Como parar de fumar em cinco passos, do vício ao Holocausto, em "No Smoking"
Por Wilson Ferreira
O primeiro filme de Bollywood (a indústria cinematográfica da Índia) a fazer uma adaptação de uma obra de Stephen King. Definitivamente, “No Smoking” (2007) é um filme para cinéfilos aventureiros e amantes do estranho. Parece até que David Lynch encontrou-se com Bollywood – um thriller neo-noir psicodélico, com muito humor negro, surrealismo, um guru irmão bastardo de Hitler e... cigarros. Um arrogante homem bem-sucedido e fumante obsessivo compulsivo é ameaçado pela sua esposa com o divórcio, depois de respirar tanta fumaça. Como largar o vício? “No Smoking” oferece um método de cinco passos: consiga ajuda profissional, envolva familiares e amigos, música, lembrar-se do Holocausto e, finalmente, morra para si mesmo. Além do tema do nazi-fascismo, controle e vigilância da mente e da alma, “No Smoking” faz também um curioso mergulho nas associações simbólicas do tabaco e fumaça associados à alma e consciência.
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Um homem está preso em uma casa de madeira no meio do nada, numa espécie de gelado Gulag siberiano. Lá fora, um grupo de soldados russos fortemente armados estão vigiando-o. Na sala há um pequeno monitor de TV PB mostrando um telejornal falado em russo. Através da imensa janela, olha para o deserto gelado e vê no alto da colina uma banheira e, ao lado, um maço de cigarros.
Ele descobre que está ao vivo naquele telejornal russo – vê-se a si mesmo olhando através da janela. Sente uma incontrolável vontade de fumar. Dirige-se à porta e aperta um botão para chamar o guarda. Ao invés do som de uma campainha, ouve uma sirene, dessas da Segunda Guerra Mundial, misturada com a voz de um discurso de Hitler. Pede um cigarro e, como resposta, o soldado russo dispara com um revólver na sua direção.
Desesperado, o homem quebra a janela e corre pela neve em direção daquele maço de cigarros ao lado da banheira, até receber um tiro nas costas de um soldado russo.
Essa é a primeira sequência do filme hindu, altamente metafórico e surreal, chamado No Smoking (2007) do diretor Anurag Kashuap. Um filme para os amantes do estranho. Uma produção que poderia ser descrita como o resultado do encontro de David Lynch com Bollywood, a indústria cinematográfica da Índia.
A princípio, No Smoking pode ser descrito como um neo-noir thriller psicodélico. O primeiro filme de Bollywood baseado em um conto de Sthephen King –Quitters Inc. de 1978.
Embora o filme tenha recebido aplausos e louvor em diversos festivais pelo mundo, na Índia foi um fracasso de bilheteria. Parece que No Smoking estava à frente do seu tempo na indústria do cinema daquele país por apresentar um enredo obscuro e estranho misturando elementos de surrealismo, fantasia, sonho, realismo, horror, humor negro e muitas sequências musicais (praticamente vídeo clipes independentes dentro do filme), marca registrada dos filmes de Bollywood para conseguir apelo comercial.
Foi desaprovado pelo público e crítica indianos. Os poucos que assistiram ficaram perplexos com uma narrativa incomum na qual não há um tom dominante, confundindo o espectador mais desavisado acostumado a finais felizes e narrativas lineares.
O Filme
No Smoking acompanha um yuppie rico, bem sucedido, arrogante e fumante obsessivo compulsivo. Sr. K (John Abraham), como é chamado, é capaz de passar horas em sua banheira fumando. E costuma expulsar velhinhas de elevadores que reclamam por ele fumar em lugares fechados.
A surreal cena que abre o filme é uma síntese alucinada do que veremos nas quase duas horas de projeção, oscilando entre a realidade e a ilusão, explorando o interior da mente de alguém viciado em tabaco. Na verdade o tabagismo é usado como uma metáfora para mostrar como o funcionamento da mente humana torna-se vítima de dispositivos autoritários de vigilância e controle tão insidiosos que são capazes de ir além da mente – alcançam a própria alma.
Em muitos aspectos, No Smoking lembra o filme Vidas em Jogo (The Game, 1997), no qual um entediado banqueiro bem-sucedido participa de um jogo que se torna cada vez mais pessoal, confundindo ilusão e realidade até chegar à paranoia e desespero.
Historicamente, sabemos que as primeiras campanhas de propaganda antitabagista foram criadas pelos nazistas na década de 1930 – Hitler, vegetariano e não fumante, acreditava que o cigarro envenenava a própria alma da raça ariana. Mas também sabemos que, para os médicos da SS, o antitabagismo foi um mero pretexto para o controle da população e identificação daqueles que supostamente não preenchiam os requisitos da pureza racial. Caso a Alemanha ganhasse a guerra, o Holocausto se voltaria contra o próprio povo alemão.
Com muito humor negro e surrealismo, No Smoking mostra cinco irônicos passos para abandonar o vício do cigarro. Mas, cuidado! Alguma coisa do velho misticismo e higiene social nazista está sendo ressuscitada em plena Índia...
Primeiro passo: consiga ajuda profissional
Sr. K tem pesadelos com russos negando-lhe cigarros. E sua esposa Anjali (Ayesha Takia), cansada de tanta fumaça, ameaça com o divórcio. Seu amigo Abbas (Ranvir Shorey), um ex-fumante, está ansioso em lhe recomendar uma ajuda profissional – uma empresa chamada “O Laboratório”, com um sinistro call center com mulheres vestidas de burca, localizada em uma suja viela em uma favela de Calcutá.
Lá o Sr. K encontra um enigmático vendedor de tapete com um olho de vidro que lhe mostra uma passagem secreta com infinitas escadarias, até encontrar um anão e outra mulher de burca.
Segundo passo: envolva família e amigos
Logo o protagonista encontra um guru que atende por Shri Shri Prakash Guru Ghantal Baba Bengali (Paresh Rawal), que proclama que ninguém saiu dali sem uma cura para os vícios – os vícios são doenças da alma, enquanto o corpo é puro, afirma o guru. Ao mesmo tempo em que o assistente anão lhe traz o contrato para ser assinado.
Na parede um estranho retrato no qual o guru anda de carro ao lado de Hitler – Baba Bengali seria um irmão bastardo do líder alemão. E logo percebemos as insólitas conexões: o programa de reabilitação do “Laboratório” consiste num jogo de punições de amigo e familiares, a cada cigarro que o Sr. K porventura ponha na sua boca. Além da ameaça de ter os dedos cortados...
Sua vida começa a ser monitorada 24 horas e dezenas de fitas VHS são arquivadas para análise no “Laboratório”.
Terceiro Passo: Dê um tempo para a música
Como em todo filme hindu, clips musicais são inseridos na narrativa. Musicas que, na verdade, são armadilhas para o Sr. K voltar a pegar num cigarro, como na cena do cabaret numa produção do tipo off-Broadway onde um rapaz andrógino e seus cantores de apoio cantam: “Cada vez que um cigarro é aceso, eu queimo...”.
O som é alto, mas a fala dos personagens aparece em balões de histórias em quadrinhos, numa curiosa experiência de intertextualidade fílmica – isso deve ter confundido os hindus: afinal, isso é comédia, drama ou thriller?
Quarto Passo: Lembre-se do Holocausto
Numa sequência vemos o filme A Lista de Schindler passando num monitor de TV. Além da narrativa fazer uma comparação entre campos de concentração e programas de extinção do tabagismo. Ou salas cheias de fumaça de cigarro no qual são presos familiares como castigo.
Fumaça do cigarro comparada com gás do Holocausto? Homens desconhecidos presos por trás de grades no “Laboratório” com uniformes que parecem com aqueles de Treblinka e Auschwitz?
O tema do fascismo é claro em No Smoking: como o tabagismo é o pretexto para controle e vigilância políticos.
Quinto passo: morra para si mesmo
Controle absoluto: a mente separa-se do corpo. Para Baba Bengali, somente uma mente forte pode domar o corpo puro. Mas se o vício enfraquece a mente e a alma, o corpo deve ser forçosamente separado.
O filme então mergulha em alucinações, tele-transportes via banheiras, dilatação do tempo, multiversos e finalmente a prisão da mente em um campo de concentração estilo nazista em algum universo paralelo – enquanto vê o seu corpo, o seu outro eu, vivendo finalmente em paz com sua esposa, sem fumar e... sem vida, virtus ou élan.
Além do tema do nazi-fascismo, controle e vigilância da mente e da alma, No Smoking faz também um curioso mergulho nas associações simbólicas do tabaco e fumaça associados à alma e consciência.
O simbolismo da fumaça sempre esteve associado aos espíritos, almas, um canal analógico de comunicação com o mundo espiritual, como no caso das fumaças de charutos na Umbanda – sobre a semiótica da “macumba” clique aqui.
Parece ser sincrônica a obsessão antitabagista da propaganda nazi nos prenúncios da Segunda Guerra Mundial. Hitler queria o controle total de corações e mentes de uma nação. Nada mais lógico que combater o simbolismo da idiossincrasia, individualidade – o controle da fumaça como o controle da própria alma até morrermos para nós mesmos. A fumaça do tabaco foi substituída pelo gás da indústria química alemã.
Sem mais resistências, o corpo inerte se entrega à ordem totalitária.
A ambiguidade de No Smoking (afinal, o filme é contra ou a favor do tabaco?) foi demais para o público de Bollywood.
Ficha Técnica
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Título: No Smoking
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Diretor: Anurag Kashyap
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Roteiro: Raj Singh Chaudhary, Anurag Kashyap
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Elenco: John Abraham, Ayesha Takia, Paresh Rawal, Ranvir Shorey
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Produção: Big Screen Entertainment, Eros Entertainment
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Distribuição: Big Screen Entertainment
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Ano: 2007
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País: Índia
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(Fonte: CINEGNOSE - aqui).
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