segunda-feira, 28 de novembro de 2022

SOBRE O FILME O CLUBE DOS ANJOS

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Filme supera com galhardia desafio de transpor livro de Luis Fernando Veríssimo para o cinema


Bom Negócio Apazigua Má Consciência

Por Eduardo Escorel 

Transpor O Clube dos Anjos para a linguagem do cinema foi um desafio. Nessa empreitada, Angelo Defanti se saiu muito bem ao escrever o roteiro e dirigir seu primeiro longa-metragem, adaptação do livro de Luis Fernando Verissimo, publicado em 1998 pela Objetiva e reeditado em 2019 pela Alfaguara.

Repleto de virtudes e de algumas imperfeições menos relevantes, o filme supera com galhardia a dificuldade inicial – lidar com o refinado humor cáustico do texto de Verissimo que incorpora a herança do teatro do absurdo, mantendo certa relação com autores tão diversos quanto Friedrich Dürrenmatt e Tom Stoppard, entre outros.

De início, Defanti demonstra bom senso ao reduzir o número de personagens do grupo de dez personagens que no livro se encontra para lautas refeições periódicas. Revela virtuosismo, por outro lado, no modo de encenar no mesmo espaço ações simultâneas, embora ocorram, na verdade, à distância, assim como ao reunir no mesmo plano eventos separados por décadas ou mesmo por um intervalo de tempo menor – recurso usual no teatro, mas ao qual é mais difícil recorrer com sucesso no cinema, dada a impressão de realidade que lhe é característica.

                       Daniel, interpretado por Otávio Muller

No tempo presente do filme, Daniel, personagem adulto e narrador, usando o mesmo roupão da cena de abertura e segurando uma taça de vinho, está com seus colegas de mocidade há trinta anos. Sua rememoração nada lisonjeira dos amigos é feita enquanto passa por trás dos adolescentes e chega até a cabeceira da mesa, onde ele mesmo está sentado, ainda adolescente: “Uma vida toda pela frente”, comenta. Um a um, os atores adultos chegam, forçam os jovens a levantar e ir embora para se sentarem nos seus lugares: “Pedro (Marco Ricca), por exemplo, nosso almofadinha…”; “João (Augusto Madeira), o ex-vereador. João era mais um motivo para nosso desprezo pela política”; “Tiago (André Abujamra), kid chocolate…”; “Abel (Ângelo Antônio), empolgado sem causa que amava interromper as nossas celebrações para dizer: ‘Momento mágico! Momento mágico!’, estragando assim a magia do momento”; “Samuel (Paulo Miklos), o que mais nos amava e que mais nos insultava”; “E ele, o Ramos (António Capelo). Tudo começou com o Ramos…”.

São três sequências de abertura memoráveis. Duram sete minutos até o ponto descrito, valorizadas ainda mais pelos tipos dos atores adolescentes escalados, sem falar do elenco titular, um dos pontos altos de O Clube dos Anjos, que intervém pela primeira vez.

A partir do momento, aos cerca de 15 minutos em que Lucídio entra em ação na cozinha, ele conquista pelo paladar, primeiro, Daniel e depois Abel, seguido de André (César Mello), João, Pedro, Tiago e Samuel, seduzidos nessa ordem pelas delícias servidas que João qualifica como uma “dádiva”. Um a um, os integrantes do grupo vão se tornando vítimas fatais do pecado da gula, com exceção, naturalmente, do personagem-narrador e anfitrião para que a narrativa possa prosseguir.

A sucessão de encontros, refeições e mortes forma a parte central de O Clube dos Anjos. Mas resta a grande virada nos cerca de 12 minutos finais. Daniel, sobrevivente por não ter sido guloso, é transformado pela proposta feita por Delgado (Samuel de Assis), representante “de um grupo de pessoas interessado em participar dessa iniciativa… Interessadas em contratar os seus serviços… e dispostas a pagar um bom dinheiro por isso.” Intrigado, a princípio, Daniel explica que nunca pensaram “em fazer esse tipo de negócio, assim. Nós fazemos esse serviço só para quem é conhecido, para nós, uma coisa bem pequena, sabe? É um clube… é um clube da morte. Um clube de anjos. Entende?”

No dia seguinte, porém, prestes a se fartar com o cordeiro preparado por Lucídio, Daniel diz a André ter percebido desde a véspera não ter o menor peso na consciência: “Alguns amigos morreram felizes. Eu ajudei. Se eu puder ganhar dinheiro com isso, não vejo problema algum. Cada vez que eu penso nisso, eu gosto mais. Eu, o senhor, Lucídio, nós vamos ganhar muito dinheiro com isso… os vinhos estão cada vez mais caros. Com o senhor nos gerenciando, trazendo clientes para as nossas apoteoses compadecidas… nós podemos inclusive expandir os nossos negócios… eu não nos vejo matando somente doentes terminais com grandes jantares aqui no meu salão, não. Nos vejo organizando cruzeiros de moribundos pelo Caribe. Excursões milionárias de casos perdidos pelas capitais da Europa, pelos antros de perdição da Ásia, pelos prazeres definitivos da vida, proporcionando aberturas mortais, êxtases fatais. Extremos finais. Congestões monumentais… vão falar do nosso sucesso para sempre… Vão falar do nosso clube do picadinho, ah, durante anos. E do nosso sucesso, para sempre…” Daniel, em close, brinda com Delgado, vira e olha diretamente para a lente da câmera, como no início do filme, e conclui em close o plano final: “Comida é poder” – trata-se de um surto megalômano, delirante, de três minutos e meio, que racionaliza assassinatos em série e demonstra, se ainda fosse preciso, a atualidade do texto de Verissimo.

É um encerramento à altura da abertura, no qual o ator Otávio Muller, no papel de Daniel, excede sua própria excelência como intérprete ao longo de sua carreira e, mais uma vez, em O Clube dos Anjos.

Na trilha musical em seguida, acompanhando os créditos finais, ouve-se Eles de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantada por Caetano: “Em volta da mesa/Longe do quintal/A vida começa/No ponto final/ Eles têm certeza do bem e do mal/Falam com franqueza do bem e do mal/Creem na existência do bem e do mal/O florão da América, o bem e o mal/Só dizem o que dizem/O bem e o mal/Alegres ou tristes, são todos felizes durante o Natal…”

Depois de participar de quinze festivais no exterior, da Estônia à Islândia e de Kosovo a Trieste, nos quais recebeu alguns prêmios, O Clube dos Anjos participou, no Brasil, do Festival de Gramado, em agosto, da Mostra CineBH, no final de setembro, do Festival do Rio, na primeira quinzena de outubro e pouco depois, da Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. Na primeira semana de novembro (3/11), O Clube dos Anjos estreou em cinemas de vinte cidades e, ao completar a segunda semana, havia sido visto por pouco mais de 5 mil espectadores, número irrisório que representa média aproximada de 250 por cidade. Esse vem sendo o lamentável destino fatal dos filmes brasileiros recentes – arremessados país afora, mais do que lançados, permanecem incógnitos, independente dos seus méritos. Até quando a produção dos últimos anos continuará a ser desovada em vez de receber tratamento condigno? (...). (Continua).
(Fonte: Revista Piauí - Aqui).

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