domingo, 24 de maio de 2020

APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS À DITADURA E O 'CONSTITUCIONALISMO SIMCA CHAMBORD 1964'

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Por trás desta posição supostamente ancorada na Constituição subjaz a pretensão de alguns grupos que ao longo da história do Brasil almejam recorrentemente impor alguma das versões do Estado de exceção e de ditadura 


Por Roberto Bueno 

Quando o Estado de exceção começa a ser desenhado os seus pretextos podem ser vários, mas usualmente estão articulados ao redor da instabilidade e (supostos) sérios riscos ao sistema cujo limite seria o próprio desmoronamento. Sob esta situação-limite os espíritos autoritários que sobrevivem em todos os momentos históricos arregimentam forças para destruir o Estado democrático de direito e o seu fundamento constitucional, embora a estratégia deste grupo não necessariamente ataque a validade da Constituição, senão que procure instrumentalizá-la, valendo-se de interpretações extensivas e tortuosas de seu conteúdo para dar guarida e verniz legal aos seus interesses.
Nestes dias em que nada, e rigorosamente nada, é mais importante do que a atenção cotidiana ao trauma imposto à nação, ceifando vidas aos milhares, sem embargo, é importante não descuidar-nos de vislumbrar o nada auspicioso horizonte que se aventura. Neste sentido apontamos para o militarismo ditatorial contraditório com o teor da Constituição de 1988 que vem sendo apontado e defendido abertamente por muitos setores, tal como o fez a Deputada Federal governista Bia Kicis (PSL-DF) recentemente neste dia 21.06.2020, utilizando espaço na Câmara dos Deputados para defender o que qualificou de “intervenção militar constitucional”, nos termos de art. 142 da C.F./88.
Por trás desta posição supostamente ancorada na Constituição subjaz a pretensão de alguns grupos que ao longo da história do Brasil almejam recorrentemente impor alguma das versões do Estado de exceção e de ditadura, ao arrepio, portanto, de quaisquer orientações populares e sua institucionalização democrática para além de uma mera formalidade para distrair o grosso da população desavisada. A este grupo pertencem justamente homens como Hamilton Mourão (que recentemente publicou artigo que deixou entrever o que pensa e planeja para o Brasil), mas também o General Eduardo Villas Bôas, que frequentemente é dado a publicar pílulas laudatórias da cultura reacionário-autoritária, assim como Ives Gandra da Silva Martins. Todos eles compartilham das crenças de fundo de grupo elitista ressentido com as origens e o ethos do povo brasileiro, pretendendo impor-lhes à força e fórceps uma pesada sela ao estilo dos mais de três séculos de escravidão sofrida pela maioria da população brasileira até a abolição formal que ocorreu apenas através da Lei Áurea em 13.06.1888, mas que ainda habita tão vivamente a memória e as ações de tantos.
Gandra é um renomado professor conservador, de longa data emérito da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, e também homenageado professor e contumaz colaborador intelectual da Escola Superior de Guerra (ESG). Em meio a presente crise em que os militares ocupam posição central, no 05.04.2020 que Gandra concedeu entrevista ao G1/SP e sustentou que em qualquer circunstância os militares respeitariam a Constituição. Isto deve ser considerado em perspectiva histórica, e ao fazê-lo recordamos entrevista concedida à Agência O Globo em 21.09.2018, na qual Gandra apresentava como tema de sua (suposta) preocupação os “riscos à democracia”, algo que, de forma alguma, o impedia de declarar voto para Jair Bolsonaro, nem no primeiro nem no segundo turno das eleições daquele ano de 2018. Questionado se o seu era um voto anti-PT, Gandra esquivou-se afirmando que não, senão que, isto sim, era um voto por “convicção”. É preciso reconhecer à luz de seus posicionamentos políticos ao longo da história que esta declaração foi recheada de sinceridade.
Na citada entrevista concedida ao final de 2018 Gandra ainda apresentava publicamente veleidades constitucionais, destacando que a “espinha dorsal da Constituição tal qual temos hoje, de equilíbrio dos Poderes e garantias individuais, é muito boa e não pode ser mudada”. Na oportunidade Gandra não demonstrava quaisquer preocupações com o eventual aproveitamento de militares no Governo Bolsonaro, “nenhum receio”, sublinhava ele, senão o contrário, pois dizia ele, “Tenho impressão de que haverá mais disciplina, a corrupção vai ser combatida e respeitarão profundamente a Constituição. Eu estive com o general Villas Bôas (comandante do Exército) há cerca de um mês e ele me disse que os militares sabem que são uma instituição do Estado, não são instituição de um governo e que a função deles é garantir os Poderes constituídos. Foi o que sempre lecionei a eles”, algo absolutamente desmentido pelos fatos, pois hoje os militares que se contam na casa que supera os três mil em todas as esferas da administração adotaram postura de compromisso e defesa deste Governo, para muito além de postura de Estado, tal como reclamava Gandra em sua entrevista à Agência O Globo de 21.09.2018.
Considerando que Gandra reitera esta inabalável crença no distanciamento dos militares relativamente ao controle do poder é de questionar se teria esquecido as declarações de Villas Bôas que constrangiam o STF às vésperas de que realizasse julgamento de HC que poderia beneficiar Lula e influenciar decisivamente o processo eleitoral de 2018 ao descortinar o horizonte para a sua livre escolha popular? Foi este o constitucionalismo que Gandra ensinou aos seus pupilos militares? Acaso estamos a observar que as ações e escolhas políticas e institucionais do atual governo militar percorrem caminho diverso daquela conduta de Villas Bôas? É disto que Gandra se orgulha de ter lecionado aos militares a ponto de garantir a fantasia de que se manterão submissos aos ditames constitucionais? Será motivo de real orgulho ter ensinado a tergiversar a vontade popular e, logo, participar como apoiador de regimes que tanto estimulam golpes de Estado como sustentação teórica de militares que rotineiramente vêm a público declarar que “não darão golpe de Estado”, tal como o fez no dia 22.06.2020 o General Heleno, na qualidade de Ministro-Chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional)?
O cenário em que decisões contrárias ao regime militar sejam tomadas estimula às reações do grupo fardado “recordando” que não recorrerá ao uso das armas. Não é realmente tranquilizador receber um aviso formal das Forças Armadas de que elas não irão tirar os tanques dos quartéis com dia e hora marcada? Enquanto isto, no outro lado da pinça, de terno e gravata, juristas como Gandra vem a público declarar que os ministros do STF têm adotado decisões “fora de sua zona de competência”, o que configuraria, portanto, invasão às competências do Poder Executivo. Os objetos ocultos do comentário de Gandra foram as decisões dos Ministros Alexandre de Moraes de impedir a nomeação de Alexandre Ramagem para a Direção-Geral da Polícia Federal e do Ministro Luís Barroso de proibir a extradição de diplomatas venezuelanos em plena pandemia do Covid-19. Mas se realmente estas decisões são invasivas às competências do Poder Executivo, onde estava a sabedoria científica de Gandra quando o Ministro Gilmar Mendes impediu que a então Presidente Dilma Rousseff nomeasse o ex-Presidente Lula para ocupar a Casa Civil? Onde estava a sua indignação republicana e patriótica e a sua aguda percepção de que o STF estaria a causar graves problemas institucionais para o país a ponto de justificar a aplicação de sua tortuosa interpretação do art. 142 da C.F./88?
Ao censurar as decisões de Ministros do STF por suposta invasão de competência da Presidência da República Gandra argumenta que “O Supremo tem que ser um guardião da Constituição. Não pode ser legislativo positivo, não pode entrar nas competências de outros Poderes”, e que ao tangenciar tal mandamento constitucional a Corte tem gerado “instabilidades” no país, mas a sua preocupação tem limites, pois mantém barulhento silêncio relativamente às manifestações golpistas ocorridas todas as semanas com frequência do Presidente da República, movimentos que apregoam a intervenção das Forças Armadas, a perseguição de políticos destacados do país e também o fechamento do STF. O que tem Gandra a dizer enfaticamente a este respeito? Até aqui, resta claro, a sua defesa é de um regime militar ao qual deita belo tapete jurídico para que adquira relativo lustre jurídico, mesmo quando não passe de (mais) um golpe militar. Sem embargo, Gandra lança mão da retórica e retruca que as ações de Ministros do STF vêm causando “riscos à democracia” quando estes continuam sendo gestados onde historicamente o foram, a saber, na intersecção da farda e do mundo da banca e das empresas, grei da qual sempre foi intelectual orgânico e prestou incondicional apoio.
Gandra reafirma esta vocação ao abrir brecha para o golpe de Estado através da interpretação do citado art. 142, segundo a qual em caso de conflitos de Poderes, um deles poderá recorrer às Forças Armadas, que terão como encargo “repor a lei e a ordem”. Mas qual o perfil e compromisso dos militares de hoje relativamente à Constituição à qual foram adestrados em grande parte pelo próprio Gandra? Na citada entrevista à Agência O Globo concedida em 21.09.2018, Gandra era taxativo quanto a que os militares respeitariam a Constituição, ou seja, que “Os militares de hoje não têm nada a ver com os militares de 1964”, e o que é mais, buscando apoio em sua autoridade de professor emérito há 29 anos da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, reafirmava ser um conhecedor da “mentalidade deles”, reiterando que a sua avaliação era de que “Eles são hoje escravos da Constituição”, eis que “Quando se fala com eles, dizem que respeitarão o Artigo 142 da Constituição, que dita as três funções das Forças Armadas”.
Mas bem, qual era mesmo a interpretação deste art. 142 C.F./88 que eles mantinham? Qual era, inclusive, a interpretação do art. 142 C.F./88 que o próprio Gandra sustentava? Esta era outra questão que permaneceu oculta e só viemos a ficar conhecendo agora quando os tempos são duros e difíceis, e fomos apresentados a uma interpretação extensa, por não dizer elástica, que favorece aqueles que pretendem interferir no curso da vida democrática do país. É aqui que somos apresentados ao papel que Gandra propõe às Forças Armadas: o de um “Poder Moderador”. Ele insiste que não se trata de uma “ruptura institucional”, que pretende dar continuidade ao modelo de golpes do tipo de 1964, quando o STF e outras tantas instituições nacionais (assim como os EUA) impuseram um verniz de legalidade ao movimento civil-militar absolutamente golpista. Insiste ele que não se trata disto, senão que em sua entrevista ancora a sua autoridade em sua qualidade de um velho professor de direito. Temo que não, e que a sua melhor e mais sincera descrição seja a de alguém que mantenha uma visão ultraconservadora, autoritária, antidemocrática e militarista da organização social, e mofada por isto, em que a Constituição é tão somente uma formalidade para decorar o ambiente, assim como certas bibliotecas guardadas na casa de intelectuais envelhecidos, delas pouco apreciadores, e que em nada honram a melhor literatura democrático-libertária que apenas orna os seus ambientes de trabalho.
Devemos considerar que a Constituição de 1988 projetou uma democracia, e a interpretação teleológica da Carta não reserva espaço para a leitura de Gandra de que as Forças Armadas sejam um “Poder Moderador”, e que elas permaneçam à margem da institucionalidade democrático-constitucional é a regra única e geral. Esta leitura é congruente com a sua concepção política, a exemplo de quando a extrema-direita avançava e Gandra apenas a descrevia como mera “onda conservadora”, apresentando o cenário em lições aos seus alunos mensurando-o através de régua segundo a qual nestes tempos já não mais se tratava de diferenciar entre esquerda e direita, “é coisa do passado”, e que agora deveríamos apenas ater-nos a diferenciar entre governos “eficientes” e “ineficientes”, recorrendo a neutralização da política e entronização do elitismo burocrático. E hoje, como Gandra estaria a classificar este atual governo militar cuja “eficiência” é mensurável à razão do milhar em mortes diárias de nossos compatriotas?
Muito, muito curioso mesmo, contraditório, a dizer verdade, que Gandra defenda a ideia de eficiência como parâmetro para avaliar e aprovar governos e ainda encontrar espaço para manter apoio à atual administração militar. Uma das dimensões de sua brutal contradição é a sua conhecida religiosidade, que orientou a sua defesa do que entende ser o direito à vida, aplicando-a em sua intransigente oposição ao direito ao aborto. Assim, em carta aberta publicada na Lex Magister, Gandra defendia ferrenhamente a ideia de que não poderia ser admitida a “destruição de seres humanos em sua forma embrionária por mera curiosidade científica, além de ferir a inviolabilidade do direito à vida […]”, e também em artigo datado de 2009 publicado na revista Lex Humana na Universidade Católica de Petrópolis, Gandra expressava com toda clareza a posição crítica do que qualificava como “homicídio uterino”, remetendo que as técnicas para fazê-lo remetiam aquelas usadas em “campos de concentração nazistas”, oportunidade em que reiterava que o direito à vida é o mais relevante dentre os direitos constitucionais, sublinhe-se, “indiscutivelmente” o mais relevante dentre todos.
Hoje quando Gandra empresta todo o seu apoio ao Governo militar encabeçado formalmente por Bolsonaro, não mantém qualquer espécie de prurido quanto às “técnicas aplicadas em campos de concentração nazistas” que são utilizadas para matar milhares de pessoas no território nacional, notavelmente no que concerne às políticas (não) adotadas quanto ao Covid-19. A sua contradição é superlativa quando presta apoio a uma variante virulenta de regime autoritário militar comprometido com o extermínio de vidas nos bárbaros termos que estamos testemunhando nesta quadra da história, formalmente por Bolsonaro e que não tem qualquer prurido quanto às “técnicas aplicadas em campos de concentração nazistas” que são passivamente observadas para assistir a morte de milhares de pessoas no território nacional, notavelmente no que concerne às políticas (não) adotadas quanto ao Covid-19.
Neste contexto propomos recordar o que dizia o General Mourão em sua já célebre entrevista à Globonews em 2018 no período pré-eleitoral quando fez referência às “aproximações sucessivas” – a um regime militar ditatorial – e à possibilidade de um auto-golpe, tal como agora sustenta o eixo civil da pinça encarnada por Gandra. Este processo sofre ligeira pressão em face da dissociação interna da direita entre o grupo extremista (no governo) e de centro-direita (que ocupa diversos postos na administração do Estado), que ameaça com fazer avançar o impeachment que, teoricamente, poderia levar de roldão ao próprio Mourão e o conjunto do governo militar.
Quando Gandra vem a deslegitimar decisões dos Ministros do STF brandindo o art. 142 da C.F./88 está a dar mais um passo dentre as “aproximações sucessivas” anunciadas pelo General Mourão, e que levará a transitar deste regime militar para uma aberta ditadura militar. O que estas correntes autoritárias de pensamento pretendem é impedir que as instituições democraticamente compostas exerçam seu poder de controle e frenagem ao titular do Poder Executivo e seu grupo no poder que dão provas manifestas de pretender exercê-lo nos limites da legalidade, senão à margem de limites. Isto é compatível com a declaração da citada Deputada Federal Bia Kicis neste dia 21.06.2020 na Câmara Federal, discursando em favor da aplicação da interpretação do art. 142 da C.F./88 nos termos propostos por Gandra, constituindo sinal de advertência para que as instituições, especialmente o STF, recuem no exercício de suas prerrogativas institucionais, que estes setores golpistas apresentam como se se tratasse de uma intervenção legítima, alegando a citada Kicis tratar-se de “último remédio constitucional que permita um presidente atender o povo que o elegeu”, como se a eleição para o Executivo Federal outorgasse poderes imperiais acima da Constituição.
Estes são termos que expressam a têmpera de dias marcados pelo odor de fardas sujas de barro e, hoje bem sabemos, não pouco sangue da população brasileira, atirada ao covil em que as feras relutam adentrar, pois ali habitam as bestas que o inferno engendrou, e rejeitou. Distanciado e avesso ao núcleo duro da Constituição de 1988, a democracia e o Estado social democrático de direito, o que apresenta e representa Gandra é um “constitucionalismo Simca Chambord modelo 1964”.  -  (Fonte: Aqui).
Roberto Bueno – Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

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