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"Em poucas semanas, porém, a realidade desceu sobre os devaneios da cúpula de generais. Não acreditando que a Inglaterra teria condições de enviar tropas a 12.800 km de distância, e considerando estar o real perigo de guerra na tensão com o Chile, na fronteira sul, o governo argentino deslocou soldados inexperientes e mal treinados para ocupar as Malvinas."
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Desastre, teu nome é incompetência.
Por Celso P. de Melo
Todos os regimes democráticos se parecem, no respeito às leis e a seus cidadãos. As tiranias, que nisso deles também se diferenciam, eventualmente colapsam; cada uma à sua maneira.
1982 – Dia dois de abril. Uma multidão eufórica comemorava diante da Casa Rosada a invasão das Ilhas Malvinas, uma ação ousada da ditadura argentina. O General Galtieri, presidente da vez, acreditava ter dado o golpe de mestre, ao obter o apoio unânime da população a uma iniciativa do até então detestado regime militar. Ao interpretar erroneamente os sinais da diplomacia americana e a aparente fraqueza interna da Primeira-Ministra Margareth Thatcher, a junta militar autorizou o desembarque no gelado arquipélago austral. Por pouco mais de dois meses, a ilusão da vitória empolgou o povo argentino, enganado sobre o desenrolar do teatro de operações navais e terrestres.
Em poucas semanas, porém, a realidade desceu sobre os devaneios da cúpula de generais. Não acreditando que a Inglaterra teria condições de enviar tropas a 12.800 km de distância, e considerando estar o real perigo de guerra na tensão com o Chile, na fronteira sul, o governo argentino deslocou soldados inexperientes e mal treinados para ocupar as Malvinas. A operação rapidamente se mostrou um desastre logístico, com carência de equipamentos e falta de planos operacionais para a efetiva permanência das tropas a menos de 500 km do continente. Na frente de batalha, enquanto os soldados britânicos recebiam três refeições quentes ao dia, os recrutas argentinos encaravam a fome e o frio, por falta de rações e uniformes adequados. O contumaz desrespeito da ditadura para com os cidadãos argentinos se manifestou no tratamento atroz dado por alguns oficiais a seus soldados. A derrota se fez oficial no dia 14 de junho, à custa de um vexame universal e com o ônus de quase 650 baixas argentinas. Do lado britânico, 255 mortes. Três meses depois, Galtieri é afastado do poder e a ditadura militar estava ferida de morte, que se concretizou no ano seguinte, com a convocação de eleições.
2020 – Primeiro semestre. Ao militarizar o enfrentamento da crise do coronavírus, o regime bolsonarista pode ter cometido erro de avaliação de igual magnitude. A atitude negacionista, com a demora em tomar medidas preventivas, a improvisação na compra de insumos e equipamentos, e na logística de sua distribuição, o aparelhamento do estamento governamental por pessoas obedientes, antes que competentes, a falta de foco e o charlatanismo mais grosseiro na promessa de remédios milagrosos representam uma marca que estará indissoluvelmente associado ao atual governo federal. Uma ferramenta básica em qualquer guerra, a coleta de informações, é sujeita à manipulação. Até hoje, quase três meses depois da chegada da pandemia entre nós, o Ministério da Saúde se mostra incapaz de organizar um esquema confiável, que opere 24 horas por dia, 7 dias por semana, para contar o número de pessoas infectadas, mortas e recuperadas, e mapear sua distribuição geográfica.
Mais um testemunho da ineficiência terceiro mundista de nosso sistema oficial de informações e de gerência de crises. Repetimos a improvisação das situações anteriores. No ano passado, diante das evidências das queimadas da Amazônia, a política governamental foi a da desinformação e da negativa. Quando do derramamento de óleo nas costas do Nordeste, até hoje misterioso, marinheiros foram enviados para a limpeza das praias em uniformes de educação física, sapatos tênis, calção e camiseta. Coube às populações locais lhes prover os EPIs necessários. O “navio grego”, um fantasma que parecia explicar tudo, desapareceu sem que nada viesse a ser esclarecido. O mito da eficiência de nossas instituições parece trincado. Decorridos vários meses desses incidentes, nenhuma cobrança lhes foi feita, nenhuma justificativa precisa mais ser apresentada.
Com a pandemia, isso não pode voltar a acontecer. As mais de 25.000 mortes de hoje (Nota deste Blog: Este artigo foi publicado há dois dias) podem vir a ser uma mera fração das que ainda estão por ocorrer. Em memória dos que se forem e do sofrimento de suas famílias, desta feita não poderemos esquecer. Quando a crise passar, os responsáveis pelo descalabro que ora injustificadamente enfrentamos precisam ser responsabilizados, se não criminalmente, ao menos em um julgamento moral, como o dos Tribunais Bertrand Russel dos anos 60/70.
Na Argentina dos anos 80, o Relatório Rattenbach, instituído pelo próprio regime em decomposição, recomendou punição severa aos líderes responsáveis pela trágica campanha. Galtieri foi sentenciado a doze anos de prisão, por conta das quase mil mortes e de um fiasco histórico. No Brasil de hoje, com a previsão de mais de cem mil vítimas da pandemia, como mensurar o crime do enorme desprezo pela vida humana e da fria sociopatia manifesta no desrespeito a cidadãos forçados a pernoitar em filas apinhadas em busca de um auxílio emergencial e na ideia de que a economia deve ser salva por uma imunidade de rebanho, a ser alcançada pelo sacrifício dos mais vulneráveis? - (Fonte: Aqui).
Celso P. de Melo – Professor titular do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco
Celso P. de Melo – Professor titular do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco
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