O Tribunal Superior Eleitoral brasileiro estaria bastante preocupado com as tais 'fake news' e seus reflexos na campanha eleitoral 2018. O assunto merece, sim, providências, mas as medidas aplicáveis não podem produzir efeitos que extrapolem os sadios propósitos de fidelidade informativa com preservação da liberdade individual. É imperioso evitar, por exemplo, o clima que está a alcançar certos setores da França de Macron ("Franceses estão preocupados com lei contra 'fake news' de Macron" - aqui), como ressalta Wilson Ferreira, que no artigo abaixo vai bem além disso, trazendo à tona o interesse da mídia corporativa por trás da denúncia de notícias falsas: o desejo de exercitar sozinha o protagonismo do oferecimento de informação.
Guia para rastrear Fake News cria nova mitologia no Jornalismo
Por Wilson Ferreira
A Abraji (aquela associação de jornalistas que confunde “jornalismo investigativo” com “checagem de informação”) divulgou o “Guia para Consumidores de Notícias” do jornalista norte-americano Bob Garfield com “11 dicas simples para separar o joio do trigo”. E, claro, o joio são aqueles sites e blogs suspeitos de Fake News com “muita publicidade, banners e pop-ups”. Bem vindo ao mundo das “plataformas de fact-checking”, que, assim como fazem as próprias notícias falsas, requentam o prato frio das Fake News, tão velhas quanto a história do jornalismo. Mas para os "checadores", as notícias falsas surgiram só depois de cinco séculos de jornalismo, com a Internet, para profanar a inocência das vestais da grande imprensa. Fake News são a nova mitologia publicitária para valorizar o produto notícia mediante a produção da “escassez” informativa e também um novo selo de controle de qualidade para "separar o joio do trigo” e manter o monopólio informativo da grande imprensa. Além de ser mais uma arma da guerra híbrida: uma “plataforma de fact-checking” para cada país com “eleições, corrupção e crise política”. ....
Parem as máquinas! Desliguem as rotativas! Segurem nas garagens os caminhões de entrega dos jornais! Os “checadores”, a nova especialidade dentro do Jornalismo, fez uma surpreendente descoberta que pode abalar os pilares da profissão: as notícias falsas (ou “Fake News”) existem! E são uma ameaça, principalmente no ano eleitoral brasileiro que se inicia!
Não importa se em 1859 o cartunista Frederick Opper já publicava uma charge sobre as Fake News na imprensa (veja abaixo), ou se em 1991 o jornal Notícias Populares publicava a manchete em seis colunas “Caiu de Boca na Angélica” apenas para contar a história de uma dona de um bar que se atirou do quinto andar de um prédio da Avenida Angélica em São Paulo.
Não importa quão recorrente sejam as notícias falsas na história do jornalismo. Não! Agora as Fake News são o novo hip do jornalismo hipster (Nota deste blog: 'hipster' = grupo que inventa ou tenta inventar modismos) patrocinado pela imprensa corporativa. Um perigo que furtivamente se esgueira através das mídias sociais e sites da Internet para profanar a inocência das vestais da grande imprensa.
E a “ferramenta” para detectar essa ameaça chama-se “fact-checking” que funciona em “plataformas” específicas em “portais de checagem”.
O papel aceita qualquer coisa
Desde a invenção da prensa por Gutenberg, em 1447, ficou demonstrado que o papel aceita qualquer coisa, seja a verdade ou a mentira. Assim como a invenção da fotografia veio ao mundo simultaneamente com a possibilidade da retocagem do negativo, como mostrou em 1855 um fotógrafo alemão na Exposition Universelle de Paris.
Para mais tarde, no século XXI, o jornalismo hipster descobrir que de repente blogs, sites e redes sociais vieram ao mundo corromper a produção das notícias cinco séculos depois. E para enfrentar a ameaça digital, a grande imprensa, tributária da revolucionária invenção de Gutenberg, muniu-se de “ferramentas” e “plataformas” para patrocinar portais de fact-checking em todo o mundo – atualmente uma rede de 137 plataformas em diversos países.
E ainda é capaz de incentivar o Estado a criar projetos de lei contra as Fake News como o presidente da França Emmanuel Macron para “forçar o controle do conteúdo publicado na Internet” e o presidente do TSE, Gilmar Mendes, formalizar a criação de uma “força tarefa” para propor “medidas contra a disseminação de notícias falsas nas eleições desse ano”.
Cada época com as suas "Fake News" |
É claro que em séculos de história do jornalismo falava-se em “imprensa marrom” e “sensacionalista” (como a da manchete do suicídio citada acima), na verdade diferentes rótulos de cada época para as “Fake News”, salvaguardando a notícia como um produto que promete objetividade e isenção.
Fake News e o mercado de notícias
Talvez os jornalistas hipsters não saibam, mas a etiqueta de qualidade “Fake News” é o novo rótulo para a velha estratégia mercadológica: manter o valor de mercado das notícias quando está ameaçado pela variedade de fontes e publicações disponíveis graças à tecnologia digital. Essa é a regra básica do mercado no capitalismo: o valor de uma mercadoria é determinado pela sua escassez. Publicações noticiosas em excesso diminui o valor de mercado das notícias, pelo menos no nível esperado pelos grandes e tracionais veículos noticiosos. Além de muitas vezes deixar nuas as próprias notícias falsas da grande imprensa.
Portanto, Fake News é uma nova mitologia publicitária para valorizar o produto notícia mediante a produção da “escassez” informativa e também um novo selo de “controle de qualidade” parar separar o “joio do trigo” e manter o monopólio informativo da grande imprensa.
O semiólogo e filósofo francês Roland Barthes (1915-1980) foi um estudioso sobre o papel das modernas mitologias na sociedade – para ele uma estrutura linguístico-semiológica despolitizadora da realidade: não nega fatos e eventos, fala deles. Porém, inocenta-os, purifica-os. Preenche uma realidade histórica com natureza para eternizá-la. Despolitiza ao extrair da realidade História e contexto - leia BARTHES, Roland, Mitologias, Difel, 2002.
Roland Barthes versus Bob Garfield
Um exemplo é o “Guia para Consumidores de Notícias” (clique aqui) divulgado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Abraji. Aquela associação que confunde “investigação jornalística” com “checagem da informação”.
O guia foi apresentado pelo jornalista norte-americano Bob Garfield no seu podcast On The Media. Garfield é um dos intelectuais orgânicos do mainstream da grande imprensa dos EUA cujo trabalho atual é o de procurar alinhar as visões de mundo dos executivos de alto nível, proprietários de mídia e acadêmicos em encontros que cria, como o Media Future Summit, desde 2015.
Além do próprio título ser uma pérola da despolitização que faria Barthes pular da cadeira de sua escrivaninha (leitores e telespectadores na esfera pública são traduzidos como “consumidores” de notícias), as 11 dicas para “ajudar a separar o joio do trigo” são de uma platitude e ingenuidade flagrantes: são dicas dedicadas à desmontagem das Fake News na Internet. Mas parece que a História evaporou quando todas as “dicas” passam a se referir unicamente à realidade atual dos países com “crises políticas, eleições e corrupção” que fazem parte da rede de plataformas fact-checking.
Na verdade são princípios básicos da prática jornalística de qualquer época e que hoje são divulgados como grandes novidades. Por trás desse hip de caça às Fake News esconde-se a própria precarização das redações da grande imprensa: com o enxugamento do número de jornalistas das redações e flexibilização das relações trabalhistas pela crise econômica e a concorrência das mídias digitais, esse mínimo necessário para a prática profissional é terceirizado pelas agências de fact-checking. Enquanto repórteres viram “jornalistas sentados” que apenas “cozinham” matérias.
Onde estão as Fake News?
Embora o guia não admita, e passe longe da percepção dos checadores, cada um dos 11 itens pode facilmente ser aplicado à grande imprensa, e não apenas a sites falsos ou endereços repletos de pop-ups publicitários, ansiosos pelos cliques dos internautas.
Para começar, o guia fala em “manchetes inteiras em maiúsculas e fotos manipuladas”. Ora, isso é recorrente nos jornalões da grande imprensa, como a falsa foto da ficha criminal do DEOPS da presidenta Dilma Roussef imortalizada na primeira página da Folha em 2009. Sem falar que o próprio fotojornalismo evoluiu das fotos-choque para fotos posadas, estrategicamente compostas para impactar e viralizar como nas manifestações no Brasil de 2013-16.
O mais risível é quando recomenda desconfiar de sites com muitos banners e pop-ups: poderiam conter notícias que serviriam apenas de chamariz para atrair os cliques dos internautas. O que dizer então dos penduricalhos publicitários que poluem a leitura dos jornalões como capas promocionais, cintas que envolvem o jornal, encarte, anúncio gigante duplo, anúncios 3D, “shapes”, “colagem”, “origami”, “outside”, sobrecapas, “window” etc.?
Miriam Leitão, Carlos Sardenberg e o Escândalo da Wikipédia: Fake News na grande imprensa |
Já não seria o suficiente para desconfiarmos das manchetes garrafais nas primeiras páginas de jornais? A parte editorial não estaria se confundindo com a comercial? Quais seriam as matizes dessa confusão – da Gestalt até o próprio conteúdo das matérias?
E mais: “se a matéria não trouxer links, citações, referências, esse é outro motivo para desconfiar”. Isso é a coisa mais comum nos textos jornalísticos da grande mídia, com expressões como “circulam informações em Brasília”, “segundo fonte no Ministério”, ou ainda notícias com apenas uma fonte, tornando o restante da matéria um conjunto de ilações.
Ou ainda a tentativa de turbinar não-notícias, como o famoso “Escândalo da Wikipedia” (2014), no qual os perfis na enciclopédia virtual de Miriam Leitão e Carlos Sardenberg teriam sido alterados. Por exemplo, a matéria de O Globo ora falava em “IP da Presidência”, ora de “IP do Palácio do Planalto” ou de “computadores do Palácio” – clique aqui.
Aliás, essa mesma matéria incorre em mais uma das suspeitas do Guia de Bob Garfield: “leia além das manchetes. Elas frequentemente têm pouca relação com a matéria”. Ora, a matéria de O Globo dilui o próprio impacto noticioso à medida em que se avança a leitura: depois de colocar em suspeita à presidência na manchete e lead, o texto conclui que qualquer um poderia ter alterado os perfis da Wikipédia. Aliás, o próprio correspondente em Brasília para turbinar a própria não-notícia...
Também a apocalíptica matéria de primeira página da Folha em um domingo de 2009, “Gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em 2 meses”, faria um checador ficar corado – descendo os olhos pela reportagem, vemos que a matéria se baseou num modelo matemático estatístico cujos pressupostos não valiam para o H1N1. Era apenas um modelo genérico e não específico à gripe suína –clique aqui.
Mais um momento Mandrake da Folha: “Pesquisa liga vírus à obesidade”. Manchete impactante na primeira página com enorme foto das pernas de uma pessoa obesa. Mais uma vez, descendo os olhos na reportagem do caderno “Cotidiano”, apesar da manchete e lead tão assertivos, lia-se no final: os dados baseiam-se em "estudos não conclusivos" de uma universidade norte-americana – Folha, 20/08/2006.
Por que as Fake News são "novidades"?
Se as Fake News e as “dicas” do Guia de Garfield confundem-se com a própria história do jornalismo, por que agora tudo é tratado como uma grande novidade para a atual geração de jornalistas? Como todas as modernas mitologias estudadas por Roland Barthes, esse novo mito jornalístico também cumpre duas funções ideológicas básicas: pulverizar a História e a Política.
Senão vejamos:
(a) Não se trata apenas de jogar nas costas das mídias digitais alternativas o ônus das notícias falsas de toda a história do jornalismo. Trata-se de um mecanismo de regulação de mercado para manter em alta o valor da notícia mediante a produção da sua escassez – o crescimento exponencial de blogs, portais e perfis em redes sociais democratiza a informação, mas por outro lado deflaciona o valor econômico da notícia. Se na indústria de bens tangíveis temos a obsolescência planejada, no Jornalismo temos o fact-checking;
(b) “Na guerra a primeira vítima é a verdade”, disse Ésquilo, pai da Tragédia Grega. Os jovens checadores deveriam perceber que em momentos de deflagração política (como na guerra híbrida brasileira de 2013-16 que culminou no impeachment) não importa a mídia, dos jornalões aos sites falsos: todas são instrumentalizadas como bombas semióticas para convulsionar a opinião pública, como vimos nos exemplos acima – sobre isso clique aqui;
Plataformas Fact-checking acompanham as guerras híbridas |
(c) Enfim, as intrépidas plataformas de fact-checking caçadoras de Fake News, com o discurso da “crise política, eleições e corrupção”, se enquadram organicamente nas atuais estratégias geopolíticas de guerra híbrida nas sucessivas “primaveras” que pipocam pelo mundo – e nesse momento no Irã.
Sintomaticamente, de acordo com a Duke Reporters Lab (da Duke University, EUA, projeto que se dedica a monitorar novas formas de jornalismo no mundo), países que tiveram eleições e foram sacudidos por escândalos políticos têm mais chance de ver a proliferação de fact-checking.
Sob o álibi da caça às notícias falsas, produz-se o importante efeito residual de monitoramento e censura de notícias alternativas à grande mídia sobre as crises políticas.
Com isso revela-se o verdadeiro papel dos web bots que convocam pessoas comuns para manifestações e espalham Fake News contra o Governo do momento alvo da guerra híbrida: não tanto convencer mais pessoas a irem para as ruas, já que apenas reforçam disposições pré-existentes (já foi demonstrado que eleitores de direita são mais receptivos às notícias falsas porque são estúpidos e acreditam em qualquer coisa – clique aqui), mas principalmente para servirem de álibi para colocar sob suspeita de Fake News todos os blogs, podcasts, redes sociais e mídias alternativas à grande imprensa.
Para salvaguardá-la como a guardiã detentora das notícias verdadeiras. Enquanto ela mesma segue rigidamente as dicas do Guia de Bob Garfield. Só que com sinais trocados. - (Fonte: Cinegnose - AQUI).
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