terça-feira, 4 de dezembro de 2018

UM POVO INFELIZ, BOMBARDEADO PELA FELICIDADE

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“Estudei como se fosse um príncipe numa escola maravilhosa, professores estrangeiros, os melhores professores do mundo! [...] Quer dizer, meu estudo custou a fome e a morte de muita gente e é por isso que eu digo que devo! Eu devo e devo muito à escola pública.” 
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“Foi bom, eu ia ser um rico muito medíocre.” 
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“Lá tudo era cômico ou cósmico.” 
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“Deparei de imediato com o fato de ser um péssimo compositor, um péssimo músico e um péssimo cantor. Como não sabia fazer música convencional, tive de fazer sempre algo estranho.” 
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(Antonio José Santana Martins, Tom Zé - 1936 -, músico, cantor e compositor).


Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade 

Por Maurício Carvalho (No GGN)

Estava ouvindo a www.radioweb.bocalivre.org e, como sempre, a rádio sempre me apresenta ou reapresenta uma fantástica criação de nossos músicos espetaculares.

Pois bem, tocou “Sabor da Burrice”, do genial Tom Zé, que faz parte do disco “Grande Liquidação". 

Em dezembro de 1968, Tom Zé, lança seu LP solo de estreia, “Grande Liquidação”, pelo selo Rozenblit.

A minha ideia original era postar a letra, que me deixou absolutamente impressionado com sua atualidade, porém, realizando uma pequena pesquisa para checar algumas informações me deparei com um texto da contracapa do disco, extraído do próprio sítio oficial do cantor. E ele começa com a frase título desta postagem: “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.”
Sendo assim, não posso deixar de publicar, além da letra de “Sabor da Burrice”, o referido texto.
Em tempos obscuros que o Brasil adentrou penso na coerência histórica do grande Tom Zé, lembrando que o disco em questão foi lançado em dezembro de 1968, mesmo mês da promulgação do nefasto AI-5.
Neste contexto recomendo o esclarecedor artigo do colunista Philipp Lichterbeck.
"No Brasil, está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento."
Mas vamos à letra da canção do Tom Zé que originou esta postagem.

Sabor da Burrice

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa
Ensinada nas escolas
Universidades e principalmente
Nas academias de louros e letras
Ela está presente
E já foi com muita honra
Doutorada honoris causa
Não tem preconceito ou ideologia
Anda na esquerda, anda na direita
Não tem hora, não escolhe causa
E nada rejeita

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa

Refinada, poliglota
Ela é transmitida por jornais e rádios
Mas a consagração
Chegou com o advento da televisão
É amiga da beleza
Gente feia não tem direito
Conferindo rimas com fiel constância
Tu trazes em guarda
Toda concordância gramaticadora
Da língua portuguesa
Eterna defensora
....
Texto da contracapa do disco “Grande Liquidação” do Tom Zé:
Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.
O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições.
Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente que ninguém mais pode ser infeliz.
Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria.
Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. (Às vezes por outras coisas também).
É que o cordeiro de Deus convive com os pecados do mundo. E até já ganhou uma condecoração.
Resta o catecismo, e nós todos perdidos.
Os inocentes ainda não descobriram que se conseguiu apaziguar Cristo com os privilégios.  (Naturalmente Cristo não foi consultado).
Adormecemos em berço esplêndido e acordamos cremedentalizados, tergalizados, yêyêlizados, sambatizados e miss-ificados pela nossa própria máquina deteriorada de pensar. (Nota deste blog: 'tergalizados' = o termo deriva de 'tergal', um tecido de qualidade para roupas masculinas e que contava com ampla publicidade).
“-Você é compositor de música 'jovem' ou de música 'Brasileira'?”
A alternativa é falsa para quem não aceita a juventude contraposta à brasilidade. (Não interessa a conotação que emprestam à primeira palavra).
Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras.
Pois é que quando eu abri os olhos e vi, tive muito medo: pensei que todos iriam corar de vergonha, numa danação dilacerante.
Qual nada. A hipocrisia (é com z?) já havia atingido a indiferença divina da anestesia…
E assistindo a tudo da sacada dos palacetes, o espelho mentiroso de mil olhos de múmias embalsamadas, que procurava retratar-me como um delinquente.
Aqui, nesta sobremesa de preto pastel recheado com versos musicados e venenosos, eu lhes devolvo a imagem.
Providenciem escudos, bandeiras, tranquilizantes, anti-ácidos, antifiséticos e reguladores intestinais. Amem.
(Tom Zé).

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