O Sétimo Selo e Morangos Silvestres de Igmar Bergman; Acossado, de Jean-Luc Godard; Oito e Meio, de Fellini; O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, Cidadão Kane, de Orson Welles; Um Homem Uma Mulher, de Claude Lelouch. Esses são alguns filmes citados e homenageados por Woody Allen no seu último filme O Festival do Amor (Rifkin’s Festival, 2020).
Um festival de metalinguagem, principalmente quando sabemos que toda a ação se passa no Festival de Cinema de San Sebastian, e Festival do Amor abriu justamente a edição do Festival em 2020.
Essa comédia do cineasta de 84 anos não é apenas uma homenagem ao cinema com uma verdadeira lista dos filmes que fizeram a cabeça do diretor, além de fazer uma relação simbiótica com um festival de cinema – desde Femme Fatale (2002), de Brian De Palma, um filme não fazia essa conexão metalinguística: uma narrativa que abria com um ousado roubo de joias realizado no meio do Festival de Cannes onde o próprio filme era lançado.
A lista de filmes citados por Allen não é por acaso: são filmes cujo ponto em comum que os une é o simbolismo, verdade parabólica e as montagens metafóricas e metonímicas. Em outras palavras, o cinema como expressão da arte – desvelar a realidade por meio dos simbolismos que só a linguagem cinematográfica era capaz de construir. Mais ou menos aquilo que certa vez o diretor Stanley Kubrick falou para Jack Nicholson no set de filmagem de O Iluminado: “Não fotografamos a realidade. Fotografamos a fotografia da realidade”.
Mas em O Festival do Amor encontramos Woody Allen com um olhar melancólico para o cinema atual: os grandes mestres europeus foram embora dos festivais de cinema, que passaram a ser ocupados por “filmes que tratam a realidade”, como fala a certa altura o alter-ego da vez de Woody Allen, o ator Wallace Shawn que interpreta o protagonista Mort Rifkin.
“Hoje, qualquer filme que trate da realidade os críticos elogiam como arte”, lamenta numa das linhas de diálogo Mort, dando a chave de compreensão do filme.
As reinterpretações literais dos filmes clássicos que Mort ama em seus sonhos e devaneios não são por acaso, ou mero exercício de autoindulgência do diretor com o cinema. É o lamento sobre o cinema atual no qual as reflexões metafísicas ou simbólicas dos grandes mestres deram lugar a um realismo chapado, com uma linguagem documental na qual ficção e não-ficção se misturam, sob o pretexto de produzir um efeito “reality” na abordagem da “realidade”.
Nessa comédia, Mort é Woody Allen: um ex-professor de cinema com dificuldades em escrever um romance, casado com uma mulher 30 anos mais jovem que o considera, remotamente, como uma opção romântica viável. A esposa flerta com o badalado diretor de cinema da vez que domina o Festival com seu filme sobre a brutalidade da guerra.
E Mort é um velho chato vestindo um típico jeans de vovô, e que fica tagarelando sobre os mestres do cinema e como no passado os festivais de cinema eram melhores, enquanto sua vida real está desmoronando.
Festival do Amor à primeira vista parece uma comédia leve, romântica e nostálgica. Por exemplo, a crítica do New York Times considera o filme como “uma sobremesa não substancial ou nutritiva, mas doce o suficiente para lembrarmos dos bons momentos que passamos com Allen”.
Mas, na verdade, é a produção mais cáustica, melancólica e implacável de Woody Allen dos tempos recentes, com o cinema e com ele próprio.
Shawn já havia trabalhado com Allen inúmeras vezes ao longo dos anos – de Manhattan a Era do Rádio – mas agora, ele se torna a mais recente adição em uma lista crescente de atores encarregados de recriar na tela o próprio personagem que Woody Allen tornou famoso.
Mort Rifkin começa sua história em Nova York, conversando com um psiquiatra. Mort lembra como teve que parar de trabalhar em seu romance para acompanhar sua esposa publicitária Sue (Gina Gerson) ao Festival de Cinema de San Sebastian, um convite aceito por ele acreditar que Sue está flertando com um diretor europeu que ela está profissionalmente representando no evento – Mort teme que Sue esteja cuidando um pouco demais do seu cliente.
Ele é Phillipe (Louis Garrel), o novo queridinho dos críticos com o seu filme realisticamente brutal “A Guerra – O Inferno”.
Rapidamente percebemos que Festival do Amor é sobre um homem cheio de preocupações com sua profissão, amor não correspondido, dilemas filosóficos e preocupação com as infidelidades conjugais. E, claro, em se tratando de alter-egos de Allen, também com piadas sobre como ele também é um judeu terrível...
Em um grande flashback, acompanhamos o relato de Mort Rifkin sobre o que aconteceu com ele no festival. Ele vai para San Sebastian preocupado que sua esposa o esteja traindo, enquanto passa a maior parte do tempo obcecado por um encontro casual que teve com uma outra mulher; no processo, Mort descobrirá que grande parte de sua vida foi uma farsa. Repetindo o mesmo enredo bem-sucedido com o qual o diretor sempre produziu ao longo de sua carreira.
Ao longo do filme, os personagens se esforçam para dizer uns aos outros o quão bom é um festival. “Este é um festival tão bom!” eles dirão, muitas vezes em frente a um dos muitos marcos da cidade, belas paisagens, ou nos cafés com terraço, suítes e grandes escadarias do fabuloso Hotel Maria Cristina (quartos de US$ 475 a US$ 1.775 por noite). Metalinguisticamente, parece que Woody Allen está promovendo o próprio festival que está abrindo com o seu filme.
O flerte de Sue e Philippe tem dois efeitos no hipocondríaco Mort. Primeiro ele imagina que está com problemas cardíacos, então visita um cardiologista, Dr. Jo Rojas (Elena Anaya). “Eu não sabia que você era uma mulher”, maravilha-se Mort.
Ele fica instantaneamente apaixonado, ainda mais quando descobre que ela também adora filmes clássicos, despreza o filme de Philippe, está familiarizada com a cidade de Nova York e está passando por problemas conjugais. Este são causados pelo seu marido pintor infiel, Paco, interpretado por Sergi López. Na verdade, uma fantástica paródia, destruidora de garrafas e automutilante, do arquétipo do espanhol artisticamente apaixonado que Allen abraçou no seu filme Vicky Cristina Barcelona (2008).
Em segundo lugar, todas as noites Mort sonha com reinterpretações dos filmes clássicos que ele ama, reformulados consigo mesmo tendo Sue, Philippe e Jo interpretando os papéis principais.
O alter-ego Mort Rifkin repete um tropo bem conhecido da filmografia de Woody Allen: o confronto com um antagonista profissionalmente bem-sucedido e sedutor, enquanto o protagonista (Allen e seus “dubles”) é um “perdedor” apegado às suas convicções filosóficas e aos clássicos cinematográficos. O humor de Allen sempre teve a marca do autodistancimento irônico e de personagens que riem de si mesmos.
Em O Festival do Amor não é diferente. Esse velho tropo é atualizado com o antagonista bem-sucedido da vez Phillipe – um produto da era das redes sociais, da cibercultura das “lacrações” e “denúncias” de ativistas não mais de botequins, mas agora das telas da Internet. Um diretor de cinema politicamente correto faz denúncias sobre os horrores das guerras e do drama dos refugiados como pura espetacularização, sem a preocupação dos velhos mestres do cinema em universalizar ou imortalizar essas imagens através de bem elaborados enquadramentos e montagens simbólicas com aspirações metafísicas.
Como, por exemplo, as imagens inesquecíveis do filme O Sétimo Selo onde a Morte joga xadrez com o cruzado Max von Sydow – nas reinterpretações dos sonhos de Mort Rifkin, Christoph Waltz faz uma ponta impagável como a Morte de Bergman – aliás, Waltz está se especializando em atuações com diretores proscritos, como Roman Polanski (O Deus da Carnificina, 2011) e agora com Woody Allen, cancelado nos EUA após as denúncias de abuso sexual a sua filha Dylan. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: O Festival do Amor |
Diretor: Woody Allen |
Roteiro: Woody Allen |
Elenco: Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrel, Elena Anaya |
Produção: Gravier Productions, Televisió de Catalunya |
Distribuição: Imagem Filmes |
Ano: 2020 |
País: Espanha, EUA |
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