terça-feira, 29 de agosto de 2017

OS BANCOS CENTRAIS E SEUS ESTOQUES COMPROMETEDORES


A crise financeira e a implosão das ignorâncias

Por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo (Na CartaCapital)

Os confortos da confiança excitaram o apetite ao risco e a racionalidade do mercado converteu-se em tropel enfurecido em 2008
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Desde a crise financeira de 2008, os economistas se engalfinharam em debates sobre a pertinência dos mandamentos econômicos inscritos nos cânones da ortodoxia.
Nos países desenvolvidos, os bancos centrais intervieram desavergonhadamente para salvar mercados em pânico, comprando títulos públicos e privados, injetando liquidez no mercado (quantitative easing) e inflando a demanda por esses papéis.
Com essas ações pouco convencionais, os gestores da moeda e do crédito sustaram uma desastrosa desvalorização da riqueza, uma violenta deflação do estoque de ativos. 
Nos últimos 40 anos, os bancos centrais, sob os auspícios dos modelos dinâmicos estocásticos de equilíbrio geral e do regime de metas de inflação – a celebrada regra de Taylor –, comemoravam o bom comportamento do nível geral de preços e celebravam as taxas de juro moderadas.
Imperceptível para os radares desajustados dos cientistas da sociedade, a “exuberância irracional” esgueirou-se nas plácidas certezas dos modelos bem-comportados para implodir suas ignorâncias em 2008.
Desinformados das lições da história, os “cientistas” ignoraram os paradoxos da ação humana: os confortos da confiança excitam o apetite ao risco e a racionalidade dos agentes do mercado transmuta-se no tropel de búfalos enfurecidos em busca da riqueza líquida.
Infelizmente para os modelos dos cientistas, sem crédito e dívidas, as transações cruciais no capitalismo – a economia monetária da produção – não são realizadas pela troca de recursos reais, mas por direitos financeiros sobre esses recursos.
Um título confere ao seu comprador (credor) o direito a um fluxo esperado de recebíveis, decorrente das receitas estimadas pelo projeto ou empresa. O valor desses títulos está diretamente relacionado à segurança sobre esse fluxo de recebíveis.
Na marcação do mercado, a confiança quanto à realização dessas receitas pode reverter-se rapidamente em um consenso de que os títulos não valem o que se esperava e que seus credores perderão aquilo que achavam ter ganho.
Se tudo que é sólido se desmancha no ar, imagine o leitor quão arriscado é carregar em sua carteira de ativos o que pretende ser líquido. Transgredindo os catecismos da ortodoxia, a política de inundação de liquidez não trepidou em descarregar trilhões nos bancos, iniciando com 700 bilhões de dólares de recursos públicos para a compra de títulos podres privados na deflagração da crise.
Hoje alcança mais de 15 trilhões em “ativos” no balanço dos bancos centrais dos Estados Unidos, Europa, Japão, Suíça e Inglaterra.
A ampliação da base monetária não gerou inflação nem engendrou expansão do crédito para a produção, muito pelo contrário. Um estudo do Board of Governors do Fed, publicado em novembro de 2015, ilumina esse ponto: “... em reação à turbulência financeira e ao rompimento do crédito associado à crise financeira global, corporações procuraram ativamente aumentar recursos líquidos, a fim de acumular ativos financeiros e reforçar seus balanços".
E continua, "se esse tipo de cautela das empresas tem sido relevante, isso pode ter conduzido a investimentos mais frágeis do que o normalmente esperado e ajuda a explicar a fraqueza da recuperação da economia global... descobrimos que a contraparte do declínio nos recursos voltados para investimentos são as elevações nos pagamentos para investidores sob a forma de dividendos e recompras das próprias ações... e, em menor extensão, a acumulação líquida elevada de ativos financeiros”. 
Ainda hoje, nos tempos da recuperação raquítica, a expansão da liquidez financia a aquisição de ativos já existentes, como a recompra das próprias ações ou o aumento de recursos líquidos, a fim de acumular ativos financeiros e reforçar balanços, em vez de financiar a aquisição de bens e serviços. Novas bolhas de ativos.
A riqueza agregada é o estoque de direitos de propriedade e títulos de dívida gerados ao longo de vários ciclos de criação de valor. A renda nacional é o fluxo de renda criado pelo investimento em nova capacidade produtiva e no consumo das famílias, o próprio valor em movimento.
As injeções de liquidez concebidas para evitar a deflação do valor dos ativos já acumulados não estimularam a criação de valor em movimento, mas incitaram e excitaram a conservação e a valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata.
Em contraposição à aquisição de máquinas e equipamentos, a valorização desses ativos não carrega qualquer expectativa de geração de novo valor, de emprego de trabalho vivo. O que era uma forma de evitar a destruição da riqueza velha provoca a esclerose do impulso à criação de riqueza nova.

Os bancos centrais rebaixam suas taxas de juro para o subzero, tentam mobilizar a liquidez empoçada para estimular o crédito destinado à demanda de ativos reais ao longo do tempo. A liquidez assegurada pelos bancos centrais permanece represada na posse dos controladores da riqueza velha.
Os controladores da riqueza líquida rejeitam a possibilidade de vertê-la em criação de riqueza nova, com medo de perdê-la nas armadilhas da capacidade sobrante e do desemprego disfarçado nos empregos precários com rendimentos cadentes. 
As últimas reuniões dos Comitês de Política Monetária do Federal Reserve registram opiniões de alguns membros, ansiosos em emagrecer o avantajado balanço do banco. A presidente Janet Yellen hesita. Hesita porque, provavelmente, teme as consequências de uma reversão do quantitative easing sobre os preços dos títulos públicos longos acumulados nos bancos e fundos.
Em entrevista à Bloomberg, o ex-presidente Alan Greenspan alertou para a bolha abrigada na valorização dos títulos do Tesouro. Mesmo administrados com vagar e cautela, os ajustamentos no valor dos estoques são muito mais rápidos e intensos. Podem ser catastróficos. Porco vira linguiça, mas linguiça não vira porco.  -  (AQUI).

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Resumindo, 'leigamente': O Mercado pinta e borda com a movimentação de títulos - independentemente de terem lastro (garantia) -, ganha tubos de dinheiro e, caso entre em parafuso, o Estado entra em cena, impedindo que o sistema vá à bancarrota. Nesse meio tempo, o Estado vai 'monitorando' o cenário, cheio de dedos, como o Federal Reserve vem agindo ('hesitando'). Ou seja, o Mercado deve se concentrar na arte de passar adiante, com os devidos ganhos, os papéis (os famosos 'recebíveis', 'derivativos') que lhes "chegam às mãos". Financiar investimentos (bens de capital, infraestrutura etc.), por exemplo, não deve fazer parte de suas prioridades. E se a bolha vier a estourar, nada de pânico: vale repetir: o Estado entrará em cena e agirá como paladino, sétima de cavalaria. O Mercado, como sabemos, é grande demais para quebrar. É o instante em que o Estado, tão malhado e minimizado, deve se tornar forte, poderoso e meritório, segundo os porta-vozes do Mercado.

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