terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O PAPA FRANCISCO NO MÉXICO


Francisco volta a provocar hierarquia católica

Por Mauro Lopes

Em discurso surpreendente aos bispos mexicanos, Papa amplia polêmica contra Cúria romana e fustiga conservadorismo, fascínio pela riqueza e espírito burocrático encravados na igreja
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O discurso do Papa para os bispos mexicanos neste sábado foi surpreendente — mas Francisco não se cansa de surpreender. A chave de leitura para compreender o que ele disse ao episcopado mexicano é o seu duríssimo discurso à Cúria romana no fim de dezembro de 2014, quando denunciou as 15 doenças curiais (mexericos, carreirismo, oportunismo, acúmulo de riquezas, indiferença em relação às pessoas, perda do “primeiro amor” pelo seguimento do Cristo, Alzheimer espiritual e outras). Se quiser lembrar ou conhecer um discurso histórico e inédito de um Papa à burocracia vaticana, clique no link clicando aqui.
Um leitura combinada das duas manifestações do Papa indica claramente seu antagonismo com a hierarquia da Igreja, que, a partir da cúria romana, insurgiu-se contra o espírito do Vaticano II desde o primeiro momento, ainda nos anos 1960. Tal espirito foi contido por Paulo VI – João Paulo I acompanhava o passo de João XXIII e Paulo VI, mas sua morte, 33 dias depois de eleito (em agosto de 1978) interrompeu o caminho do espírito conciliar.
O conservadorismo prevalecente na cúpula da Igreja no Vaticano e, de uma maneira geral, ao redor do planeta, com exceções que confirmam a regra (como a Alemanha e, agora, a Espanha) não foi obra do acaso ou apenas do “espírito da época”.  Durante mais de 30 anos, as nomeações de bispos e cardeais obedeceram a três lógicas: 1) rigorismo (seguimento às regras e normas e não ao espírito do Evangelho); 2) conservadorismo político e social (afastamento dos pobres); e 3) visão institucional da Igreja (olhar para dentro e submissão à burocracia eclesial). A atual cúpula da Igreja é obra de construção metódica e obstinada, feita por corações e mentes alinhados com uma visão particular do cristianismo.
Isto faz com que Francisco tenha ao seu redor uma grande massa de bispos e cardeais que respiram o espírito de contrarreforma e comportam-se como os burocratas nos governos: ficam quietos, às vezes encenam concordância com o “chefe” — e esperam pelo próximo Papa.  O Papa governa com um pequeno mas aguerrido núcleo de bispos e cardeais sintonizados com a retomada dos valores originais da Igreja e o espírito do Concílio Vaticano II. Os padres têm um papel de baixa relevância nesse processo, pois com o espírito conservador dos últimos anos, tiveram seu protagonismo praticamente liquidado. De fato, o processo dominante dos últimos anos formou milhares de padres preocupados com suas roupas, em encontrar uma paróquia “rica”, em oposição à ideia do serviço cristão.
Neste cenário adverso, Francisco navega com coragem e descortino que animam os cristãos e as pessoas de bem de todo o mundo. Como disse o bispo mexicano Raul Vera há um “efeito Francisco”  nas pessoas, “mas ainda não na Igreja. Somos nós, os bispos e sacerdotes os que temos que nos converter à integridade do Evangelho”. Vera é um desses lideres da Igreja sintonizados por Francisco e que sofreu enormes perseguições por parte de seus pares mexicanos. Leia a entrevista dele aqui.
Qual a possibilidade de uma reforma na cúpula da Igreja? O Papa instituiu o Grupo dos 9, cardeais fiéis ao espírito do Vaticano II e que estão finalizando o novo desenho da organização do Vaticano. O coordenador do grupo é o valente e inspirado cardeal de Tegucigalpa, Óscar Tegucigalpa. É um caminho. Mas os cristãos que vivem no espírito original do Evangelho e das primeiras comunidades devem rezar por um papado de mais uns bons anos à frente, para que Francisco consiga modificar o panorama da hierarquia católica. Pessoas de todos os credos e mesmo ateus parecem rezar ou torcer por isso.
Francisco tirou a Igreja da irrelevância a que tinha se encolhido nos últimos anos e recolocou-a no centro do mundo -mas a partir das margens, dos pobres. Este é o espírito de seu papado e assim deve ser lido seu discurso aos bispos mexicanos.
A Igreja mexicana é hoje dominada por uma cúpula conservadora que persegue leigos, padres e bispos vinculados aos pobres do país. O México é o berço do grupo clerical de direita, os milionários Legionários de Cristo, que se envolveu num grande escândalo — seu fundador, e idolatrado no grupo, Marcial Maciel, era pedófilo, teve filhos com várias mulheres, era dependente químico e, claro, perseguia todas as pessoas que não seguissem o “código moral” conservador…
Arcadio Esquivel. (Costa Rica).
No discurso aos bispos mexicanos, Francisco colocou o dedo na ferida logo de cara: “Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos “carros e cavalos” dos faraós de hoje, porque a nossa força é a “coluna de fogo” que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).”
O tema das intrigas e do carreirismo, que ele abordara no discurso contra a cúpula do Vaticano, voltou no México: “Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projetos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências.”
O esquecimento do “primeiro amor” ao seguimento de Cristo, que fora uma crítica central aos cardeais curiais em 2014, também foi destacado hoje: “Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.”
O clericalismo e a indiferença, também objetos do discurso em Roma, estiveram presentes no México:  “Por isso nós, pastores, precisamos vencer a tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é familiar no seu rosto, que a proximidade e a condescendência podem fazer mais do que a força.”
Uma crítica que esteve ausente em Roma foi relativa à pastoral — que não inexiste na burocracia vaticana. No México, o Papa acusou o olhar superior dos que se julgam acima dos pobres: “Por isso, sede bispos capazes de imitar esta liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio sútil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para o mudar.”
O conservadorismo foi alvo de uma crítica direta do Papa: “Peço-vos para não cairdes na estagnação de dar velhas respostas às novas questões. O vosso passado é um poço de riquezas por escavar, que pode inspirar o presente e iluminar o futuro. Ai de vós se vos deixais adormentar sobre os louros! É preciso não desperdiçar a herança recebida, guardando-a com um trabalho constante. Estais sentados aos ombros de gigantes: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos fiéis «até o fim», que deram a vida para a Igreja poder cumprir a sua missão. Do alto de tal pódio, sois chamados a alongar o olhar sobre o campo do Senhor para programar a sementeira e esperar a colheita.”
Impressionante a coragem de Francisco ao apontar o fascínio pela riqueza e grandiosidade que larva na cúpula da Igreja mexicana (como em outras ao redor do planeta) como “perda da sacralidade do sentido da vida humana e do respeito pelo planeta e, portanto, uma insurreição ainda que silenciosa aos termos da encíclica Laudato Si. O trecho é impressionante: “A Igreja, mesmo quando se reúne numa majestosa catedral, não poderá deixar de considerar-se como uma «casita» onde os seus filhos se sintam à vontade. Diante de Deus, pode-se permanecer apenas se se é pequeno, se se é órfão, se se é mendicante. (…) O fato de nos termos esquecido de «tirar as sandálias» para entrar não estará porventura na raiz da perda do sentido da sacralidade da vida humana, da pessoa, dos valores essenciais, da sabedoria acumulada ao longo dos séculos, do respeito pela natureza? Sem recuperar, na consciência dos homens e da sociedade, estas raízes profundas, incluindo o generoso empenho em prol dos legítimos direitos humanos, faltará a seiva vital que só pode vir dum manancial que a humanidade não poderá jamais dar-se por si mesma.”
No estertor do discurso, o Papa atacou diretamente o espírito de “realeza” que toma conta da Igreja e que nada tem a ver com o Reino de Deus. Falou claramente dos “príncipes” que povoam a hierarquia católica e fez um apelo por sua reconversão. O Papa advertiu a cúpula mexicana a não encalhar a barca da Igreja local. O texto chega a ser estonteante: “Não há necessidade de «príncipes», mas de uma comunidade de testemunhas do Senhor. Cristo é a sua única luz; é a fonte da água viva; da sua respiração, sai o Espírito que estende as velas da barca eclesial. Em Cristo glorificado, que os membros deste povo gostam de honrar como Rei, acendei juntos a luz, enchei-vos da sua presença que não Se extingue; respirai a plenos pulmões o ar bom do seu Espírito. Compete-vos semear Cristo no território, manter acesa a sua luz humilde que ilumina sem ofuscar, garantir que nas suas águas se sacie a sede do vosso povo; levantar as velas de modo que o sopro do Espírito as impulsione e não encalhe a barca da Igreja no México.”
Qual será a repercussão de mais um discurso sem precedentes e que chacoalha não só a cúpula mexicana mas carrega uma mensagem a atravessar a hierarquia católica em quase todo o planeta? Difícil dizer, mas que o Papa está cada dia mais decidido a enfrentar abertamente aqueles que traíram a Igreja das origens e os compromissos do Vaticano II não resta dúvida. (Fonte: aqui - Incluindo a íntegra do discurso do Papa).

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