quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A PUREZA DA MÚSICA DE NELSON FREIRE

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Clássico documentário 'Nelson Freire', de João Moreira Salles, aproxima a arte do maior pianista brasileiro à excelência cinematográfica.
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Nelson Freire morreu no dia 1º deste mês. Para ele e sua arte, os aplausos deste Blog, com imperdoável atraso. 
Pena que não tenhamos como reproduzir, na íntegra, o documentário de João Moreira Salles, louvado no texto abaixo.


Por Léa Maria Aarão Reis (Na Carta Maior)

Há dezoito anos o documentarista, roteirista, diretor e produtor de cinema, o carioca João Moreira Salles lançava o seu filme, 
Nelson Freire, no Festival É Tudo Verdade e recebia o Grande Prêmio Cinema Brasil. Em seguida, o documentário ia sendo aplaudido nos finais de suas sessões à medida da sua apresentação às plateias: musicistas, aficionados de cinema, melômanos e simplesmente espectadores de sensibilidade e bom gosto.

Com uma hora e quarenta de duração, o doc, com o passar dos anos se fez um clássico e agora vem sendo revisto com um sentimento de tristeza, por um lado, pela recente morte de Nelson há pouco mais de duas semanas, mas mesclada pelo prazer de voltar a ouvir e ver alguns momentos em público e na vida privada de um dos maiores pianistas da sua época e um dos personagens mais cordiais e queridos da nossa cultura.

Por causa de uma fratura no braço, há dois anos o artista havia cancelado sua participação como jurado do Concurso Chopin. No primeiro dia deste mês morreu de madrugada, na sua casa, no Rio de Janeiro.

Nelson Pinto Freire viveu e brilhou num ambiente bem mais estimulante e ameno que a atmosfera vivida hoje neste país. Rodou o mundo em sucessivas turnês, e sempre retornava para a linda casa onde morava, no alto da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde viveu acompanhado, além do piano e da sua música, de uma excelente coleção de filmes que carinhosamente guardava com todo cuidado.

O filme se divide em 31 ''blocos temáticos'' ou capítulos, ou croniquetas que acompanham algumas das extraordinárias exibições de Nelson ao piano, no palco, e os bastidores onde ele sempre tomava um copo de água indispensável e fumava um inseparável cigarro ao fim de cada apresentação: Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Sala Cecília Meirelles, Sala São Paulo, na França (em Menton), na Rússia, na Bélgica.

Moreira Salles acompanha o artista com uma rara delicadeza, nos seus hábitos, na discrição, os fascinantes ensaios em teatros vazios, a solidão das muitas horas de estudos, (''aprendi a gostar da solidão'', Nelson diz), a introspecção natural do artista cortada pelos encontros afetivos e alegres com a grande amiga, a pianista argentina Marta Argherich.

Ambos tocando Chopin e Rachmaninoff em dois pianos é uma das mais belas sequências do filme. Em outra, ambos tocam, juntos, novamente Rachmaninoff - o Concerto número Dois.

Mas há também Nelson ouvindo Guiomar Novaes tocando Gluck (Orfeu) e, em outro instante, ele, sozinho, com a orquestra calada em religioso silêncio, ouvindo-o executar o bis pedido por uma plateia. Mais os momentos mundanos, dos autógrafos e do camarim repleto de fãs de várias nacionalidades.

E o ''amor à primeira vista'', ainda menino, quando conheceu sua professora Nise Obino, no Rio, e seus pais já estavam quase prontos para retornar a Boa Esperança, em Minas, de onde vinha a família que desejava proporcionar ao garoto, um ''prodígio'', bons estudos de piano.

Na sua casa, um Nelson encantado e debruçado na tela da televisão comenta sobre Rita Hayworth e Fred Astaire dançando no musical Ao compasso do amor. Em outro momento, ouvindo Erroll Gardner, ele fala sobre a sua conhecida frustração de não tocar jazz, música produzida com improvisos: ''Eles tocam com grande prazer', diz, entusiasmado. ''Nunca vi alguém tocar com tanto prazer''!

É um presente ouvir Nelson Freire nesse precioso doc, interpretando Liszt, Chopin, Brahms, Schumann, Guarnieri (a pedidos); e com a OSB, com a Filarmônica de St. Petersburgo.

Outro presente é admirar o virtuosismo de Moreira Salles nesse trabalho, a excelência do roteiro montado com Felipe Lacerda e Flavio Pinheiro que também é autor do argumento. Sem uma única cabeça falante, sem depoimentos em falso, qualquer narração em off, apenas montagem, montagem, montagem, cortes exatos, travellings discretos, close respeitoso nos dedos fortes do pianista no Concerto número Dois de Brahms.

Em homenagem a Nelson registramos o que João Moreira Salles escreveu sobre ele, no blog do Instituto Moreira Salles, em outubro último, pouco antes do seu falecimento.

''Durante os anos 80 e 90, toda vez que Nelson passava pelo Rio eu tentava conseguir um ingresso para ouvi-lo. De todas as coisas extraordinárias que aconteciam no palco naquelas ocasiões, uma das que mais me chamavam a atenção era a elegância contida dos seus gestos''.

''Isso pode parecer estranho, dado que de um músico se espera música e não mímica. Mas sempre achei que a música de Nelson se parecia com seus gestos – todos eles precisos, sem derrames desnecessários, sem nenhuma retórica''.

E ele conclui, coberto de razão:

''Num mundo cada vez mais exibido, esse recato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordinária pureza da sua música''.

Sem dúvida.
 

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