Os sonhos de quem faz cinema no Brasil não têm se tornado realidade há um bom tempo, quanto mais os de brasileiras e brasileiros em geral, conforme sinaliza de modo preciso a pergunta de Vera Magalhães feita em seu último artigo do ano: “E se 2022 vier para constituir uma trilogia macabra que conspurcará para sempre a terceira década do século XXI?” Para ela, “2021 foi, no Brasil e no mundo, a parte 2 de 2020, repetindo confinamento, mortes, incerteza quanto à recuperação da economia, agravamento das desigualdades e a confirmação de que vivemos uma emergência climática cada vez mais presente no dia a dia. De novo, vimos ameaçados consensos civilizatórios, como direitos individuais e coletivos e a adesão às leis, à democracia e à razão.”
Estamos mal, portanto, tanto no âmbito geral, quanto no delimitado do cinema, onde não será o poder de sedução do Homem-Aranha que irá nos redimir. Salvo para assistir a alguns blockbusters, a frequência aos cinemas continua baixa, em especial quando se trata de filmes brasileiros. Se for preciso explicar o que vem ocorrendo, à falta de sintonia habitual entre a maioria dos títulos nacionais lançados e a demanda de espectadores potenciais, talvez possa ser acrescido o instinto de preservação de parte do público, ainda receoso de frequentar as salas.
Inegável, porém, é o fato de que nem mesmo Marighella, celebrado como o sucesso comercial brasileiro da temporada, rendeu o suficiente para fazer frente ao seu custo de produção – impasse que ratifica, nos termos vigentes, a inviabilidade financeira da produção cinematográfica no país.
Um dos pressupostos do “final feliz” anunciado para 2021 é a impostura de considerar superadas as atribulações devidas à pandemia, que no Brasil foram agravadas pela inépcia do governo federal. Outra conjectura falsa é a de que a atividade cinematográfica estava bem antes de 2019, período ao qual não só seria possível como vantajoso retornar – lógica torta que nos condena ao autoengano perpétuo. Sem direito de apelar, perdemos a capacidade de não nos iludir e, assim sendo, de redefinir em novas bases o arcabouço legal e regulatório do cinema no país, além de seus mecanismos de financiamento.
Trata-se, em última análise, da necessidade imperiosa de tomar as medidas necessárias para tornar o cinema uma atividade viável neste país. Sem isso, continuaremos dependentes para sempre do Estado, subordinados a uma agência sem autonomia, com participação reduzida no mercado interno, concorrendo em condições desiguais com produções milionárias importadas destinadas ao entretenimento de massa.
E se parássemos de fingir? é o sugestivo título do artigo de Jonathan Franzen publicado na revista The New Yorker, em setembro de 2019, e reproduzido na edição de outubro da piauí, no mesmo ano. Vale a pena ler na íntegra. Centrado na mudança climática, o texto de Franzen começa citando Kafka: “Há esperança infinita, mas não para nós.” Linhas adiante, ele adverte: “Neste nosso mundo que avança a passos rápidos escuridão adentro, o inverso do espirituoso aforismo de Kafka é igualmente verdadeiro: não há esperança alguma, a não ser para nós”.
No final, Franzen admite que a guerra total e irrestrita contra a mudança climática “só fazia sentido enquanto fosse uma batalha vencível. Tão logo aceitarmos que já a perdemos, outros tipos de ação assumirão um significado maior. A preparação para incêndios, enchentes e acolhimento de refugiados é um exemplo diretamente pertinente. Mas a catástrofe próxima salienta a urgência de quase todas as ações para melhorar o mundo. Em tempos de caos crescente, as pessoas buscam proteção no tribalismo e na força armada, e não no estado de direito, e nossa melhor defesa contra esse tipo de distopia é manter em funcionamento as democracias, os sistemas jurídicos e as comunidades. Nesse sentido, qualquer movimento em direção a uma sociedade civil mais justa pode ser considerado agora uma ação climática expressiva. Garantir eleições justas é uma ação climática.”
E continua: “Combater a extrema desigualdade na distribuição de renda é uma ação climática. Desligar as máquinas de ódio nas redes sociais é uma ação climática. Instituir políticas humanitárias de imigração, defender a igualdade racial e de gênero, promover o respeito pelas leis e por sua aplicação, apoiar uma imprensa livre e independente, livrar o país das armas de fogo – tudo isso são ações climáticas significativas. Para sobreviver ao aumento das temperaturas, todo sistema, seja do mundo natural ou humano, precisará ser o mais forte e saudável que pudermos torná-lo.”
O desafio que Franzen propõe, “tomando emprestados os conselhos dos planejadores financeiros”, é ter um “portfólio mais equilibrado de esperanças, algumas delas de longo prazo, outras de mais curto prazo. Tudo bem lutar contra as limitações da natureza humana, na esperança de mitigar a pior parte do que está por vir, mas é igualmente importante travar batalhas menores e de âmbito mais local que você tenha alguma esperança concreta de vencer. Continue, sim, a fazer a coisa certa para o planeta, mas tente também salvar o que você ama especificamente – uma comunidade, uma instituição, uma localidade ainda intocada, uma espécie ameaçada – e anime-se com suas pequenas conquistas. Qualquer coisa boa que você fizer agora será sem dúvida uma cobertura de proteção contra um futuro mais quente, mas o mais importante é que é bom hoje. Enquanto você tiver algo para amar, terá motivo para nutrir esperança.”
E se parássemos de fingir?, indago eu, tomando emprestada sem autorização a pergunta do autor. Que tal nós, amantes do cinema brasileiro, reconhecermos o seu estado agônico? Encararmos essa situação sem subterfúgios e admitir que, respeitados os parâmetros em vigor, não há perspectiva de restabelecimento à vista? Não olhar para cima é postura de avestruz. Supondo que ainda haja tempo, que tal olharmos além do arco-íris, em direção ao cometa que está se aproximando da Terra, e fazer o que estiver ao nosso alcance para desviar o seu curso?
A reflexão de Jonathan Franzen ajuda a manter a esperança sem ser paralisado por uma visão apocalíptica ou fatalista. Serve também para refutar de vez a noção de “final feliz” para 2021. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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