segunda-feira, 15 de outubro de 2018

QUE MURO É ESSE?

Ditador? Que nada! As diretrizes estabelecidas por Steve Bannon já se encarregaram de adocicar a imagem do personagem central, porém ressaltando a firmeza, que é disso que o País precisa. E quanto às demais áreas vitais, como a econômica? Ah, é pra isso que contamos com equipe qualificada, com a qual compartilharemos as ações. Compartilhar, sim, é democrático; afinal, como já observado, por aqui não prospera esse negócio de ditador.
(Chaplin em O Grande Ditador)
Que muro é esse? 
Por Douglas Portari
Brasil, 2019. Um cinema reapresenta O Grande Ditador. Pouco após o início da primeira sessão, um alvoroço. Alguns clientes deixam a sala de exibição, espumando pelos cantos da boca. “Não vim ao cinema pra ouvir discurso político. Não importa se é sobre A ou B, se é sobre Churchill ou Hitler. Quem ele pensa que é? Chaplin não sabe nada sobre a Alemanha, não viveu lá. Eu vim aqui pra ver torta na cara, escorregão, porta no nariz! Absurdo, absurdo!!”  
Absurdo, de fato. E, contudo, aconteceu. Não em 2019, não com Chaplin, mas aqui no Brasil. Centenas de homens de bem atacados em seus brios, ofendidos em suas crenças, abandonando a primeira apresentação, no início de outubro, em São Paulo, de uma turnê do músico inglês Roger Waters, fundador e ex-membro do Pink Floyd. Só um roqueiro. Assim como Chaplin foi só um comediante. Só mais um não-acontecimento para explosão de memes e piadas.
Mas ao final dos risos, o travo amargo. Como podem nossas classes média e alta ser tão chucras? Talvez seja um segredo pra elas os ativismos de Roger Waters – pró-Palestina, antiapartheid, antibelicista, etc. Talvez considerem isso apenas um verniz, uma cor pra impulsionar a marca, como estão acostumadas a ver em muitas celebridades por aí (e por aqui). Mas ignorar um trabalho semi-autobiográfico que ataca autoritarismos de toda raça e fascismos de toda cor? Que muro é esse?
Façamos um exercício de data-idiossincrasia (garantia de 100% 'metodologia free'): olhem pras suas famílias. Quem não conhece o engenheiro, o médico, o administrador de empresas, aquele sujeito que possui um conhecimento técnico qualquer, mas nenhuma formação humanística? Mais que um conservadorismo atávico e um analfabetismo político crasso, há um descolamento da realidade, um completo desprezo por causa e efeito, por implicações de contexto social e histórico.
Ele arrota superioridade e tem horror a qualquer coisa que soe popular. Mas não abre um livro, não sabe o endereço de um museu (a não ser, claro, que for protestar por deus, família e propriedade). As exceções são o best-seller que a semanal manda comprar e o chefe está lendo e as exposições famosas que vieram do exterior. Ou seja, o cânone. Há que ter sido chancelado, avaliado, rotulado pelo establishment e/ou manada da vez. É a turba que Banksy ridiculariza.
Em 1922, teria ojeriza a Mário de Andrade, Anita Malfatti e companhia; nos anos 1930, cuspiria em Picasso como um exemplo de arte degenerada; nos anos 1960, estaria segurando o cabo da tesoura que retalhava as músicas de um tal Julinho da Adelaide. Alguns, hoje, até ouvem um pagode, um sambinha, mas criticam o “vazio e a vulgaridade” do funk – lembre-se, ele não foi aceito ainda. A maioria, porém, se considera acima disso por levar um U2 no fone de ouvido.
E, veja bem, é dono de um inglês precário (já ouvi juiz com inglês de 6ª série). Ou, como o show do Roger Waters provou, até mesmo aquele que o treina fim de semana sim outro não, em Miami, não possui a mínima capacidade de interpretação de texto, compreensão de entrelinhas e, de novo, contexto histórico. Winonino edukeyshon ou We don't need no education, não importa. O sentido da frase lhe escapa. Faltam História, Filosofia, Arte nos colégios particulares?
Entendo a fúria dos homens de bem. Quem, nos tempos que correm, não quer duas horas de escapismo? Mas buscar papinha mental na obra de um artista que critica, entre outras opressões, o nazismo? Como não veem ligação entre isso e um candidato que prega persecução de adversários e minorias e menospreza a democracia? Repito: mais que conservadorismo atávico e analfabetismo político crasso, isso é de uma estupidez abissal.
Mas se o que querem é um fast food cultural, pra glória e regozijo de suas suscetibilidades, há muito comediante e músico neocon no Brasil hoje. Charles Chaplin, realmente, não tinha nada que se meter a falar de política. Roger Waters muito menos. Tiveram seus cinco minutos de fama, caminham agora para o ostracismo. Por trás de seus muros, nossas classes média e alta ainda têm os Beatles. Ouvi dizer que All You Need is Love é uma defesa intransigente do estado mínimo...  -  (Fonte: Aqui).

Nenhum comentário: