Como escapar da Matrix: 10 definições de "gnose" através do cinema
Por Wilson Ferreira
Desde os
clássicos filmes gnósticos “Show de Truman” e “Matrix” a espécie humana é
representada como prisioneira em uma gigantesca ilusão cósmica – tecnológica,
psíquica ou midiática. Como escapar dela? Para o Gnosticismo, através da “gnosis”
(“conhecimento”). Mas que tipo de conhecimento é esse? Uma epifania
místico-religiosa? Algum tipo de comunhão secreta com o Divino? Iluminação
espiritual? O Cinegnose reuniu dez definições de estudiosos sobre o conceito de
“gnose” e como os filmes gnósticos figuram essa espécie de rota espiritual de
fuga: quem
éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde
estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é
renascimento.
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Após sete anos de atividades, esse humilde
blogueiro percebeu uma séria lacuna no trabalho do Cinegnose em mapear os filmes gnósticos na atual produção
cinematográfica.
Encontramos nos filmes a articulação dos
diversos temas gnósticos como o Mito de Sophia, o Mal, a Queda, estados
alterados de consciência (paranoia, suspensão e melancolia), o homem prisioneiro
numa ilusão, o Demiurgo, o sono, Esquecimento, a memória, Alquimia entre
outros.
Porém, um tema foi, por assim dizer,
esquecido ou colocado entre parêntesis: a gnosis.
Claro que nas análises sobre os filmes gnósticos (clique aqui para ver a nossa lista), o
tema foi abordado de forma sub reptícia – o mal estar, estranhamento e
alienação do protagonista diante da inautenticidade (a ilusão) do mundo, os
estados alterados de consciência (que dão os três protagonistas-chave: o
Viajante, o Detetive e o Estrangeiro) e finalmente a quebra da ilusão que
mantinha o personagem no sono do esquecimento e prisioneiro.
Mas ainda assim, essas são apenas as
condições que propiciam a gnosis. Mas o que é a gnose? Algum conhecimento
arcano secreto? Uma epifania místico-religiosa? Algum tipo de comunhão secreta
com o Divino? Iluminação espiritual?
Tomada literalmente, quer dizer
“conhecimento”. Como veremos, há várias definições proferidas por diversos
pesquisadores e adeptos do Gnosticismo. Apesar das diferenças, há um ponto comum:
gnose não se confunde com o simples conhecimento acadêmico, erudição ou cultura
intelectual – “conhecimento revelado” ou “conhecimento divino”.
Grosso modo, no Gnosticismo há três
abordagens sobre a gnosis: (a) para
os gnósticos antigos, a gnose não era apenas a iluminação, mas existia no
âmbito da Cosmologia, do mito e da antropologia – viria acompanhada de uma
compreensão expressa nos Resumos de
Teódoto de Bizâncio: "quem
éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde
estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é
renascimento".
(b)
Para o gnosticismo setiano (anterior ao cristianismo) a mente de Deus teria
sofrido um colapso e perdido a sabedoria (também conhecida como “Aeon Sophia”).
Devido a essa crise, Sophia decaiu no vazio caótico, nas emoções especulativas
e eventualmente no mundo material, dando à luz o “Demiurgo” (Yaldabaoth) que se livra de Sophia e cria um cosmos imperfeito, imitação do Divino. E cria o
homem, prisioneiro na sua criação.
Por
isso o homem seria “um deus em ruínas”. Para os setianos, o
aperfeiçoamento das próprias mentes (a gnosis) restauraria a solidez da própria
mente de Deus – Deus precisaria de nós tanto quanto precisamos dele para curar
um cosmos fraturado.
(c)
Gnose como “autoconhecimento”. Mas um autoconhecimento que não se confunde com
o ideário atual da “autoajuda” – enquanto esta reforça o ego para o sucesso, na
gnose é revelado ao homem um caminho interior que não pode ser compreendido e
nem seguido pelos poderes do ego. O encontro da centelha espiritual interior
que nos reconecta com a Divindade, fazendo-nos compreender que somos exilados
de um plano além desse cosmos físico.
Se
na autoajuda procuramos o caminho da adaptação (imanência), na gnose experimentamos
a transcendência.
O
Cinegnose apresenta 10 definições de
especialistas e alguns filmes gnósticos que ajudam a ilustrá-las.
1. Elaine Pagels – Os Evangelhos Gnósticos, 2006.
Gnosis não é conhecimento, principalmente racional. A língua grega distingue entre o conhecimento científico ou reflexivo (“Ele sabe matemática”) e aquele através da observação ou experiência (“Ele me conhece”). Poderíamos traduzir como “insight”. A gnose envolve um processo intuitivo de conhecer a si mesmo. No entanto, conhecer a si mesmo, no nível mais profundo, é conhecer a Deus; este é o segredo da Gnose.
Filmes:
Revólver (2005)
– a jornada interior do protagonista que descobre que o seu maior inimigo é o
próprio ego; A Passagem (2005) – um
misto de jornada interior pelo psiquismo e a travessia de um purgatório entre a
vida e a morte. Clube da Luta (1999)
– para o protagonista, a luta é a melhor forma de conhecer a si mesmo.
Silenciando o corpo (mesmo através da porrada) abrimos a mente para insights.
2. Gilles Quispel – Gnostic Studies, 1974
Atravessar o inferno da matéria e o purgatório da moral para chegar ao paraíso espiritual.
Filmes:
Dead Man (1995)
– na companhia de um xamã, Johnny Deep faz jornada espiritual no oeste
americano, conhecendo o inferno dos homens, atravessando o purgatório indígena
até uma canoa levá-lo através de um rio espiritual; El Topo (1973) – outro
western espiritual, agora do diretor Alejandro Jodorowsky. Tal como um
toupeira, o protagonista escava um túnel no meio de simbolismo e alegorias
religiosas e esotéricas e em meio à violência dos homens. Para chegar à
superfície e encontrar a luz do Sol e espiritual; After Death (2015) – um grupo
de jovens chega a uma espécie de antessala entre o Céu e o Inferno.
3. Bart Ehrman – Voices of Gnosticism, 2010
No caso do gnosticismo, gnosis é a própria base da salvação. Através da revelação da Gnose a pessoa é despertada da ignorância, do sono, ou embriaguez. São várias metáforas que são usadas para o estado do ser humano antes de receber a gnosis. Uma vez que a gnosis é revelada a essa pessoa, é aceita por ela mesma. É, em última análise, a base para a integração no mundo do divino a partir do qual essa pessoa se originou. Uma das características essenciais da gnosis em termos de conteúdo é que o conhecimento que salva é o conhecimento de que o mundo em que vivemos não é o mundo eterno e nossos seres mais íntimos são divinos e consubstanciados com um ser divino que está além do mundo e que, finalmente, não foi responsável por sua criação.
Filmes: Cidade das Sombras
(Dark City, 1998) – Um homem acorda
sem memórias e preso num mundo cenográfico criado por demiurgos alienígenas; O Homem Que Incomoda (2006) em uma
estranha cidade onde cada pessoa parece estar estranhamente satisfeita com a
sua vida, um visitante chega (ele não sabe como parou ali) e passa a levantar
questões sobre tudo e todos; Show de Truman, 1999 – a descoberta de
que o mundo no qual o protagonista vive não é “eterno”, mas um reality show no
qual é prisioneiro. E que o seu “carisma” e “brilho” nada têm a ver com aquele
mundo ilusório.
4. Stephan Hoeller – Gnosticism: a New Light on the Ancient Tradition of Inner Knowing, 2002.
Saber salvífico, chega intuitivamente, mas facilitado por vários estímulos, incluindo o ensino dos mistérios trazidos aos seres humanos por mensageiros da divindade de fora do cosmos.
Filmes:
O Décimo Terceiro
Andar (1999) – programadores de games de simulações descobrem que
personagens virtuais tornam-se sencientes, apontando para a possibilidade do
nosso cosmo ser também uma simulação no interior de outra simulação; Matrix (1999) – Neo se aprofunda na
sabedoria de Morpheus e nos códigos fonte da Matrix para descobrir o deserto do
real fora do seu próprio mundo.
5. Richard Smoley – Forbidden Faith: The Secret History of Gnosticism, 2006.
O despertar cognitivo da gnose é geralmente um processo gradual, em vez de uma única visão, transformadora. Nesta libertação do verdadeiro “eu” do mundo o comportamento moral não é relevante; mas pode facilitar - torna mais fácil de amar os outros seres humanos, porque liberta-o do egoísmo e das agendas ocultas.
Filmes:
Vidas em Jogo (The Game, 1997) – Um rico banqueiro é
submetido involuntariamente a um role-playing game que acaba libertando-o do
seu egoísmo; Virei um Gato (Nine Lives, 2016) – o leitor pode ficar
surpreso com a citação desse filme, familiar e pueril, um clássico de Sessão da
Tarde. Porém, por trás de camadas de clichê de comédia popular há uma jornada
de transformação íntima e “salto de fé” – um homem rico e famoso que conhecerá
o valor moral do sacrifício e compaixão.
6. Carl Jung – Psicologia e Religião.
Gnosis, como tipo especial de conhecimento, não deve ser confundido com o Gnosticismo.
Filmes:
Narrativas niilistas e ateias como em The Man From The Earth (2007, ceticismo e desconstrução da religião
e da ciência sem qualquer lição metafísica ou teológica), O Novíssimo Testamento (2015, Deus morreu porque se tornou inútil)
e Teorema Zero (2013, Deus escreve
através de linhas tortas o caminho da sua própria negação) de Terry Gilliam, provam
que a gnose não é nem uma religião e, muito menos, propriedade do Gnosticismo.
Filmes agnósticos que figuram protagonistas incapazes de prover quaisquer
fundamentos para a existência de Deus, sentido ou propósito para a existência.
Paradoxalmente, propiciam gnose e transformação.
7. Andrew Philip Smith – A Dictionary of Gnosticism, 2009.
Conhecimento direto do divino, no qual se oferece a salvação. Para os antigos gnósticos, gnosis existia no âmbito da cosmologia, mito, antropologia e práxis utilizadas dentro de seus grupos. A gnose não era apenas a iluminação, mas foi acompanhada por um entender, tal como expresso no Trecho de Teódoto, de “quem éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é renascimento”.
Filmes:
Todas narrativas AstroGnósticas (aproximar a jornada humana na Terra com a
jornada de aliens errantes; ou descobrimos que os seres humanos na verdade
descendem de enxertos de DNA alienígena nos primatas ou simbolicamente a
condição humana é comparada a de extraterrestres ameaçados ou corrompidos pela
sociedade humana) se encaixam nessa definição de gnose: O Homem Que Caiu na Terra (1976), Earthling (2010) ou mesmo E.T.
O Extraterrestre (1982).
Além
dos filmes que abordam a questão da reencarnação do ponto de vista gnóstico: a
prisão do esquecimento a cada “renascimento" – Quero Ser John Malkovich (1999), The Scopia Effect (2014), Enter
The Void (2009).
8. Nicolas Denzey Lewis – Introduction to Gnosticism: Ancient Voices, Christians Worlds, 2013.
Palavra grega para conhecimento; um conhecimento específico das próprias origens divinas no qual o caminho para a salvação vem por meio do autoconhecimento.
Filmes:
Mais
filmes sobre autoconhecimento – na jornada xamânica induzida por estados
alterados de consciência em Blueberry:
Desejo de Vingança (2004); e o autoconhecimento e transformações íntimas
por processos alquímicos como em Beleza
Americana (1999), na série Breaking
Bad (2008-2013) e Fonte da Vida
(2006) de Darren Aronofsky.
9. Stuart Holroyd – The Elements of Gnosticism, 1994.
Desconhecimento e ignorância mantêm o homem sob o encalço dos Arcontes; somente o conhecimento (gnose) pode libertá-lo: o conhecimento do Deus transcendente e da divindade interior, e também o conhecimento da maneira de combater ou enganar os Arcontes e permitir a alma alcançar a reunião que anseia. Este conhecimento salvífico não pode ser descoberto no mundo, o reino das trevas. Ela deve vir do reino da luz, concedida quer por revelação (ou iluminação) ou trazida por um mensageiro, um salvador transcendente.
Filmes:
Os Arcontes são seres hostis e
malévolos criados pelo Demiurgo para manter a ilusão do mundo seduzindo o homem
através da religião consoladora, o hedonismo e a racionalidade. Filmes como Agentes do Destino (2011, onde Arcontes
são agentes de um jogo cósmico no qual o homem é um fantoche), Demônio de Neon (2016, o hedonismo como
arma dos arcontes para seduzir a humanidade) ou Lost River - 2014, no qual um
gerente de banco (endividamento) e capangas violentos são agentes de um sistema
corrupto que mantém protagonistas presos a uma cidade decadente.
10. Birger Pearson – Ancient Gnosticism: Traditions and Literature, 2007.
O objetivo do gnóstico é ser salvo da prisão cósmica existente e para ser restaurado o reino da luz a partir do qual o ser humano verdadeiro auto originou. Gnosis fornece os meios para alcançar este objetivo e assegurar a passagem da alma, após a morte, de volta a Deus. Uma vez que o processo de libertação for concluído, que é quando todos os eleitos são resgatados, o mundo material ou será aniquilado ou ficará sujeito à escuridão eterna. A escatologia gnóstica é, basicamente, uma reinterpretação da escatologia bíblica e judaica padrão.
Filmes:
(Fonte: Cinegnose - aqui).
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