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"Trump é profundamente rejeitado na Nova Inglaterra, o berço dos EUA, assim como Bolsonaro é rejeitado no Nordeste, o berço do Brasil, são arrivistas novatos dentro do profundo caldeirão social e cultural dos países".
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(Enquanto isso, crescem a apreensão e a perplexidade diante da catástrofe que se abate sobre o Brasil em face da covid-19, ante a inacreditável postura da principal autoridade da República).
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(Enquanto isso, crescem a apreensão e a perplexidade diante da catástrofe que se abate sobre o Brasil em face da covid-19, ante a inacreditável postura da principal autoridade da República).
Por André Araújo
A longa vida dá ao observador uma vantagem. Ele já viu muitas ondas geracionais na sociedade e pode, desse conjunto de percepções, deduzir várias análises históricas.
O mundo antigo, aquele que veio da sociedade anterior à Segunda Guerra, se manteve socialmente íntegro até a virada dos anos 50 para a década de 60. Foi uma mudança nítida, perceptível a olho nu. Até 1958, 1959, a sociedade brasileira, parte da sociedade ocidental, mantinha padrões tradicionais no cotidiano, nos costumes, na cultura.
A mudança veio com o rock, com a juventude transviada, com a pílula, foi uma mudança rápida e violenta que se inicia de 1960 em diante, mudaram as roupas, os valores, a linguagem. A geração “Brasília” foi inaugurada em 1960, sai o samba canção carioca e se infiltra a música pop americana, com seu gestual e atitudes.
Até o fim da década de 50 as pessoas se vestiam sempre de terno e gravata para ir ao Centro de São Paulo, nos bancos e cartórios todos os funcionários estavam sobriamente vestidos, nos restaurantes finos, nos teatros e até nos cinemas as pessoas se “aprontavam”, usavam a melhor roupa para se mostrar bem, as apresentações nas famílias das namoradas e futuras noivas eram formais e protocolares, todos procuravam se apresentar bem dentro dos modos e maneiras civilizadas, mesmo nas classes humildes.
A mudança dos anos 60 trouxe uma nova geração já mais revolucionária, não só nos costumes, mas também na visão ideológica, já caminhando para a esquerda.
O governo militar de 1964 se encontrou com uma sociedade diversificada, complicada, a esquerda crescia mesmo durante a ditadura, a pílula liberou a sexualidade, na música Elvis Presley influenciava na roupa, nos penteados, nos gestos, a nova música brasileira dos Festivais era o hino de uma época que se projetou até o fim dos anos 80, MAS ai já nasce uma nova onda social, diversa e emergente, com uma nova sociedade saída do ciclo de real crescimento econômico, que começa no Governo JK e continua nos governos militares, que produziram um salto econômico e industrial gerador de novos empresários, novos ricos e nova classe média, uma nova sociedade emergente.
A SOCIEDADE DOS ANOS COLLOR
Uma nova onda social com uma nova sociedade nasce na virada dos anos 80 para os anos 90. Os novos ricos que vem dos “anos dourados”, quando o Brasil cresceu 11,3% em um ano (Governo Medici), fruto de um projeto nacional de desenvolvimento que fez o Brasil crescer de forma exponencial com base em grandes empresas estatais e BNDES.
Essa nova geração de ricos e classe média alta explode no governo Collor e entra em cena. Gente que parecia escondida e não se via antes aparece nos restaurantes e nos aviões, de onde vieram? Do dinheiro novo dos anos dourados de 50 a 80, é a geração que vem após os pais pioneiros de novos negócios, aparece agora.
Começam a desaparecer os bons modos que ainda existiam na alta classe paulistana, herdeira dos barões do café. Lembro que nos almoços de domingo no Ca D´Oro e no Tatini se viam senhores de terno e gravata naquele dia e naquele horário, onde hoje vão de short de jogador e sandália havaiana, ostentando cafajestice e breguice.
Lembro uma conversa na pista de jogging do Clube Paulistano, logo que Collor foi eleito, um companheiro de caminhada, médico cirurgião plástico da moda, disse batendo no peito “Agora temos um Presidente que sabe das coisas, depois da campanha foi tirar férias nas ilhas Mauritius e veja só, ele alugou um jatinho na Suíça, coisa fina”.
Era uma nova sociedade que se projetava, a elite que sonhava com Miami, a mesma Miami que conheci em 1949 como o lixão da decadência, em NY diziam “lá não é América”, cidade meio fantasma cheia de velhos e doentes, Miami só renasceu nos anos 60 graças à migração em massa da classe média e rica cubana que tomou a cidade para si e a transformou em polo financeiro e comercial, cidade que até hoje dominam completamente. Miami, até 1950, não tinha se recuperado da crise de 1929 e, durante a Guerra, foi cidade hospital de soldados convalescentes nos seus hotéis fantasmas, a Miami de hoje é uma recriação dos cubanos. A nossa elite collorida via então em Miami a modernidade associada ao governo Collor, essa mesma elite que se projeta como elite social endinheirada, afastada a elite de boas maneiras que ainda existia nos anos 50 e que vinha da Era do Café, dos quatrocentões, da Semana de Arte Moderna de 1922, das aulas de piano com a professora Dinorah de Carvalho e de violão com Inezita Barroso. Conheci essa época no seu final, ainda havia as grandes damas da sociedade, os cavalheiros, as pessoas finas e educadas, dava-se alto valor a modos e comportamentos educados.
A Era Collor sepultou essa “ancien societé” paulistana que virou peça de museu, embora ainda existam nichos pequenos, mas discretos que não se exibem por pudor.
Alguns desses nichos são ainda economicamente muito poderosos, mas quase invisíveis porque não se confundem e não se misturam com arrivistas novos ricos.
O padrão até 1950 era do industrial filho de imigrante que educava seus filhos em um nível cultural mais alto, gente de avô humilde quando São Paulo já era refinada e culta.
Esse padrão acabou na Era Collor, o pai rico cria um filho também rico, mas arrogante e boçal, a cultura passou longe e nem pai e nem filho fazem questão dela, aliás a desprezam.
Então formou-se toda uma vasta classe rica economicamente, mas desprovida de modos, refinamento, curiosidade cultural, cujo passatempo era esnobar pelo dinheiro.
Essa nova sociedade rica e inculta, vidrada em lojas de grife aqui e especialmente no exterior, metida a conhecer vinhos sem ter a cultura antecedente indispensável para tanto, geralmente se casam com semelhantes, as peruas de bolsa Prada, igualmente alheias a tudo o que não for o que parece chique, todo esse vasto grupo social, grande na cidade de São Paulo, maior ainda no interior do Estado, muito maior ainda nos Estados ao sul, não tão grande no Norte e Nordeste, por uma questão de raiz cultural mais antiga.
O elo que solda esse grupo é o DESPREZO PELO BRASIL, pelo seu povo e cultura, o fascínio pelos Estados Unidos, sem conhecer a realidade americana fora dos shopping centers. Nesse grupo está o núcleo central do chamado “mercado”, aqueles que por desconhecerem o Brasil, sua História e cultura, tem como modelo realidades estrangeiras que mal absorveram e portanto mal entendem, conhecem apenas a superfície de países centrais, sem conhecer sua ultra complexa história social e econômica, absorvem apenas a superfície de alguns aspectos charmosos dos EUA, da Itália, da França, sem conhecer as intrincadas variáveis que formaram esses países e suas sociedades.
O DESPREZO PELO BRASIL é o núcleo central da sociedade bolsonarista, no balaio entram desprezo pela Amazônia, maior riqueza ecológica do planeta, ora em fase de destruição acelerada e aplaudida, desprezo pela cultura indígena, pela cultura africana, pela vasta literatura brasileira dos Séculos XIX e XX, da ultra sofisticada História do Brasil dos Imperadores, um Brasil Habsburgo único nas Américas, com um pedigree que nem os EUA tem. Desprezam porque desconhecem essa riqueza histórica e cultural das mais importantes do planeta, escritores brasileiros, não poucos, foram traduzidos em dezenas de idiomas, a arquitetura moderna brasileira tem prestígio mundial, tudo isso é desprezado por essa classe alta ignorante que tira seu ganho do País sem respeita-lo e sem solidariedade com seus compatriotas mais humildes.
Qual o ethos, a raiz profunda desse comportamento, específico do Brasil, que não há na Argentina, país que nas suas maiores agruras econômicas é sempre defendido por suas classes altas, o orgulho argentino chega até a ser citado como defeito.
Na minha observação que vem de dentro dessa classe onde nasci e vivo, vem da “cultura do imigrante”, por isso ela é menor no Norte e Nordeste. O imigrante que veio para o Brasil sudeste e sul foi MUITO BEM ACOLHIDO pelo País anfitrião, mas parte desses imigrantes manteve um certo ar de desprezo pelo Brasil porque se achavam de uma sociedade superior àquela do Brasil do Século XIX e começo do Século XX. Nem todos pensavam assim, mas parte grande tinha uma visão depreciativa do Brasil, mesmo sendo este o País que os acolheu muito bem, sem preconceitos e xenofobismo, QUE HAVIA EM ABUNDÂNCIA NOS EUA, onde italianos eram vistos como gente de 3ª classe quando chegaram.
Esse desprezo imigrante pelo Brasil, NEM TODOS É BOM FRISAR, foi a semente de um subproduto ideológico que, a partir do DESPREZO PELO PAÍS, gerou o bolsonarismo na classe média alta. Uma pseudo elite que defino como “elite Miami” pelo seu fascínio por essa estranha cidade, mais cubana que americana, pior ainda se for para Orlando, uma periferia em relação a Miami, esse núcleo onde muitos fazem cursos nos EUA e lá absorvem habilidades, MAS não o que a cultura americana tem de melhor que é o sentido de respeito à lei, ao coletivo, às instituições e respeito aos valores nacionais, dos cursos voltam com a arrogância de quem sabe tudo e usam mais como passaporte social do que como profissional.
Essa sociedade “enclave” dentro de um País hospedeiro lembra os 300 mil italianos em Alexandria no Egito, nos tempos do Rei Farouk, um gueto dentro de um País pobre, por isso, mesmo expulsos por Nasser após estarem no País por mais de cem anos, eram estrangeiros de 4ª geração no Egito.
Lembro que Vargas percebeu a existência desses núcleos e os combateu ferozmente. Em Santa Catarina, na década de 30, em certas regiões não se falava português, em São Paulo nas famílias italianas, ainda na década de 50, como a da minha bisavó paterna, se falava italiano após estarem no Brasil há 60 anos. Nos EUA a primeira coisa que o imigrante perde é a língua anterior, se não falar inglês bem está perdido, a forte cultura anglo-americana OBRIGA o imigrante a rapidamente se assimilar.
NA POLÍTICA
O rebrotamento de uma classe média alta anti-brasileira que sai do armário nos anos Collor já podia ser percebida na política. Na eleição para a presidência da FIESP de 1986 o industrial Mario Amato, filho de italianos, tinha horror ao PT e a tudo que o PT representava, enquanto o presidente anterior, Luis Eulalio de Bueno Vidigal Filho, de tradicional família brasileira acolheu Lula, com ele se confraternizou e entendeu sua luta. Vidigal era do Brasil antigo e sólido, Amato era a cultura imigrante, pessoalmente boa pessoa, meu amigo e chefiei sua campanha para a presidência da FIESP, mas trata-se aqui de uma questão mais ampla, de raízes nacionais e de visão de País.
A Era PT foi muito mal vista por esse grande grupo social, o “pau de arara” Presidente era um acinte, piadas não faltavam, TODOS GANHARAM DINHEIRO NA ERA PT, mas não adiantava, a rejeição era muito mais profunda, era cultural, era o Brasil Miami em revolta contra o Brasil profundo que vinha das raízes históricas de Pernambuco, de uma rica história de séculos de um País com bela trajetória de formação onde entram índios, portugueses, africanos, holandeses. Lula tem obviamente ascendência holandesa, basta observar seus traços em qualquer pintura flamenga. A profunda raiz africana mestiçada que faz do Brasil o País mais multiétnico do mundo, tudo isso causa rejeição em núcleos arrivistas de pouca antiguidade no País e que, no seu lado bom, fizeram a riqueza do sul do Brasil, região chave do bolsonarismo, que por essa mesma razão é fraco no Nordeste onde suas raízes antibrasileiras não encontram ambiente, o Nordeste é o berço do Brasil e teve pouca imigração nos Século XIX e XX.
Curiosamente o fenômeno Trump nos EUA tem similaridades, seu eleitorado NÃO está na Costa Leste, os EUA de raiz, mais antigo, está no meio oeste, zona de imigração mais recente. Trump, assim como Bolsonaro, é americano de 2ª geração, seu avô era alemão, como o de Bolsonaro era italiano, Trump é profundamente rejeitado na Nova Inglaterra, o berço dos EUA, assim como Bolsonaro é rejeitado no Nordeste, o berço do Brasil, são arrivistas novatos dentro do profundo caldeirão social e cultural dos países.
UMA ANÁLISE APENAS
Esta análise é superficial, fruto de vivência e observação no núcleo central da classe média alta paulista. Nos clubes, escolas e edifícios, onde circulo, o bolsonarismo é dominante, um progressista que se revele será objeto de ostracismo social, um intelectual arejado terá que procurar seu grupo, não terá espaço em varandas gourmet de bons edifícios dos Jardins, se for esposa e mãe será segregada em grupos de mães nas escolas, o fenômeno bolsonarista é forte nesse núcleo, essa é uma realidade a ser considerada na política, apenas um desastre monumental a mudará a curto prazo, toda política tem uma raiz social e cultural antecedente que a explica e substancia, esta é a que vejo. - (Jornal GGN - Aqui).
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