sábado, 3 de setembro de 2011
O HUMOR DE TREVISAN
Dalton, o humorista
José Castello
Blog Conteúdo Livre
Uma boa imagem para a literatura de Dalton Trevisan, e que seu nome autoriza, talvez seja a do daltonismo. Mal que incapacita a percepção de certas cores, em especial do vermelho, o daltonismo é, de modo mais geral, a incapacidade para diferenciar cores. Um mal que bloqueia o acesso às nuances, produzindo uma espécie involuntária de achatamento da realidade, que é reduzida a certos aspectos, e roubada de outros.
Chama a atenção que seja justamente o vermelho — a cor do sangue e da vida — que se torne proibida. Algo se amortece na visão dos daltônicos, assim como algo de mórbido surge nos melhores relatos de Dalton. Em sentido figurado, o daltonismo significa uma deficiência intelectual que impossibilita a compreensão de certos assuntos. Também o daltonismo de Dalton Trevisan ergue um obstáculo que entrava — embora, igualmente, realce — sua escrita.
Leitor apaixonado dos contos de Dalton, luto para tomar distância e observá-los com mais nitidez. Clareza que estará, sempre, permeada pela cegueira, de que nunca nos livramos. Enquanto leio “O anão e a ninfeta”, sua mais recente coletânea de relatos (Record), não posso deixar de pensar que, em seu caso, a escrita daltônica reproduz o estilo chapado que define o mundo contemporâneo.
O mundo ridículo e triste dos bancários que surge no conto que dá título à coletânea é um universo não de homens, mas de marionetes — seres desprovidos de sangue. Protagonista do relato, o anão Primo Santuro comporta- se como um títere que, preso a fios invisíveis, tem a vida reduzida à manipulação alheia. Esses fios — na verdade, os dedos do escritor — o puxam para lá e para cá, reduzindo-o, quase sempre, ao ridículo.
É “às pancadas” que Dalton trata seus personagens — e para aqueles que acreditam (como eu) em um vínculo vigoroso, embora não especular, entre literatura e vida, admito, isso incomoda. O escritor os pega sempre pelo que têm de pior, de mais desprezível, mais desumano. Trabalha, bom humorista que é, com ênfase no grotesco. Recorda-me o Aurélio que, em uma de suas primeiras acepções, a palavra grotesco refere-se a um estilo proveniente da imitação de ruínas romanas. A ênfase, penso, está nas ruínas — elas, por excelência, o objeto de gozo na escrita de Dalton.
Você ri? Eu rio muitas vezes. Mas o riso vem temperado pelo desespero. Não é qualquer escritor que consegue produzir um efeito tão ambíguo — e, portanto, tão humano. Não posso negar: ao gerar horror, ainda que um horror risível, a literatura de Dalton nos humaniza. Ele escreve como um caricaturista que, atento aos detalhes mais desprezíveis, desnuda, peça a peça, seus personagens. Por isso, por mais dramáticas que sejam (e são) suas aventuras, elas se tornam, ao fim, dramas burlescos, em que vale tudo por um efeito cômico.
Não tenho dúvidas de que Dalton Trevisan, além de grande escritor, é um grande humorista. E quantos humoristas de valor a literatura brasileira já produziu? Não é o humor que me incomoda, mas o caricatural. Mestre do humor negro, a cada página Dalton deprecia, desdenha, achata seus personagens. Ao lado deles, Gregor Samsa é uma espécie de herói! Com isso, não posso deixar de pensar, Dalton desvaloriza a si mesmo. A confissão aparece em um mini-conto como “Um de nós”, história de um casal de babuínos que vive em uma jaula de parque. Deles espera-se, como em geral dos macacos, que façam gracinhas, macaquices. Escreve Dalton, falando d o m a c h o : “ Apenas olha-nos triste e desolado, coça a testa — arreganha as beiçolas e rincha de forte escárnio”.
Os leitores mais ortodoxos de Dalton (porque sua literatura já se tornou, de fato, uma espécie de religião) reprovarão, por certo, o que talvez tomem como uma derrapada no sentimentalismo. A plateia xinga o babuíno, e ele “em desprezo nos vira as costas, exibe o traseiro lisinho e róseo”.
Se a platéia deseja o pior, o macaco lhe dá o pior mesmo. No lugar das gracinhas, a forte verdade do corpo. Conclui o narrador, com uma fraqueza rara nos relatos do escritor: “Ninguém se ilude — é um de nós”.
Raro momento de piedade em uma escrita dominada pelo escárnio, a tristeza surge porque, de repente, naquele mundo de marionetes, o narrador, onde menos espera, vê a si mesmo. Ali estamos nós: somos aquele babuíno que, enredado já agora não nos fios dos títeres, mas nas grades do civilizado, expõe sua desolação. Como única resposta às zombarias, só lhe resta exibir a animalidade.
A dor dos personagens de Dalton surge nos detalhes, nas miudezas desprezíveis, na rotina mórbida da existência, enfim, naqueles pormenores odiosos que, dia a dia, em silêncio, mas com a persistência de um martelo, roem nossa liberdade. Viver, Dalton nos leva a pensar, é resistir a esse achatamento. Mas será possível? A julgar por suas narrativas, não. Seus personagens — como animais presos em grades cobertas de ferrugem — não têm escolha. Já não são donos de seu tempo.
Desprovidos do vermelho do sangue — que nos injeta a fúria e ajuda a existir —, os seres de Dalton Trevisan, anêmicos e descoloridos, habitam um mundo automático. Seus movimentos lembram as convulsões epilépticas que atacam o anão Santuro: movimentos autônomos, sofrido macaquear que, no fim, delimitam o humano. O modelo médico da epilepsia, com seus sintomas de repetição e seu domínio inacessível, não deixa de expressar, ainda que de modo cruel, a maior parte da vida de todos nós.
A mim, Dalton me obriga a pensar com quantas ilusões de autonomia revestimos nossas existências. Mas não consigo deixar de pensar, também, que, ao apontar a ferida que nos constitui, Dalton nos “mata” um pouco.
Pode-se dizer que ele “desnuda” seus personagens. Mas desnudar é arrancar as roupas e Dalton faz outra coisa: vampiro bem treinado, lhes suga o sangue. A vida, para os miseráveis seres de Dalton, não tem saída. O homem que, em “Uma rosa para João”, vende a filha “por um tantinho de pó” é o protótipo do prisioneiro. Dele foram arrancadas todas as ilusões. Ainda bem, talvez pensem os leitores mais pragmáticos. Penso, ao contrário, se não lhe foi arrancado o próprio homem.
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Ilustração: Dalton, o Vampiro de Curitiba, em traço de Marco Jacobsen.
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