo conservador e fascismo eram virtualmente sinônimos -- é tão cortante quanto lúcida e verdadeira.
Entre os ateus anglo-saxões há uma expressão, "tone trolls", ou "trolls de tom", usada para se referir aos que não se cansam de pedir um tratamento respeitoso da religião, uma moderação nas críticas; enfim, pessoas que, embora não discordem da substância do que dizem os ateus mais loquazes, queixam-se do tom em que aquilo é dito.
Hitchens era um alvo fácil para os "tone trolls", mas em minha opinião sua virulência revelava um profundo respeito, não pelas ideias religiosas que ele tanto desprezava, mas pelas pessoas que mantinham (e mantêm) essas ideias. Ao atacá-las abertamente, ele se recusava a tratar os religiosos como crianças que precisam ser mimadas, ou como idiotas que requerem condescendência. Se existe uma arrogância dos ateus, é a de supor que os teístas são todos uns neurastênicos inflantiloides, incapazes de assimilar críticas explícitas com equanimidade.
Se Christopher Hitchens achasse que as ideias de alguém eram estúpidas, ele diria isso, e explicaria o porquê. Trata-se de uma combinação de coragem e honestidade muito rara neste nosso mundo tomado por patrulhas de "consensões" e de "tone trolls". Por isso, entre outros motivos, ele fará muita falta.
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