O diretor Sergei Loznitsa "observa que sua intenção não era apontar para o que aconteceu na URSS, mas para o futuro. 'Nesse sentido', diz ele, 'este filme não é sobre o passado, é um filme sobre quão sedutora é esta forma de poder em geral, inclusive para as massas, que são hipnotizadas por esta fórmula e são, ao mesmo tempo, animais de sacrifício com esta fórmula de sacrifício'.”
OS ÓRFÃOS DE STÁLIN
Por Paulo Lima
No dia 5 de março de 1953, às 21h50, Josef Vissarionovich Stálin é declarado oficialmente morto. Pelos quatro dias seguintes, o sucessor de Lênin à frente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas terá um funeral de dimensões majestosas, como se em seu lugar jazesse um santo.
O comunicado de sua morte, feito pelo Comitê Central do Partido Comunista, ecoa por todo o território soviético. Uma descrição clínica dos últimos momentos de Stálin é feita como se estivesse em curso uma autópsia.
O culto à sua personalidade buscava conferir-lhe a imortalidade. As pompas de seu funeral na Praça Vermelha representaram o clímax dessa ubiquidade. Uma avalanche humana se dirigiu a Moscou para se despedir do seu líder. A dimensão épica do funeral e dos dias de luto foi registrada por aproximadamente 200 cinegrafistas, pertencentes à melhor escola do cinema soviético, espalhados por todos os rincões da URSS.
São essas imagens que constituem o extraordinário documentário State Funeral (Funeral de Estado), do diretor ucraniano Sergei Loznitsa, lançado em 2019, agora disponível ao público brasileiro na plataforma Mubi. A produção de 2 horas e 30 minutos proporciona um denso mergulho naqueles dias de pesar do povo soviético.
A reunião das imagens transmite a impressão de uma cobertura em tempo real. No que poderia ser considerada a primeira metade do filme, vemos homens e mulheres pertencentes às diversas etnias espalhadas por aquele vasto continente recebendo a notícia da morte de Stálin. O discurso laudatório imprime um tom dos salmos de um evangelho gravado nas tábuas do Comunismo. Rostos de semblantes carregados ouvem descrições que conferem ao Secretário Geral do Partido Comunista, e depois ditador, frases do tipo:
“Sua cabeça repousa sobre o travesseiro. Ele nunca mais abrigará outro pensamento genial.”
“É impossível tirar os olhos desse rosto infinitamente querido.”
“Seus lábios estão bem fechados sob seu bigode. Eles nunca mais pronunciarão suas palavras tão bem consideradas.”
“Não há morte aqui. Há apenas vida eterna. Imortalidade.”
Apesar da estratégia de canonização, alçando o camarada Stálin à condição de ícone sagrado, as palavras, à luz do que a História veio a revelar, diante dos crimes do stalinismo, não deixam de produzir um efeito cômico.
Loznitsa estrutura sua narrativa cronologicamente, valendo-se dos acervos hoje disponíveis no Arquivo Estatal da Rússia. Tecnicamente, o filme apresenta duas texturas com qualidade excepcional, após recuperação digital: vemos imagens em preto e branco e coloridas com variações de emulsão. As cenas iniciais mostram a chegada do caixão de Stálin ao prédio do Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos, na Praça Vermelha. Uma câmera é fixada em seu rosto e logo em seguida se concentra por algum tempo em suas mãos. A leitura semiótica dessas imagens mostra a intenção de associar o továrich a uma aura de santidade. Delegações dos então países satélites alinhados a Moscou são vistas chegando para o funeral.
No que poderia ser uma segunda parte do filme, as imagens se detêm no funeral em Moscou. Foram decretados quatro dias de luto. Nomes da linha dura do partido organizaram o funeral. São eles Nikita Kruschev, Geórgiy Malenkov, Viatcheslav Molotov e Lavrentiy Beria. Nós os vemos, em alguns momentos, flagrados como fantasmas, se destacando em meio ao caudal humano. O desenho sonoro do documentário, a cargo do bielorusso Vladimir Golovnitski, permite recriar a atmosfera funérea: o arrastar de calçados, as tosses que irrompiam, os prantos contidos de babushkas inconsoláveis, bem como de militares empedernidos.
O fluxo de pessoas que passa diante do caixão de Stálin parece interminável. À distância, ele jaz rodeado de flores como um santo no altar da veneração. No interior do vasto recinto, uma orquestra acompanhada de coro executa peças de grandes clássicos como Franz Schubert, Mendelssohn, Mozart, Chopin e Tchaikóvsky, conferindo grandiosidade dramática ao instante. Artistas desenham e esculpem a figura do morto para a posteridade. “A face da terra está cinza. Sua alma chora”, lamenta o narrador oficial.
Os tumultos verificados durante os dias do funeral provocaram a morte de 106 pessoas na Praça Vermelha, segundo escreveu Hans Magnus Enzensberger em seu livro de memórias Tumulto. A própria filha de Kruschev só escapou porque conseguiu se arrastar para debaixo de um carro. Essas informações não constam do filme de Loznitsa, nem poderiam. As câmeras, ao retratarem o derradeiro ato de Stálin, o “membro mais querido da família soviética”, de acordo com a locução oficial do Partido, tinham como objetivo manter vivo o culto à celebridade.
A versão do documentário disponibilizada ao público brasileiro inclui material extra contendo uma entrevista concedida pelo diretor Sergei Loznitsa ao cineasta italiano Pietro Marcello, diretor de Martin Eden. Nela, Loznitsa observa que sua intenção não era apontar para o que aconteceu na URSS, mas para o futuro. “Nesse sentido”, diz ele, “este filme não é sobre o passado, é um filme sobre quão sedutora é esta forma de poder em geral, inclusive para as massas, que são hipnotizadas por esta fórmula e são, ao mesmo tempo, animais de sacrifício com esta fórmula de sacrifício.”
O comunicado de sua morte, feito pelo Comitê Central do Partido Comunista, ecoa por todo o território soviético. Uma descrição clínica dos últimos momentos de Stálin é feita como se estivesse em curso uma autópsia.
O culto à sua personalidade buscava conferir-lhe a imortalidade. As pompas de seu funeral na Praça Vermelha representaram o clímax dessa ubiquidade. Uma avalanche humana se dirigiu a Moscou para se despedir do seu líder. A dimensão épica do funeral e dos dias de luto foi registrada por aproximadamente 200 cinegrafistas, pertencentes à melhor escola do cinema soviético, espalhados por todos os rincões da URSS.
São essas imagens que constituem o extraordinário documentário State Funeral (Funeral de Estado), do diretor ucraniano Sergei Loznitsa, lançado em 2019, agora disponível ao público brasileiro na plataforma Mubi. A produção de 2 horas e 30 minutos proporciona um denso mergulho naqueles dias de pesar do povo soviético.
A reunião das imagens transmite a impressão de uma cobertura em tempo real. No que poderia ser considerada a primeira metade do filme, vemos homens e mulheres pertencentes às diversas etnias espalhadas por aquele vasto continente recebendo a notícia da morte de Stálin. O discurso laudatório imprime um tom dos salmos de um evangelho gravado nas tábuas do Comunismo. Rostos de semblantes carregados ouvem descrições que conferem ao Secretário Geral do Partido Comunista, e depois ditador, frases do tipo:
“Sua cabeça repousa sobre o travesseiro. Ele nunca mais abrigará outro pensamento genial.”
“É impossível tirar os olhos desse rosto infinitamente querido.”
“Seus lábios estão bem fechados sob seu bigode. Eles nunca mais pronunciarão suas palavras tão bem consideradas.”
“Não há morte aqui. Há apenas vida eterna. Imortalidade.”
Apesar da estratégia de canonização, alçando o camarada Stálin à condição de ícone sagrado, as palavras, à luz do que a História veio a revelar, diante dos crimes do stalinismo, não deixam de produzir um efeito cômico.
Loznitsa estrutura sua narrativa cronologicamente, valendo-se dos acervos hoje disponíveis no Arquivo Estatal da Rússia. Tecnicamente, o filme apresenta duas texturas com qualidade excepcional, após recuperação digital: vemos imagens em preto e branco e coloridas com variações de emulsão. As cenas iniciais mostram a chegada do caixão de Stálin ao prédio do Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos, na Praça Vermelha. Uma câmera é fixada em seu rosto e logo em seguida se concentra por algum tempo em suas mãos. A leitura semiótica dessas imagens mostra a intenção de associar o továrich a uma aura de santidade. Delegações dos então países satélites alinhados a Moscou são vistas chegando para o funeral.
A cobertura então desloca-se para a URSS profunda, interiores de fábricas, estaleiros, gente do povo, os representantes da revolução de outubro de 1917. São imagens de profundo significado, como se a história se mostrasse em cada detalhe, em cada rosto dos órfãos de Stálin. Filas se formam nas paragens mais remotas para retirarem a edição do Pravda - o jornal oficial do Partido -, com as notícias de sua morte. As imagens são eloquentes por si sós. Ainda que morto, a milhares de quilômetros de distância, Stálin se faz presente em cada lugar, cada vilarejo, na forma de cartazes gigantes e nos arranjos de flores que abarrotam os espaços públicos, como se representassem altares. Provavelmente, jamais na história da humanidade um funeral foi capaz de mobilizar uma quantidade de flores nessa dimensão.
O fluxo de pessoas que passa diante do caixão de Stálin parece interminável. À distância, ele jaz rodeado de flores como um santo no altar da veneração. No interior do vasto recinto, uma orquestra acompanhada de coro executa peças de grandes clássicos como Franz Schubert, Mendelssohn, Mozart, Chopin e Tchaikóvsky, conferindo grandiosidade dramática ao instante. Artistas desenham e esculpem a figura do morto para a posteridade. “A face da terra está cinza. Sua alma chora”, lamenta o narrador oficial.
Os tumultos verificados durante os dias do funeral provocaram a morte de 106 pessoas na Praça Vermelha, segundo escreveu Hans Magnus Enzensberger em seu livro de memórias Tumulto. A própria filha de Kruschev só escapou porque conseguiu se arrastar para debaixo de um carro. Essas informações não constam do filme de Loznitsa, nem poderiam. As câmeras, ao retratarem o derradeiro ato de Stálin, o “membro mais querido da família soviética”, de acordo com a locução oficial do Partido, tinham como objetivo manter vivo o culto à celebridade.
A versão do documentário disponibilizada ao público brasileiro inclui material extra contendo uma entrevista concedida pelo diretor Sergei Loznitsa ao cineasta italiano Pietro Marcello, diretor de Martin Eden. Nela, Loznitsa observa que sua intenção não era apontar para o que aconteceu na URSS, mas para o futuro. “Nesse sentido”, diz ele, “este filme não é sobre o passado, é um filme sobre quão sedutora é esta forma de poder em geral, inclusive para as massas, que são hipnotizadas por esta fórmula e são, ao mesmo tempo, animais de sacrifício com esta fórmula de sacrifício.”
Durante o período em que governou a URSS, de meados de 1921, quando sucedeu a Lênin no comando da revolução, até 1953, ano de sua morte, Stálin implantou um regime de terror que custou a vida de 27 milhões de cidadãos soviéticos, além de outros 15 milhões abatidos pela fome provocada por sua política de coletivização do campo na Ucrânia, conhecida como holodomor. Os crimes de Stálin foram denunciados por Nikita Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da União Sovíetica, em 1956. O épico político de Sergei Loznitsa é um poderoso instrumento acerca do autoritarismo e da maneira como transforma massas em rebanhos hipnotizados. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
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