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O consagrado diretor "Mohammad Rasoulof abandona o discurso metafórico comum aos filmes iranianos para fazer uma denúncia direta e implacável da teocracia que governa o Irã desde a Revolução Islâmica de 1979"
O título é uma metáfora descrita já na epígrafe, mas Mohammad Rasoulof abandona o discurso metafórico comum aos filmes iranianos para fazer uma denúncia direta e implacável da teocracia que governa o Irã desde a Revolução Islâmica de 1979. A Semente do Fruto Sagrado (Dane-ye anjir-e ma'abed) é provavelmente o filme mais corajoso já feito durante esse regime. Retoma o filão das condenações à pena de morte já visitado por Rasoulof no igualmente impactante Não Há Mal Algum, Urso de Ouro em Berlim.
Rasoulof, já diversas vezes preso, tomou as devidas providências para poder filmar dessa vez. Trabalhando na clandestinidade, dirigiu a maior parte das cenas remotamente para não comprometer a equipe e precisou cercar-se da confiança das atrizes e atores, todos dispostos a se arriscar tanto quanto ele. Soheila Golestani, que interpreta a mãe, também já foi detida em 2022 por participar de protestos sem o hijab (véu islâmico) e reconduzida à prisão este ano por atuar nesse filme.
Depois de ter A Semente selecionado para o Festival de Cannes de 2024, Rasoulof foi novamente condenado a oito anos de cadeia, um certo número de chibatadas e uma multa em dinheiro. Tudo por ter assinado uma petição pela libertação de presos políticos. A saída foi pelas montanhas, a pé. Em saga digna de outro filme, ele fugiu para a Europa e vive hoje exilado na Alemanha. A Semente ganhou o Prêmio do Júri e mais três láureas em Cannes. Será um dos prováveis indicados ao Oscar de filme internacional.
Algumas semelhanças o aproximam de Ainda Estou Aqui, na medida em que se vale do drama de um núcleo familiar para abordar o terror de uma sociedade tiranizada pelo estado totalitário. Ao contrário do filme de Walter Salles, porém, o drama não está na ausência do pai, mas na sua presença opressiva. A ação se passa em 2022, quando Teerã foi abalada pelos protestos contra a morte da jovem Mahsa Amini após ser presa por não usar o hijab. O oficial de justiça Iman (Missagh Zareh) acaba de ser promovido a investigador do Tribunal Revolucionário, o que trará melhorias de vida para a família.
O nome Iman é também um título religioso atribuído ao sacerdote que conduz as preces numa mesquita. Logo, o pai de família Iman associa automaticamente a fé ao poder judiciário, fazendo a conexão sobre a qual se fundamenta o estado iraniano atual. Iman vive uma crise de consciência por estar sendo forçado a assinar condenações à pena de morte em processos políticos que nem pôde ler. As duas filhas desconhecem o trabalho do pai, uma vez que o poder estatal atua na clandestinidade.
A tensão cresce na casa à medida que os protestos evoluem nas ruas com o lema “Mulher, Vida e Liberdade”. A repressão se abate violentamente sobre os jovens e causa indignação às filhas de Iman, sobretudo Rezvan, a mais velha (Mahsa Rostami). Elas teimam em acolher uma colega que participa dos protestos e acaba gravemente ferida. Acompanham os acontecimentos às escondidas pelas redes sociais, o que dá margem a Rasoulof veicular cenas reais da polícia agredindo indiscriminadamente os manifestantes.
Há mesmo a imagem de um policial atirando no celular que filmava a movimentação e matando o seu portador. Em resposta, o povo grita “Abaixo a teocracia!”
Passada metade da projeção, o filme acrescenta a camada mais complexa do drama. A arma oficial de Iman desaparece dentro de casa, deixando-o à mercê de uma punição profissional que envolve prisão e fracasso na carreira. Najmeh e as duas filhas tornam-se suspeitas. A casa se converte num espaço de desconfiança recíproca. Esse tema das casas como sucedâneos dos porões da ditadura vai se desdobrar em várias circunstâncias: interrogatórios, encarceramento, perseguição e tortura psicológica. É um sintoma do aparelhamento da sociedade civil para defender a lei islâmica.
O teor transgressor de A Semente começa já ao mostrar as mulheres com os cabelos descobertos dentro de casa. Mesmo que, na realidade, elas não usem o hijab no ambiente estritamente doméstico, a censura islâmica iraniana proíbe que assim apareçam na tela, pois os filmes são considerados exposição externa.
Outro aspecto desassombrado de A Semente é revelar o medo que os agentes secretos do regime nutrem dos rebeldes, numa inversão da equação política. Quando tem seus dados pessoais expostos numa rede social, Iman redobra sua paranoia, vendo em cada jovem uma potencial ameaça a ele e à família. À medida que aumentam as pressões sobre todos, fica cada vez mais claro aonde o pensamento desejoso de Rasoulof quer chegar. O duelo verbal entre Rezvan e o pai sintetiza a coragem das mulheres jovens em confrontar a lei dos clérigos nos últimos anos. Por sua vez, o arco dramático da mãe se desenha partindo da cuidadora abnegada e apoiadora enérgica do status quo à mulher consciente de que o horror está mais próximo dela do que imaginava.
O ato final é onde A Semente fraqueja levemente, adotando um ritmo de thriller um tanto artificial. Mas o desfecho acachapante, nas ruínas de uma cidade fantasma, se conclui com um ícone subversivo de primeira ordem: a esperança de tantos iranianos de ver soterrado esse modelo de país. - (Blog Carmattos - Aqui).
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