segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI

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"E a ausência abrasiva do marido, do pai, toma o casarão, corrói tudo. Como uma névoa sinistra de maré vinda do mar." 


Em
 Central do Brasil, o cineasta Walter Salles (...) usa a figura de Dora, a protagonista vivida por Fernanda Montenegro, para mostrar um país tentando se reconectar consigo mesmo e se reconstruir após a ditadura, a hiperinflação e o plano Collor. Em seu mais recente filme, Ainda estou aqui, o tom muda, de modo que a nossa história é encarada como uma tragédia a ser enfrentada. No gênero da tragédia, o herói atravessa seu percurso rumo ao seu destino funesto. A heroína de Ainda estou aqui é Eunice Paiva: mãe de cinco filhos, mulher do político Rubens Paiva. O destino funesto de Eunice não se dá no exato momento em que seu marido é preso pelos militares. Ele começa a se desenhar no dia seguinte, com o luto do corpo ausente, desaparecido. E é de forma sóbria e solene que Salles nos puxa para o destino de Eunice e sua família. 

O filme apresenta o cenário da tragédia: uma casa à beira-mar onde vive uma família feliz de classe média alta. E naquele espaço improvável vem à tona aquele que é o marco fundador da nação: a violência. Eunice, como um oráculo da própria tragédia, pressente o terror ao ver um caminhão militar cruzar a orla. De repente, somem com seu marido, que tem atividades políticas discretas. E a ausência abrasiva do marido, do pai, toma o casarão, corrói tudo. Como uma névoa sinistra de maré vinda do mar. 

O grande acerto de Salles é olhar para a tragédia de Eunice sob a mesma perspectiva de Nietzsche em O nascimento da tragédia. A tragédia como princípio de criação, transformação. Do luto do corpo ausente, Eunice se transmuta de uma dona de casa, mãe de família, em agonia, e, ao atravessar este fogo, sai dele um agente político, uma advogada que luta pelos direitos humanos. Eunice – e a dramaturgia de Murilo Hauser e Heitor Lorega entendem perfeitamente este movimento – expurga o drama burguês e abraça a tragédia social e histórica que acometeu sua família. 

Outra virtude do filme é seu irrepreensível alinhamento entre todos os elementos fílmicos: direção, roteiro, interpretações, som, trilha, arte e fotografia se alinham e se entrelaçam no mesmo discurso. Aqui, puxaremos o fio da fotografia de Adrian Teijido, que demarca com brilhantismo os quatro atos do filme com o uso da luz. No primeiro ato, Tejido registra uma casa solar, muita luz entrando pelas janelas. E um Rio de Janeiro luminoso. Salles filma organicamente a crônica de verão de uma família feliz. Ruídos, música tocando, gente dançando. No segundo ato, Paiva é levado pelos militares, Eunice e a filha são presas, a crônica passa a ser do medo. A casa está encerrada, os amigos se afastam, a música cessa. Adrian Teijido traz o lusco-fusco. As janelas se fecham, a luz é indireta. 

Gradativamente a luz vai apagando. Até que o filme chega no DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura militar. Os diálogos são econômicos. As reações de Fernanda Torres também. Salles evita um retrato histriônico, gritante e vilanesco daquele espaço. Entende que o mal é banal e burocrático, e isso deixa tudo ainda mais assustador. A luz se apaga por completo com Eunice na escuridão da solitária.

No terceiro ato, a reconstrução da vida. A luz que entra na casa é fraca, mas ela volta, pelas frestas, pelo basculante do banheiro do primeiro banho de Eunice de volta à casa. Mas a casa dos Paiva nunca mais se enche de luz, nem o Rio é mais vibrante. O terror vem pelos corpos ausentes, viver sem a figura alegre e sólida do pai, a filha que sente o cheiro do pai impregnado na camisa, a irritação agressiva que toma o caçula. E em nenhum momento o filme resvala num choro melodramático da protagonista. A dor está nos olhos e no silêncio de Torres. Ainda bem. No quarto ato, a família está em São Paulo. Teijido traz de volta a luz ao filme. Mas não é a luz do primeiro ato, otimista, alegre. Ilumina uma rotina e uma realidade transformada. Eunice se transmutou. E a voz de Erasmo Carlos a nos lembrar que toda tragédia precisa ser enfrentada: “É preciso dar um jeito, meu amigo.”  -  (Revista Piauí - Dicas).

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