domingo, 28 de fevereiro de 2016

QUANDO STF E CONSTITUIÇÃO COLIDEM


"Há algo de podre ocorrendo na interpretação de normas constitucionais no Brasil, notadamente naquelas tocantes ao processo penal. E, para espanto e constrangimento de muitos, trata­-se da interpretação dada precisamente pelo órgão incumbido de ser o guardião da Constituição: o Supremo Tribunal Federal.

Os que conhecem o direito constitucional e sua inter­relação com a seara criminal espantaram­-se em fins de 2015 com uma prisão que, autorizada pela mais alta Corte do país, afrontou, ao mesmo tempo, normas penais, processuais penais e constitucionais.

Decretada em fins de novembro, a prisão do senador Delcídio do Amaral violava frontalmente o art. 53, § 2º da CF, que dispõe: "desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável". Na hipótese, não houve flagrante e nem havia inafiançabilidade, razão por que, a despeito de os delitos alegados serem graves e requererem investigação, a prisão foi mero ato de vontade de quem a decidiu.

Para aquele caso concreto, a Constituição e as leis vigentes no país deixaram de ser o que efetivamente são, para se tornarem aquilo que a vontade dos ministros entendeu que haveriam de ser. Tal evento fez emergir receios de outras decisões autocráticas que semelhante voluntarismo pudesse produzir.

Infelizmente, o reinício do ano judiciário vem mostrar a absoluta procedência daquele receio: concretizou­-se, dias atrás, desastre de proporções provavelmente inéditas na história do STF.

Surpreendendo a todos os que ainda confiavam na vocação protetiva de direitos fundamentais da Corte, e sob protestos dos ministros mais experientes, decidiu o Plenário não ser necessária a definitividade de uma sentença condenatória para que se inicie o cumprimento de pena. Noutras palavras, pessoas com condenação imposta por tribunais de segundo grau, ainda que tenham recorrido ao STJ ou ao STF, poderão ser recolhidas à prisão, malgrado os processos a que respondem não tenham chegado ao fim.

O texto constitucional, no entanto, ao tratar da presunção de inocência e de suas implicações, continua o mesmo promulgado em 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatório" (art. 5º, LVII, CF). Disso decorre que, a menos que punir alguém pela prática de um delito equivalha a considerá-lo inocente, a decisão do Supremo contrariou frontalmente a Carta Magna.

Abusos no exercício do poder estatal permeiam a história do Brasil desde a era colonial até os tempos atuais, em que se repetem nos jornais, embora sem maior destaque, notícias de pessoas torturadas em carceragens, presas sem justa causa ou em condições degradantes. Recentemente, até se soube de uma representação disciplinar contra uma desembargadora por ela haver determinado a soltura de pessoas que estavam presas por tempo maior do que o estabelecido em suas condenações. Por razões como essas, entendeu o legislador pela necessidade de garantir a presunção de inocência de modo generoso e inequívoco, a fim de prevenir desvios na aplicação da regra em cada caso concreto.

Nesse ponto, pode-­se até discordar da opção feita pelo constituinte, e houve quem invocasse, no julgamento, a circunstância de que outros países não atribuem o mesmo efeito a recursos penais dirigidos a tribunais constitucionais (ressalve­-se, aqui, que tampouco é esse o modelo que a Constituição optou na conformação do STF e de suas competências). Impossível se faz, porém, duvidar da clareza do significado da norma em questão: a Constituição impõe que "ninguém" seja tratado como culpado antes do "trânsito em julgado" da condenação, fato que só ocorre após esgotados todos os recursos.
Ou seja: goste-­se ou não da norma constitucional, a sua clareza é inquestionável. E é igualmente inquestionável a violação a seu teor que os ministros acabam de perpetrar.

É bem verdade que, se a jurisprudência emanada do STJ e do STF fosse respeitada por órgãos judiciais inferiores no que toca à proteção de garantias fundamentais de cidadãos, desnecessários seriam muitos recursos que se dirigem àquelas Cortes: não seria preciso despender tempo e dinheiro para bater à porta de tribunais que reafirmariam o que outros órgãos já houvessem garantido a cidadãos.

O que se vê, porém, é o inverso: milhares são os casos apreciados pelo STJ em que só se pleiteia a aplicação de súmulas de jurisprudência da Corte, desobedecidas por tribunais de justiça. Em seu voto no julgamento da fatídica sessão plenária do dia 17, lembrou o ministro Celso de Mello que nada menos que 25% dos recursos criminais apreciados pelo STF resultam providos; a nova orientação, contudo, fará que esse enorme contingente de pessoas inicie o cumprimento de penas que anos depois serão declaradas incorretas em análise judicial final!

As consequências sociais da decisão podem soar interessantes aos menos informados, mas, em verdade, tendem a ser devastadoras: mais injustiças, menos direitos, mais expansão da população carcerária em índices que nenhum orçamento público é capaz de suportar –degradando ainda mais as condições penitenciárias e elevando a oferta de mão­-de-­obra barata para o recrutamento de grupos criminosos que vicejam nos presídios brasileiros.

Independentemente de seus deletérios efeitos, o que mais assusta é mesmo o fato de o STF ter afrontado a literalidade da Constituição. O que se fez não foi interpretar a norma, pois se foi muito além do que os limites semânticos de seu texto admitem; simplesmente se decidiu que a Constituição diz o que ela não diz.

Pode-­se pretender que o constituinte errou ao garantir a presunção de inocência, mas não se pode admitir que a Constituição valha menos do que as vontades de ministros acerca de como ela deveria ser. Resta esperar que, em futuro não muito distante, um STF mais zeloso de sua vocação e responsabilidades institucionais corrija esse erro que macula a bela e rica história do guardião da Constituição."







(De Rogério Fernando Taffarello, artigo intitulado "Algo de podre no guardião da Constituição", publicado na Folha e reproduzido no Jornal GGN - aqui
Taffarello é mestre em Direito Penal pela USP, especialista em fraudes fiscais e lavagem de dinheiro pela Universidad de Castilla – La Mancha, pós-graduado em direito penal econômico e europeu pela Universidade de Coimbra e advogado e conselheiro de Prerrogativas Profissionais da OAB-SP).

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