segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

EXCEL E POWERPOINT: AS BOMBAS SEMIÓTICAS SILENCIOSAS DA GUERRA HÍBRIDA

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"...há uma bomba semiótica mais silenciosa, que passa desapercebida pela sua utilidade cotidiana como uma inocente ferramenta: a bomba informática – programas e aplicativos que invadem a nossa estrutura mental, a cognição, compreensão da realidade e, por fim, nossas decisões. Decompõem a nossa realidade, ao tornar qualquer coisa 'bullet-izabel' ('itemizável'*) criando a ilusão de controle da realidade. Tão ilusório quanto tentar frear um carro segurando com a mão o ponteiro do velocímetro." (Nota deste Blog: * = este Blog, em dúvida quanto ao sentido, especula: Algo a ver com o que se vê Aqui?).



Por
Wilson Ferreira

Há uma bomba semiótica que, até aqui, passou desapercebida pelos estudiosos da guerra híbrida, uma bomba silenciosa ocultada pela inocência utilitária: a bomba informática - programas e aplicativos que invadem a nossa estrutura mental, a cognição, compreensão da realidade e, por fim, nossas decisões. Não é por acaso que a ascensão do neoliberalismo e Globalização vieram acompanhadas por planilhas Excel e slides de PowerPoint: dão a ilusão de racionalidade e controle individual, mas na escala macro geram disfunções exponenciais. O Lawfare encontrou toda uma geração de jovens concurseiros do Judiciário com um discurso contaminado pela linguagem powerpointiana: ilusão, simplificação, distração e anestesia. Linguagem quase religiosa que gera mais convicções do que evidências. No ato de filiação do ex-procurador Dallagnol no Podemos mais uma vez ficou evidente essa “cultura PowerPoint”. 

Esse humilde blogueiro tem falado e escrito muito sobre a importância estratégica das bombas semióticas na guerra híbrida brasileira: bombas cognitivas midiáticas que esgotam todos os recursos linguísticos, retóricos e semiológicos. Bombas simbólicas que criam repercussão e muito barulho na sociedade por criar cismogênese e remexer as feridas psíquicas do inconsciente coletivo.

Mas há uma bomba semiótica mais silenciosa, que passa desapercebida pela sua utilidade cotidiana como uma inocente ferramenta: a bomba informática – programas e aplicativos que invadem a nossa estrutura mental, a cognição, compreensão da realidade e, por fim, nossas decisões.

Decompõem a nossa realidade, ao tornar qualquer coisa “bullet-izabel” (“itemizável”) criando a ilusão de controle da realidade. Tão ilusório quanto tentar frear um carro segurando com a mão o ponteiro do velocímetro.

Ainda está para ser estudado por uma perspectiva materialista histórica os efeitos cognitivos e políticos da informatização de nossas vidas que, não por acaso, acompanharam o triunfo do neoliberalismo e da globalização. Ao ponto que até alguns filósofos chegaram a acreditar que teríamos chegado ao final da História.

Essa sensação de final de História foi lá nos já longínquos anos 1990. Aqui no Brasil, na “gloriosa” era FHC com suas privatizações e a promessa de o País virar um “player” na Globalização (até a maxidesvalorização do real em 1998, fazendo o País cair de joelhos diante do FMI). 

Também, não por acaso, foi a época da ascensão da planilha Excel como principal ferramenta para gestores, economistas e até pedagogos. Na economia, a figura mágica do “financista”; na Administração a moderna figura do “gestor” – que se estendeu aos “gestores educacionais”. Em todos eles, as onipresentes planilhas Excel que acabaram criando uma forma de pensamento que o jornalista Luis Nassif jocosamente chamada de “cabeças-de-planilha” – Leia NASSIF, Luis, Os Cabeças-de-Planilha, Ediouro, 2007. 

Modismos como reengenharia, processos de ISO para empresas etc., eram acompanhados sempre por lindas planilhas coloridas que geravam lindos gráficos que ilustravam reuniões de CEOs. Distantes do chão de fábrica com essas verdadeiras máquinas platônicas, encontrávamos financistas e gestores inebriados pela fantasia de controle: na escala micro tudo parece racional, perfeitamente quantificável e lógico; mas na escala macro, as racionalidades de cada agente não se encaixavam, produzindo disfunções exponenciais – de resto, é o mesmo destino das grandes cidades: prédios inteligentes, mas cercados pelo caos urbano dos congestionamentos, poluição e inundações.

De certa forma, a planilha Excel trouxe o triunfo do laissez-faire neoliberal, ironicamente através da ilusão de que a racionalidade de cada ação individual resultaria num todo harmonioso.




Dallagnol e o PowerPoint

 E agora, no século XXI, outro programa ocupa a função de bomba cognitiva. E, dessa vez, na guerra híbrida brasileira cujo desfecho foi o impeachment de 2016: o PowerPoint.

O leitor deve ter visto a notícia da filiação do ex-procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, no Podemos. Celebrado com um discurso de 45 minutos em que falou 41 vezes a palavra “corrupção” – para ele, o fenômeno da corrupção está por trás de tudo: na dificuldade do tratamento de câncer aos acidentes de trânsito.

Além dele, ao lado de Moro et caterva, segurar um cartaz onde lia-se: “Com 200 deputados mudamos o País – Democracia, Combate a Corrupção, Preparação Política”. Ele também assinará uma “carta suprapartidária” para colocar “200 deputados” com preparo democrático para combater a corrupção, ou coisa que o valha...

Para além da discussão de que o discurso da corrupção é mais imaginário do que econômico (clique aqui), o que chamou a atenção no ato de filiação é a recorrência da estética “itemizável” powerpointiana do cartaz exortando a necessidade dos tais “200 deputados”.

Sabemos que o ponto alto (pelo menos simbólico) do ex-procurador foi a sua performance tentando coordenar sua fala com as dezenas de slides da sua denúncia contra “o general do maior esquema de corrupção da História”, cujo ápice da apresentação foi aquele bizarro slide com diversos círculos e setas convergindo para o nome “Lula” (em caixa-alta) ao centro.

Aquela apresentação do então procurador revelou menos “o maior esquema de corrupção da História” e muito mais um exemplo da “cultura do PowerPoint” que assombra cada sala de aula ou auditório de apresentações.

O pesquisador canadense Marshall MacLuhan dizia que “o meio é a mensagem”: o contrário do que pensamos de que o meio e um simples canal de passagem de um conteúdo ou mero veículo de transmissão da mensagem, na verdade é o elemento determinante da comunicação. A interação entre usuário e tecnologia que desenvolvem constitui a mensagem mais importante do ato da comunicação – a forma como o meio molda nossa cognição, percepção e pensamento.

Os procuradores federais, jovens concurseiros que, com muito esforço, traçaram seus caminhos da sala de aula dos cursos de Direito para a promoção em concursos públicos, certamente estudaram em muitos quadros sinópticos impressos em slides de PowerPoint. Moldaram seus raciocínios e matéria de estudos através de bullet-izable, gráficos espaguete com muitas setas e linhas e tabelas e mais tabelas onde as letrinhas pequenas espremidas em células hifeniza as palavras tornando a leitura ainda mais irritante.




E também, certamente, aquela performance de Dallagnol demonstrou o atavismo das apresentações em grupo do seu passado de estudante na Universidade, onde o aluno tímido e ofuscado pela luz do datashow, apenas lê aquilo que já está no slide.

A ideologia PowerPoint

Franck Frommer, no seu livro “El Pensamiento PowerPoint – indagación sobre este programa que te vuelve estúpido” (Ediciones Peninsula, 2011), afirma que no PowerPoint interessa mais a exibição do que a demonstração e busca hipnotizar o público e limitar a capacidade de raciocínio. Segundo Frommer, usam-se slogans e verbos no infinitivo. Muitas vezes se incorporam imagens que não têm nada a ver com o que se diz, simplesmente adorno estético. Exige-se uma sala escurecida com gente atenta, consumindo 15 slides a cada meia hora. Quando abandonam a sala, praticamente os haverá esquecido.

Frommer acredita que o principal efeito do PowerPoint está no que chama de “contaminação do discurso” pelo programa.

Mas por que esse programa contaminou de tal maneira escola, universidades, corporações e, agora, o Judiciário? – podemos até distopicamente imaginar um futuro próximo com advogados apresentando argumentos em slides ao invés de peças processuais.




O programa se torna sedutor porque, num piscar de olhos, pode atender a quatro funções ideológicas: 

(a) ilusão - Com um bom conjunto de slides pode-se falar sobre qualquer coisa. No momento da ação, basta ler os slides apenas conjugando os verbos que estão no infinitivo para dar alguma impressão de espontaneidade.

(b) simplificação - setas, linhas e palavras realçadas por balões mascaram a inexistência de abstrações, conexões e linhas de raciocínios. Nos cursos escolares ou universitários, o fenômeno do “apostilamento” (substituição dos livros por apostilas descartáveis) tende a piorar: a transformação dos conteúdos em slides bullets-izabels.

(c) distração – desvia a atenção da falta de conteúdo do emissor para os itens e imagens dos slides. Ou ainda, como aponta Franck Frommer, o conferencista passa a não se sentir responsável pelo que diz. O orador simplesmente repete o que está no slide que passa a se tornar mais do que uma muleta – o efeito de conhecimento vira a “prova” de uma “convicção”.

(d) anestésico - Numa apresentação em uma sala escura, tudo o que devemos fazer é olhar os slides sem nos preocuparmos com a profundidade da argumentação. Os bullets itens simplificam o pensamento, mastigam informações. Resultado: anula-se o intercâmbio, não há interação. Os slides, em si, parecem a prova do conhecimento ou mesmo de uma peça processual, como nos quis mostrar o então procurador Dellagnol.

Assim como a guerra híbrida encontrou no militarismo e na escravidão os pontos fracos, as feridas psíquicas cuja história brasileira não fez o devido acerto de contas, da mesma forma a estratégia de lawfare foi encontrar toda uma geração de jovens concurseiros do Judiciário contaminados pelo programa de apresentação.

Daquele slide cheio de setas apontando para “LULA” ao cartaz dos “200 deputados” empunhado orgulhosamente por Dallagnol, está esse discurso informaticamente contaminado que justifica qualquer coisa, por criar a ilusão de controle de uma realidade “bullet-izabel”.

No final, produz o mesmo efeito deletério da planilha Excel: Dallagnol e toda a trupe da Lava Jato acreditavam fazer a coisa certa, lógica, racional e moralmente boa. Enquanto, na escala macro, arrebentaram com cadeias produtivas inteiras da economia brasileira.  -  (Fonte: Cinegnose - Aqui).

 

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