sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O DIREITO, DORAVANTE


"'Como Cassandra, a História profetiza, e como de Cassandra, todos dela se afastam. Os vencedores preferem ignorar que tudo acaba em derrota, e os vencidos não gostam de ser lembrados de que há poucas vítimas inocentes'  (Marguerite Yourcenar)[ii].
O ano de 2018, seja no plano jurídico, seja no político e, propriamente, na descontrolada e insana politização do judiciário e judicialização da política no sentido antijurídico das práticas possíveis, desafiou qualquer pensamento jurídico minimamente sério aos seus limites.
Levou-se à bancarrota os dualismos de “deôntico” e “ôntico”, entre outros, lançando-se ao estado de depressão profunda qualquer pensador mais idealista ou, simplesmente,racional. Todas as crenças e conceitos foram postos em suspenso e todo o arsenal problematizante se tornou indispensável, em uma atenção redobrada.
Críticos de diversas linhagens, por outro lado, tiveram diversas oportunidades paraexultação intelectual ao verem as mais agourentas previsões se cumprirem tal qual um roteiro barato e de mal gosto – basta ver o trânsito inglório dos radiantes operadores do Direito em toda a arte circense e da rapinagem jurídica.
A vontade de poder e os seus consórcios estão a todo vapor. O Direito, doravante, será a constância deste tensionamento entre ignorância e astúcia, oportunismos e poucos acertos. Dias nublados e fechados para a arte e a ciência jurídica, em uma corrosão ética e estética que demandará com toda intensidade a capacidade extrema de articular diferentes forças que nos atravessam. Nem que seja no último rincão da liberdade de pensamento e de consciência, desde que este não seja dogmático e destinado à extinção alheia. São equações complexas.
Como continuar acreditando no Direito? Qual Direito se viu e qual Direito se cultiva? Os questionamentos se tornaram complexos para quem ainda admite a viabilidade do jogo democrático, e que não vê, unicamente, no levante da multidão, uma (única) possível saída.Consumidos que estamos pela obtusidade de qualquer noção de consciência de classe (ou de gênero, ou de etnia, ou de qualquer grupo minoritário de interesse), todos os caminhos parecem, assim, obstruídos.
Os questionamentos se tornaram complexos para quem não cedeu a consciência jurídica ao primeiro chocalhar de dinheiros, oportunidades, cargos ou afetos afins, que, no país da pessoalidade, do pessoalismo, do nepotismo, da amizade e dos feudos do subjetivismo constituem as verdadeiras regras do jogo.
A fratura entre a “força normativa” do Direito e os “fatores reais de poder”, estes uma trovoada estrondosa enquanto aquela uma fagulha rapidamente apagada, trouxe ao plano da evidência macropolítica o que já era de vasto conhecimento nos microcotidianos forenses.Encruzilhada.
Entre altanarias dos doutos julgadores, vimos os horizontes democráticos se borrarem em meio a retumbantes silêncios institucionais, quando não em apoio explícito às mais cruas violações de direitos e seus mais diversos malabarismos.
Diversos rostos desapareceram na areia; a cada um dos sobreviventes restou, assim, o dever de administrar as referências mortas e desarticular formações de poder em busca de novos fundamentos e expressões. A queda deste comodismo, inevitavelmente, se mostrou um ponto positivo ao pensamento; fomos e somos demandados mais do que nunca em nossa capacidade única e singular de pensar.
A fórmula de Rancière se mostrou mais precisa do que nunca, e sua reflexão mais necessária do que nunca acaso se haja algum horizonte de juridicidade no qual valha investir os esforços ou no qual se possa depositar todo o passado de esforços construídos em torno ao Direito: “[...] não vivemos em democracias. Tampouco vivemos em campos, como garantem certos autores que nos veem submetidos à lei de exceção do governo biopolítico. Vivemos em Estados de direito oligárquicos, isto é, em Estados em que o poder da oligarquia é limitado pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais”[iii].
Desta percepção teórico-empírica de Rancière podem-se delimitar alguns focos de atenção: 1. O não conformismo e fatalismo do estado de exceção (pelo qual acabam se justificando condutas reiteradas, dessignificando-as), posto que, em uma arena democrática, o significado dos agentes institucionais se traduz em ilegalidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidades, sujeitando-se suas ações às sanções legais – a despeito do corporativismo que deveria apurar tais condutas e da anomia das classes em relação aos próprios ilícitos. Não se pode prescindir do signo do “ilegal” sob nenhuma outra denominação; por mais normalizada e reiterada que seja a conduta. 2. A visualização dos espaços de resistência, desobediência, transgressão e construção democráticas a partir do Estado de Direito em democracia, ainda que oligárquica, em cujo espaço os jogos de força podem se dar com maiores possibilidades, potenciais e articulações. 3. Soberania popular e liberdades individuais, somadas aos direitos subjetivos, devem receber uma defesa peremptória por parte dos setores acadêmico, jurídico, político, da educação, e demais atores sociais cujas racionalidades não estejam cooptadas pelos mecanismos interpretativos e dispositivos diversos de alienação jurídica, vontade suprema de poder e desejo autoritário.
É neste tênue, frágil e talvez mesmo condenado liame da limitação dupla das oligarquias que podemos inserir o foco dos desafios para se pensar o Direito, doravante. Mais do que as ilusões e o melodrama da “esperança”, mais do que o unidirecionamento das “lutas” (impensável diante de tantas fragmentações e tantas inconsciências), é, talvez, neste pequeno mas gravitacional ponto linguístico da geometria político-jurídica, é nele que, talvez, se possa concentrar energias propositivas: a criatividade incisiva será a única salvação.
É do aquecimento deste nó semântico que poderão emergir novas formas, novos jogos de força, novos devires; é neste nó semântico que se poderá ver o ponto de demolição das arbitrariedades e dos voluntarismos. É um compromisso cívico, pedagógico, ético, jurídico e filosófico.
[i] Disponível em: . Acesso em: 26dez. 2018.
[ii] YOURCENAR, Marguerite. Peregrina e estrangeira. Ensaios. Tradução de Myriam Campello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 139.
[iii] RANCIÉRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 94."


(De Eliseu Raphael Venturi, post intitulado "O Direito, doravante", publicado no GGN - Aqui).

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