sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

SOBRE O FILME 'RUA GUAICURUS'

.
"Poucas vezes, senão nunca, o cinema brasileiro trafegou com tantas franqueza e sensibilidade pelo universo popular das trabalhadoras do sexo."


Por Carlos Alberto Mattos

As luzes coloridas da Rua Guaicurus piscam até bem tarde. Naquele pedaço de Belo Horizonte reina o amor pago com dinheiro. Desde a década de 1950, ali é a zona de prostituição da capital mineira, com 25 hotéis onde, até chegar a Covid 19, trabalhavam mais de 3mil profissionais do sexo. Enquanto fazia uma residência artística na área em 2016, produzindo fotos em infravermelho e coletando histórias, João Borges enxergou um filme. Começava a nascer Rua Guaicurus.

Poucas vezes, senão nunca, o cinema brasileiro trafegou com tantas franqueza e sensibilidade pelo universo popular das trabalhadoras do sexo. Para isso, João e seus parceiros, a pesquisadora Marina França e o fotógrafo e artista plástico Francilins Castilho, engendraram um habilidoso mix de ficção e documentário, mesclando garotas de programa, clientes reais e atores. Para o espectador que desconhece a atriz Ariadina Paulino, por exemplo, é impossível saber que personagem ela desempenha entre as três principais. (Você tem a opção de saber na última linha deste texto. Nota desde Blog: Confira a íntegra do texto).

Era um jogo de cena implícito, em que algumas personagens contavam suas histórias reais e outras incorporavam histórias alheias trazidas pela equipe. Nada, porém, é feito para a câmera. Toda a interação se dá entre elas, e entre elas e seus clientes, sendo apenas observada por uma câmera no limite da discrição, sempre posicionada com delicadeza e arte. A fotografia de Lucas Barbi tira ótimo partido da iluminação feérica dos dois hotéis onde se deram as filmagens.

Três mulheres ocupam o centro da narrativa. Michelle é uma novata, inexperiente, que chega a bordo de uma crise familiar. Beth, segura e desencanada, se encarrega de instruí-la nos misteres dos programas. Monique tem um amante fixo que lhe ajuda a criar um filho e com quem ela leva uma vida quase conjugal. Essas relações dão margem a trocas muito íntimas, que extrapolam o campo do sexo e revelam personalidades fortes e diversificadas.

O acesso negociado pelo documentarista permite acompanhar cenas de sexo explícito que envolvem ora ternura, ora a simples rotina do trabalho sexual. Mas também momentos que se aproximam da comédia, como o encontro entre Beth e um suposto e desajeitado ator pornô. A lésbica que vem trançar o cabelo de Michelle e o rapaz que canta para as moças em troca de “caixinha” são exemplos que chegam para complementar a descrição de um ambiente em toda a sua diversidade. Aí se incluem as comunicações por celular e as formas imaginativas que elas utilizam para proteger o dinheiro recebido dos clientes.

Bem depois da finalização e da estreia de Rua Guaicurus, o advento da Covid 19 atingiu em cheio o ramo do meretrício. Muitas garotas de programa tiveram que deixar o ofício e voltar para suas origens no interior do estado, como antecipa a cena final com Monique. Em seu híbrido de registro e fabulação, o filme de João Borges se junta a clássicos brasileiros do tema, como Nada Levarei Quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, de Miguel Rio Branco, e Comunidade do Maciel – Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, de Tuna Espinheira.  (Para continuar, clique Aqui - Carmattos).

>> Rua Guaicurus está nas plataformas Filmicca, AppleTV, YouTube (para locação), Google Play e Embaúba Play.

Nenhum comentário: