sexta-feira, 17 de abril de 2020

UM POUCO DE HISTÓRIA: A MEMÓRIA DO NEW DEAL ENSINA

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Enquanto o presidente afirma que a covid-19 se abateu sobre o Brasil quando a economia se apresentava em "plena ascensão", o que está um tanto distante da realidade, enquanto o senhor Mansueto Almeida, secretário do Tesouro, diz que o Brasil vai alavancar seu sucesso a partir de concessões e privatizações (tradução: patrimônio nacional exposto na bacia das almas), e enquanto somos informados de que já há estados brasileiros chegando ao comprometimento de suas UTI's, e que o coronavírus se apodera de favelas (como a da Rocinha), conforme acabamos de ver na GloboNews, acendendo luzes vermelhas pelas periferias e demais regiões, este Blog opta por sugerir que confiramos a aula abaixo, ministrada pelo professor Ivan Salomão (que cunhou o termo 'coronacrise'), roteiro eficaz para motivar/inspirar a retirada de nações do fundo do poço.


A História Ensina 

Por Ivan Salomão 

Como se sabe, o presidente da República assumira o governo em uma situação dramática. Após três eleições consecutivas do partido adversário, o país amargava a crise econômica mais pungente de sua história. A conjuntura com que o novo mandatário se depararia era, de fato, tétrica: queda brutal do PIB, exportações definhando, indústrias falindo diariamente, sistema financeiro colapsado, agricultura em frangalhos, desemprego em níveis estratosféricos, sucessivos suicídios de empresários… O país se encontrava à beira do abismo.
A envergadura do desastre nacional exigia a aclamação de um homem reconhecidamente preparado para enfrentar os desafios que a história se lhes impunha. De modo ponderado e responsável, o povo soube corresponder à altura daquelas adversidades ao eleger um comandante tenaz em cujo currículo havia uma destacada passagem pelas Forças Armadas. O ano era 1932. O presidente, Franklin Delano Roosevelt.
Ciente da agudeza do momento, o novo governo – cujo lema de campanha fora “agir e agir agora” – sabia não ter tempo a perder. Estopim da crise, guardou-se ao sistema financeiro a prioridade na ordem das ações governamentais. Dias após tomar posse, em março de 1933, Roosevelt aprovou a Lei de Emergência Bancária, por meio da qual não apenas se delegava ao governo a incumbência de intervir amplamente no sistema financeiro, como, sobretudo, se garantia aos doze bancos ligados ao Federal Reserve a faculdade de emissão monetária.
Além das diversas ações emergenciais, Roosevelt promoveu uma verdadeira reestruturação do sistema bancário norte-americano por meio da Lei Glass-Steagall, aprovada em junho de 1933. Com a nova legislação, o governo estabeleceu uma rígida regulamentação sobre os bancos a fim de se evitar que a aura de liberdade em que tais intermediadores atuaram na década anterior incitasse a formação de uma nova bolha especulativa. No mês subsequente, diante da elevada inadimplência relacionadas às dívidas imobiliárias, o presidente criou a Corporação de Empréstimo aos Proprietários de Casas (Home Owners’ Loan Corporation) para refinanciar as hipotecas dos proprietários devedores. Finalmente, em 1935, fez aprovar a Lei Bancária que concedeu plena autonomia ao Banco Central na condução da política monetária.
Causa e consequência do quadro recessivo, a deflação renitente simbolizava o pântano em que se encontrava a economia norte-americana – os preços de varejo haviam caído mais de 30% entre 1929 e 1932. Depois de desvalorizar a moeda e reduzir a taxa de juros – medidas que não lograram o efeito desejado –, o governo adotou o que foi classificado por John Keneth Galbraith como um dos um dos mais espetaculares exercícios heterodoxos na história monetária dos EUA: a compra governamental das reservas de ouro. A ousadia se justificava na medida em que membros da equipe econômica observaram, numa série secular, ser positiva a relação do preço do ouro e do nível geral de preços. Conquanto tecnicamente bem embasada, a medida apresentou resultados insuficientes para justificar a sua continuidade.
No que concernia ao setor industrial, o governo atuou no sentido de reorganizar temporariamente o quadro societário das empresas. Para tanto, sancionou, em junho de 1933, a Lei de Recuperação da Indústria Nacional (National Industrial Recovery Act), que seria operacionalizada pela recém-criada Administração da Recuperação Nacional (National Recovery Administration). De forma sumarizada, acreditava-se que, naquele momento, mercados em concorrência perfeita não eram suficientemente capazes de atender as necessidades de uma economia em ruínas, de modo que caberia ao Estado, a partir daquele momento, a responsabilidade de ensejar a formação de grandes corporações que se viabilizassem financeiramente, para, assim, garantir o interesse público. Os desequilíbrios decorrentes do estabelecimento de metas de produção, emprego, salários e jornadas de trabalho, no entanto, ensejaram críticas de diversos setores, motivo pelo qual a experiência foi descontinuada em 1935.
Em relação à agricultura, o presidente congregou todas as agências federais de crédito agrícola em apenas uma instituição, a Administração do Reajustamento Agrícola (Agricultural Adjustment Administration, AAA). A mais importante medida levada a cabo pelo órgão foi promover elevação da renda dos produtores rurais por meio de mecanismos microeconômicos. Para tanto, a AAA oferecia compensação financeira aos agricultores que diminuíssem a área cultivada com os produtos mais afetados pela crise. Por meio da redução da oferta abundante, os preços voltaram ao nível de equilíbrio em poucos meses.
A fim de garantir alguma previsibilidade aos produtores rurais, criou-se, ainda em 1933, a Commodity Credit Corporation (CCC), organização que emprestava recursos com base na safra futura: caso o preço de venda se mostrasse aquém do necessário para sua sobrevivência, o agricultor ofereceria sua produção em troca da não execução da dívida. Na prática, o governo patrocinou uma política de preços mínimos, cujo resultado final foi a formação de estoques reguladores nas mãos do Estado.
Foi na defesa dos setores mais vulneráveis, porém, que a gestão de Roosevelt adotou suas mais relevantes e meritórias medidas. Diante de uma taxa de desemprego grassava 1/4 da população economicamente ativa do país (um contingente de 13 milhões de pessoas), o governo soube, em primeiro lugar, estimular atividades econômicas com utilização intensiva de mão de obra. O mais óbvio front seria revigorar o setor da construção civil.
Para isso, fundaram-se, ainda em 1933, três instituições fundamentais para reativar a demanda agregada no curto prazo e, ainda por cima, incentivar a formação bruta de capital: (1) a Administração de Obras Públicas (Public Works Administration, PWA), a (2) Administração de Obras Civis (Civil Works Administration, CWA) e a (3) Autoridade do Vale do Tennessee (Tennessee Valley Authority, TVA).
À PWA coube gerenciar a construção de aeroportos, rodovias, hospitais e escolas; em poucos meses de atividade, chegou a empregar 4 milhões de trabalhadores. A CWA ficou a cargo da reforma de prédios públicos, conservação de parques e manutenção de rodovias. E a TVA mostrou-se duplamente inovadora ao oferecer emprego na região mais depauperada do país: o órgão encarregou-se da construção de grandes represas e barragens, da produção de energia elétrica, do controle de inundações e da navegação fluvial, além do plano de transposição do curso de rios relevantes para a agricultura da região. Até 1941, as iniciativas empregaram, por ano, 2 milhões de cidadãos nas mais de 250.000 obras realizadas ao custo de 11 bilhões de dólares: 385 mil km de rodovias, 5 mil prédios públicos, milhares de km de tubulação de água e esgoto e centenas de pontes, portos e aeroportos.
Ainda na área da construção, o governo ofereceu financiamento ao setor de expressivo encadeamento econômico e grande apelo social: o habitacional. Além de ofertar mais de 2 milhões de empréstimos para a reforma e mais 500 mil para a construção de imóveis por meio da Administração Federal da Habitação (Federal Housing Administration), o Estado patrocinou a destruição de favelas para viabilizar o levantamento imediato de lares dignos para a população urbana miserável.
Para os que não conseguiam se posicionar no combalido mercado de trabalho, a equipe de Roosevelt organizou diversos programas com o objetivo de prover auxílio às famílias desempregadas. Ainda nos primeiros meses de 1933, outorgou-se a Lei Federal de Auxílio de Emergência (Federal Emergency Relief Act), por meio da qual se direcionavam 500 milhões de dólares para o auxílio imediato, por estados e municípios, à população desvalida. Meses depois, organizou o Corpo de Conservação Civil (Civilian Conservation Corps), instituição que distribuía os jovens de famílias carentes em acampamentos para atuarem no reflorestamento, no controle de enchentes e na conservação dos solos, represas e rodovias.
Naquele mesmo ano (1933), estruturou-se a Administração de Recolonização Interna, entidade responsável pelo assentamento de cerca de 1,5 milhão de famílias em pequenas propriedades ou comunidades cooperativas – objetivo não inteiramente alcançado. De todo modo, ainda em 1936, o governo aprovou a Lei de Arrendamento de Terras, pela qual fixou pequenos agricultores em propriedades particulares ou acampamentos com assistência estatal (no total de 1 milhão de famílias até 1945). Paralela e concomitantemente, criou a Administração Nacional para a Juventude, órgão incumbido pelo pagamento de bolsas para estudantes secundários e universitários cuja contrapartida era a manutenção do vínculo acadêmico e a prestação de trabalhos auxiliares – como datilógrafos, estenógrafos, assistentes de laboratórios e bibliotecas, funções pelas quais recebiam entre 5 e 30 dólares por mês.
Para além dos projetos de expansão da infraestrutura, Roosevelt procurou consolidar e ampliar o regramento de proteção social. Em agosto de 1935, sua administração fez aprovar a Lei de Seguridade Social, um verdadeiro pacto entre diferentes esferas da sociedade para gerar fundos que financiassem a aposentadoria dos cidadãos acima de 65 anos. Em 1938, por fim, aprovou-se a Lei do Trabalho, instituto por meio do qual se formalizavam o salário-mínimo, a jornada diária máxima, as horas extras e a proibição de trabalho infantil.
E ainda que não se pretendesse torná-la a fonte precípua de recursos para o financiamento desse conjunto monumental de obras e políticas, Roosevelt entendia ser socialmente oportuna e economicamente justificável a cobrança progressiva de impostos diretos. Nesse sentido, promulgou, em 1935, a Lei do Imposto sobre Fortunas, diploma que estabelecia a cobrança de alíquotas mais elevadas sobre a renda dos ricos, super ricos e grandes corporações.
Como se vê, a gravidade do momento exigia grandeza de todos os atores envolvidos no plano de recuperação econômica, especialmente do líder máximo da nação. Em condições normais de temperatura e pressão, seu discurso quando da inauguração da segunda fase do plano não passaria de arroubo de uma certa esquerda pueril. No meio da hecatombe, porém, nada mais defensável e urgente do que redirecionar o produto social para o único propósito moralmente legítimo em épocas de provação: “Chegava o momento de cumprir uma corajosa e nova missão social, subordinando os lucros e a riqueza ao bem geral” (Roosevelt, 1935).
Para os que repisam a discussão bizantina da viabilidade fiscal exigida por tal conjunto de medidas, de fato, faraônicas, vale lembrar que, apesar da antipatia pessoal recíproca que mantiveram, Roosevelt parece ter aprendido algo nas duas oportunidades em que se reuniu com Keynes. É verdade que, no curto prazo, o New Deal resultou em aumento cavalar do endividamento público norte-americano. Uma vez superada a calamidade, porém, o governo fez valer o compromisso com a parcimônia fiscal, reduzindo o déficit público em mais de 70% até a eclosão da II Guerra Mundial.
Apesar dos vários e graves equívocos políticos e econômicos cometidos em sua administração, Franklin Roosevelt logrou retirar a economia estadunidense de uma crise jamais enfrentada. O país emergiu da Grande Depressão ainda mais poderoso (e menos desigual) do que já era, o que contribuiu para que o presidente cadeirante eternizasse seu nome no panteão dos grandes estadistas mundiais. Único norte-americano a vencer 4 eleições presidenciais, Roosevelt é considerado, não por acaso, um dos três gigantes da história política dos Estados Unidos – ao lado de George Washington e Abraham Lincoln –, e certamente o maior do século XX.
Obviamente que não se pretende aqui cotejar entidades incomparáveis. Roosevelt e o inominável pertencem a universos paralelos. Mas qualquer dessemelhança com o Brasil atual não é mero acaso. De natureza e condicionalidades completamente distintas, a coronacrise deve ser enfrentada à luz de suas especificidades e, sobretudo, das nossas possibilidades. Ainda assim, o que se observa por aqui é algo muito mais grave do que a aparente catatonia do terraplanismo sanitário. Antes fosse apenas mais um caso de miopia científica; todos sabemos que não é. Trata-se de sadismo em estado puro, politicamente calculado e ideologicamente sugestionado.
Na nave acefálica que se tornou, o Brasil de 2020 está nas mãos de um indivíduo que afirmou resolver o problema da pandemia com R$ 5 bilhões, com parte dos quais pretendia remunerar, em R$ 200 por mês, a massa miserável de dezenas de milhões de brasileiros. Diante das críticas a sua ineludível seletividade, o feiticeiro de Chicago teve, mais uma vez, que engolir a força da caneta do primeiro-ministro Rodrigo Maia. Alternativa fiscal, há; bastaria vontade política.
Acho pouco provável, mas não ficaria exatamente triste se essa oferta de 200 reais entrasse para a história brasileira como a versão contemporânea daquela derradeira sugestão para que, na escassez de pães, a patuleia petiscasse brioches.  -  (Fonte: Jornal GGN  -  Aqui).
(Ivan Salomão é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná - UFPR)

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