(Honoré Victorin Daumier [1808-1879]. The Three Judges¹)
Por quem você gostaria de ser investigado, processado e julgado?
Por Eliseu Venturi
“Uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente” (Jurgen Habermas).²
Embora pareça uma pergunta retórica, “por quem você gostaria de ser investigado, processado e julgado?” pode ter uma resposta reveladora sobre diversas concepções de mundo – e do Direito. Como é uma pergunta individualizada, só pode ter uma resposta individual e singular; este “singular” guarda alguma relação com o “outro”?
O próprio questionamento geral contém um pressuposto importante, eis que não se faz uma pergunta do tipo: quem é o ente competente para processar e julgar uma conduta sua? Este pressuposto, assim, pode se ligar às hermenêuticas da desconfiança (Ricoeur), como por exemplo a de Marx em relação à luta de classes, ou a de Freud em relação à razão sempre açoitada por um inconsciente, ou a de Nietzsche quanto à modernidade e suas categorias, dentre as quais parece impossível não pensar o Direito, inclusive, hoje. Ou, ainda, à grande desconfiança da desconstrução de Derrida em relação a qualquer centro ancorado para se abrirem relações de ideias (a justiça, a verdade, o belo, o sentido, a consciência, o homem etc.). “Por quem você gostaria de ser investigado, processado e julgado” perpassa todas estas desconfianças, cujo teor passa batido no questionamento “quem é competente?”. Por quem você gostaria de ser investigado, processado e julgado? Por Eliseu Venturi
Qualquer realidade apresentada como verdadeira, absoluta, metafísica, transparente, perfeita, incorrigível, inquestionável, posta, dada, consolidada, cristalizada, cristalina, onipotente, desprovida de conflito, de intencionalidade ou de posições em campos de força precisa ser tensionada a partir do olhar da suspeita, que é uma articulação de linguagem. A experiência histórica nos lança a uma inadmissibilidade do idílico, do facilmente dado, que ao longo de qualquer observação se esvai em quimera. O Direito, inevitavelmente, cristaliza estas concepções, intencionalmente ou não, daí a razão de se ter a abertura crítica como constante e necessária.
Fosse uma hermenêutica da confiança, sequer se questionaria; apenas se recolheriam elementos harmônicos de que o sistema vigente de investigação e julgamento é democraticamente satisfatório e se traçariam posições felizes e festivas, tais como as difundidas nas grandes mídias e no êxtase do senso comum ideologizado (despregado, portanto, das suas relações concretas de força e de interesses, daí o apagamento dos conflitos, a inversão dos valores e a naturalização de relações sociais). É neste grau de normalidade, corporativismo e reforço que, de modo esperado, embora não devido, agem os entes institucionais; o problema é quando outras instâncias públicas seguem a mesma concepção.
Dentro deste pressuposto da pergunta inicial, há, ainda, um outro: o de que somos investigados, processados e julgados por “pessoas”, lembrando que “pessoa” já é uma ficção constituída sobre o “humano” (outra ficção). Embora estas “pessoas” estejam investidas em cargos e instituições (uma máscara sobre outra máscara, portanto), tratam-se de seres humanos (algo entre uma animalidade feroz cercada por interdições culturais mais ou menos internalizadas), com todas as vulnerabilidades, desejos e anseios da condição humana, da condição biológica e da condição social. Esta advertência é antiga nas discussões jurídicas, pois se sabe que até o horário do dia de um julgamento, por exemplo, pode influenciar o tipo da decisão.
Dentre daqueles anseios, pode-se destacar, no cenário atual, especialmente um deles: a vontade de potência. Esta vontade sempre deveria ser uma advertência, quanto mais se coligada a parcelas do exercício do poder soberano. Inclusive, uma advertência perante as expectativas éticas que, de mais a mais, são expectativas jurídicas em termos técnicos. E esta advertência é mais do que uma suspeita ou uma desconfiança, ela deveria ser um temor em relação ao outro, se não um temor, ao menos uma precaução. Um “outro” que não é o da alteridade: é o outro que encarna, reitera-se, parcela do poder soberano.
Este simples pressuposto poderia servir como primeiro aviso ao cidadão. Destaque-se: o “cidadão”. Figuras ultrafictícias e alucinatórias, tais como o “homem médio” ou, versões pioradas, o “cidadão de bem” ou a “pessoa de bem”, não se enquadram adequadamente ao jogo democrático. Primeiro, porque simplesmente não existem senão enquanto um personagem da novela ideológica; são um mecanismo, um dispositivo. Segundo, colocando além do bem e do mal no sentido ordinário, e instituindo-se como padrão de moralidade e correção, tais figuras não se prestam a qualquer reflexão moral, pois já são bem conhecidas suas porosidades éticas e jurídicas – que não passam de imagens rotas de tudo aquilo que atacam violenta e irrefletidamente, fazendo-no em expressão plena da sua inabilidade e fracasso de administração intelectual e emocional dos próprios desejos e condicionamentos existenciais.
O “cidadão”, portanto, pessoa titular de direitos e obrigações na ordem cívica, deveria se sentir advertido por ter seus interesses jurídicos e sua liberdade manejados por pessoas dentro de instituições. A própria noção de direito subjetivo, historicamente, se erige em torno de uma advertência sobre o poder e a violência estatais ante o indivíduo, como direitos de defesa, em uma concepção, inclusive, bem liberal, que ao longo do tempo se densifica por meio de demais gerações de direitos que se somam semanticamente.
Este simples pressuposto, insiste-se, deveria remeter ao desejo por um padrão institucional de investigação, processo e julgamento, mas, como dito, também faz referência a um ser humano que, no exercício da função, acaba por imiscuir sua própria subjetividade – que, novamente, não se confunde com um subjetivismo – no exercício das prerrogativas e competências de sua profissão.
Esta vontade de poder, então, é moralmente desejável ou encontra limites quando inserida em uma expectativa de atuação institucional? Trata-se do problema dos limites do indivíduo e suas concepções pessoais e o indivíduo como agente público (máscara sobre máscara, portanto, teatro duplo), que necessita assumir uma moralidade institucional muitas vezes distinta daqueles valores sobre os quais optaria em sua vida privada.
Feitos tais pontuamento em relação a alguns pressupostos possíveis, pode-se retornar à pergunta-mote: “por quem você gostaria de ser investigado, processado e julgado?”.
As respostas, assim, podem passar desde autoconcepções sobre a suscetibilidade e exposição pessoal até sobre as concepções do outro e, ainda, sobre a concepção do próprio sistema democrático e seus limites (ou seja, sobre qual o contexto de julgamento). Ou passar, ainda, por constatações sobre a falta daquelas concepções e, ademais, pela revelação de um espírito antidemocrático e autoritário como orientador do processo, posição bem em voga em tempos de formalismos vazios, leituras rápidas e superficiais e repertórios empobrecidos e precários.
Acaso a resposta se dê pela falta de visualização da possibilidade de se ser investigado, processado e julgado por algum motivo, tem-se um grande problema de ordem moral-individual: o sujeito se coloca acima do questionamento, da persecução, do potencial de prática da ilicitude? Para além da responsabilidade? É uma “pessoa de bem” insuscetível à acusação injusta ou ele mesmo incapaz da conduta típica? E se incapaz, o é por um heroísmo moral divino ou por uma incapacidade ele mesmo de reconhecer todos os ilícitos que cotidianamente todos cometem ou podem cometer?
Por sua vez, isto se deve a uma autoimagem de perfectibilidade moral ou a uma convicção de segurança de blindagem de classe, gênero ou etnia? As possibilidades são grandes. Este caso talvez seja mais interessante ao estudo psicanalítico. Ou ao ideológico.
O elevado horror e pânico moral, decorrentes de percepções equivocadas como Escola Sem Partido e Ideologia de Gênero, entre outros anacronismos tacanhos, concatenado ao idealismo ingênuo do “homem de bem”, que perpassam desde questões de sexualidade e direitos até as noções de potencial de corrupção de um agente social, parecem estar insertas nesta visão primária da perfectibilidade sobre si (sobre seus padrões de vida e de moral) e sobre a racionalidade e práticas humanas.
Outra resposta possível, ainda para o questionamento-mote, que se encaminhe no pressuposto da consciência de um risco maior ou menor de se sujeitar a um processo pode trazer outras denotações, estas, então, mais próximas ao perfil de Direito, de instituições, de direitos e de procedimento que se deseja para si e para os outros – se é que se identifica a existência de outras pessoas, vivendo sob outras condições, segundo outras concepções e segundo outras necessidades, expectativas, desejos e demandas, sem que, com isso, se prescinda de éticas de responsabilidade, de convivência e de pluralidade.
Igualmente, a expansão dos sentidos para um julgamento não apenas judicial, mas também moral, pode remeter a outras instâncias de submissão e avaliação a um crivo – que pode se dar no âmbito acadêmico, no mercado do trabalho e assim por diante. Conviver, pois, é, em larga medida, também julgar; quem somos como julgadores é um aspecto a se pensar, e por quem queremos ser julgados, é outro. Considerando as balanças de distribuição social do poder e a ordem das relações de força, parece claro que a maior parte do tempo seremos mesmo é julgados.
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado a partir de um referencial estigmatizado em razão de sua identidade ou grupo social, ainda que estes estigmas, preconceitos e discriminações estivessem embutidos em palavrório juridiquês?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado a partir da ausência de reflexão das autoridades a que está subordinado e às quais entregou seu quinhão de liberdade original? Você gostaria de ser investigado, processado e julgado a partir do descompromisso, por seu julgador, da justificação moral das decisões e do descumprimento de ônus argumentativos?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado por alguém que desfilou publicamente com seus desafetos, seus concorrentes, seus adversário, seja por motivos ideológicos, seja por motivos políticos ou simplesmente sociais e individuais (classe, gênero, etnia)? Pessoas com quem jantou, deu risada, tirou selfies, e com quem continua livremente circulando e ostentado os contatos e os efeitos políticos das relações? Você gostaria que seus investigadores, seus acusadores e seus julgadores fossem amigos entre si? Você confiaria neste tipo de neutralidade ou de imparcialidade, se fosse uma pessoa do seu círculo próximo ou remoto?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado por instituições desprovidas de controle crítico interno e intracorporativo, incapazes de conferir limites, discrição e respeito à ética profissional e aos direitos processuais dos jurisdicionados? Você gostaria de ser investigado, processado e julgado em um contexto de ausência de controle extracorporativo, assim como ausência de controle intercientífico e profissional?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado na debilidade ou ausência do controle crítico por parte dos profissionais de comunicação e da mídia, com explicações, valorações e interpretações sendo massivamente disparadas e repetidas nestes meios sem qualquer caráter de discussão, dialética, contraponto de ideias e de encaminhamentos possíveis?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado na ausência do controle por seus pares, da sociedade civil, dos cidadãos, da opinião pública, sem com isso remeter sempre a um mesmo e esclerosado boneco espantalho de homem médio, de bem etc.?
Você gostaria de ser investigado, processado e julgado por posturas petulantes, arrogantes, de empáfia e soberba, com descompromisso ético e jurídico, bem como científico e filosófico-moral ante o estado da arte dos conhecimentos envolvidos e, ainda, segundo a responsabilidade moral dos cientistas e pesquisadores?
Você gostaria de ter sido investigado, processado e julgado por alguém que abandona a toga e transita pelos poderes, negando frontalmente aquelas prerrogativas todas que costumam proteger a magistratura das flutuações de interesses egoísticos incompatíveis com a função, e mais, que procuram assegurar aos julgadores e aos jurisdicionados o mínimo de certeza e de segurança jurídica?
Quantos tentáculos e quantas ventosas de um mesmo polvo seu corpo suportaria?
Muito do exercício democrático faz egoísmo se transmutar enquanto abnegação na medida em que exige um olhar solidário na construção institucional, para além do exercício grandiloquente da auto-ilusão e auto-engano do absolutismo individual incorruptível, incorrigível, reto e lídimo.
A alteridade, assim, expressa um cuidado de si, o pensar o outro é também uma medida de sobrevivência individual. Desejar que o outro seja submetido a um devido julgamento justo, adequado e correto é, em último grau, também uma medida de autopreservação. É quando percebemos que, a despeito de nossas imensas diferenças, ainda assim, em uma democracia, há muito mais que nos une do que podemos imaginar e mesmo muito mais do que desejaríamos que nos vinculasse. É a partir destes elos que se podem pensar normas e críticas. Mas, em grandes jogos de poder e campos de força, estas questões são marginais; são questões centrais, mas ao mesmo tempo, são questões marginais.
Perguntar ainda é um direito, que se exerce com temor a cada dia mais, é um fato que se vive e que se vê em todos os silenciamentos e acoplamentos estratégicos. As pessoas não viram as costas à ética por irracionalidade, muito menos elaboram tantas terraplanagens à toa; são cálculos meticulosos.
Provavelmente, em breve, perguntar se torne uma conduta típica contra a segurança e a ordem nacionais. Pensar também. Perguntar e pensar são coisas ultrapassadas. E esta tipificação, ironicamente, estará certa; mas pelos motivos errados: pensar e perguntar são ameaças ao conforto e ao bem-estar da soberania, da segurança e da ordem nacionais, é o que todo ditador e espírito antidemocrático mais prezam. E o resultado final desta tipificação, como nunca deixou de sê-lo, dependerá de por quem seremos investigados, processados e julgados: só que aí, então, o verbo “querer” só existirá no pretérito perfeito do indicativo. É quando deuses e heróis começam a morrer “pela boca”.
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[1] Honoré Victorin Daumier (1808-1879). The Three Judges, 1858-60. Helen Regenstein Collection, 1968.160. Disponível em: < http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/151548>. Acesso em: 24 jul. 2018.
[2] HABERMAS, Jurgen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 13.
(Fonte: Jornal GGN - aqui).
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