domingo, 27 de setembro de 2020

QUANDO O ELETROMAGNETISMO ABRIU PORTAS PARA ESTRANHOS MUNDOS NO FILME "A VASTIDÃO DA NOITE"

"A narrativa faz questão de manter o espectador distanciado da estória: o filme abre em um jogo metaliguístico no qual o filme parece ser colocado dentro da tela de uma TV preto e branco que mostra mais um episódio do 'Hora do Teatro Paradoxo'. O filme parece ser mais um episódio que emula a série clássica Além da Imaginação – Twilight Zone."


Por Wilson Ferreira

Estamos no final dos anos 1950. Há algo no céu nos arredores de uma pequena cidade em uma noite em que todos estão no ginásio assistindo à uma partida de basquete. Menos dois jovens em seus empregos noturnos: ele, na estação de rádio; e ela como telefonista da central da cidade. Rádio e telefone, eletromagnetismo e eletricidade: essas duas descobertas abriram a humanidade para o mundo desconhecido micro e macro (o quântico e o cósmico): e a possibilidade de formas de comunicação com outros mundos ou dimensões. O filme “A Vastidão da Noite” (“The Vast of Night”, 2019) capta essa atmosfera misteriosa que cercou o eletromagnetismo, desde 1899 quando o físico Tesla acreditou ter recebido sinais codificados vindos do espaço. Paranoia da invasão soviética na Guerra Fria, interferência da CIA, visitantes alienígenas, fantasias adolescentes, tudo envolve uma misteriosa transmissão de rádio que invade as linhas telefônicas naquela noite.

Em um texto publicado em 1973 pela revista “Planeta” chamado “O Terceiro Milênio”, o autor do livro “2001”, Arthur C. Clarke, afirmava que “é o radiotelescópio e não o foguete que se tornará o instrumento dos primeiros contatos com inteligência extraterrena”. 

O escritor acreditava que os verdadeiros arqueólogos do futuro seriam esses pesquisadores de sinais modulados misteriosos em meio à estática natural do Universo. 

Ele não tirou essa projeção para o futuro do nada. Desde antes de o primeiro satélite artificial ser colocado em órbita, o russo Sputnik em 1957, ou dos rádios operadores e sinais telegráficos dominarem as comunicações transatlânticas, já existia um histórico de recepção de estranhos sinais vindos do espaço.

As tentativas de comunicação com outros planetas começaram em 1899 quando o físico sérvio Nikola Tesla construiu em Colorado um enorme centelhador de cobre ativado por uma bobina de 25 metros de comprimento, um “transmissor cósmico”. A experiência foi tão curta quanto bem-sucedida: as descargas elétricas queimaram uma usina hidrelétrica vizinha, matou duas vacas, acenderam lâmpadas num raio de dez quilômetros. Mas aparentemente alguém ou alguma coisa captou os pontos e traços enviados pelo cientista, porque minutos depois o receptor começou a registrar de volta uma série diferente de sinais codificados.

Tesla morreu convencido de ter recebido sua mensagem espacial. Mais tarde, foi o italiano Guglielmo Marconi, o inventor do primeiro sistema de telegrafia sem fios, que em 1921 transmitiu poderosos sinais para o espaço, para minutos depois também receber sinais em código que não conseguiu decodifica-los.

A partir daí, projetos secretos radiofônicos das Forças Armadas americanas surgiram como o grande receptor de Jenkins em um observatório naval em 1924 ou o Projeto Ozma (nome inspirado no “mágico de Oz”) na década de 1950 para capturar sinais “estranhamente uniformes” que viriam de Vênus.

O sci-fi indie A Vastidão da Noite (The Vast of Night, 2019), do diretor Andrew Patterson, com um micro-orçamento, consegue capturar essa atmosfera que envolve toda a mística que cercou a eletricidade e o eletromagnetismo que acabou alimentando ainda mais a paranoia da Guerra Fria.

“O que está lá fora na vastidão da noite? Há algo no céu!”, é a linha de diálogo críptica do filme que apesar de tratar de um tema já tão batido no cinema desde Contatos Imediatos de Terceiro Grau de Spielberg (um OVNI paira sobre uma pequena cidade no final da década de 1950), consegue escapar de todos os clichês.  

Assistindo à primeira metade do filme (disponível na plataforma Prime Vídeo) podemos pensar: “já vi isso antes!”. Porém, a maneira como Patterson a estória é contada é nova – situada na década de 1950, narra um tema já clichê reconstituindo a atmosfera de como não só o eletromagnetismo mas os seus produtos midiáticos (principalmente o rádio, mas também a TV) foi capaz de abrir as mentes para uma consciência planetária e a possibilidade de comunicação com outros mundos – planetários ou dimensionais.



Essa ambiguidade da natureza das mensagens recebidas tanto por Tesla quanto Marconi é magistralmente construída pelo filme: a narrativa de A Vastidão da Noite não trata sobre o que acontece, mas como as coisas estão acontecendo naquela cidadezinha em uma noite qualquer.

O Filme

Nas primeiras sequências acompanhamos os momentos que antecedem um importante jogo de basquete no colégio. Os jogadores se aquecem na quadra, as líderes de torcida dançam nas laterais da quadra. Praticamente todos os habitantes daquela pequena cidade estão nas arquibancadas.

Menos dois alunos do ensino médio, Everett (Jake Horowitz) e Fay (Sierra McCormick). Juntos, eles atravessam as ruas da cidade deserta em direção dos seus empregos noturnos: ele apresenta um programa musical na estação de rádio local. E ela é operadora da mesa telefônica da cidade.

A narrativa faz questão de manter o espectador distanciado da estória: o filme abre em um jogo metaliguístico no qual o filme parece ser colocado dentro da tela de uma TV preto e branco que mostra mais um episódio do “Hora do Teatro Paradoxo”. O filme parece ser mais um episódio que emula a série clássica Além da Imaginação – Twilight Zone.

O distanciamento continua com a longa tomada sinuosa em sequência de Everett e Fay conversando enquanto atravessam a cidade noturna deserta. A conversa é rápida e sobreposta, uma conversa geek sobre tecnologias e o seu futuro. 

Leva algum tempo para descobrirmos do quê estão falando e qual é o sentido ou propósito da estória. A narrativa não vem pronta para o espectador. O espectador deve entrar nela e superar o distanciamento propositalmente criado por Petterson.

Depois que Everett e Fay se acomodam em suas funções, começam a perceber que algo estranho está acontecendo. Está havendo interferências no sinal do rádio. Enquanto Fay percebe que as ligações telefônicas estão diminuindo. Um som estranho está passando pela linha, um som que Fay não reconhece.



Uma mulher liga para a mesa telefônica gritando em meio a estática sobre algo estranho acontecendo nos arredores da cidade. Como Everett e Fay são nerds em tecnologia, decidem descobrir o que está acontecendo.

Peça por peça, o filme é construindo até chegar ao clímax: a atmosfera da Guerra Fria e paranoia da invasão soviética, interferência da CIA, visitantes alienígenas, fantasias adolescentes etc.

Duas ligações telefônicas são as chaves de A Vastidão da Noite: a de um militar aposentado chamado Billy (voz de Bruce Davis) que liga para a rádio dizendo reconhecer aquele som com algum tipo de operação militar secreta no deserto de Nevada (Área 51?) e uma dona de casa idosa chamada Mabel Blanche (Gail Cronauer) que teria provas sobre uma conspiração alienígena contra a espécie humana – ou melhor, seríamos apenas marionetes das vozes aliens que entrariam em nossas cabeças. 

O planeta seria um mero teatro dos jogos alienígenas – ecos da mitologia gnóstica que, nessa década, influencia todo um subzeitgeist da cultura pop das sci-fi pulp ficctions e HQs.

  A novidade da abordagem de A Vastidão da Noite é a fuga das duas grandes abordagens sobre aliens, desde o clássico de Spielberg dos anos 1970: de uma lado, uma visão espiritualista ou New Age de extraterrestres pacifistas, espiritualmente mais evoluídos que querem dar uma mãozinha para a humanidade; e do outro, os alienígenas como imperialista que querem ou nos escravizar ou pura e simplesmente nos exterminar.



Andrew Petterson cria uma terceira via fundamentada na ambiguidade histórica que a descoberta da eletricidade e do eletromagnetismo criou no universo cultural – abriu a humanidade par estranhos universos micro (a mecânica quântica) e macro (a estática de fundo do Universo e estranhos sinais modulados que eventualmente parecem se destacar).

O silêncio e a vastidão da noite que envolve aquela pequena cidade interiorana captam essa atmosfera que mixa tecnologia, misticismo e espiritualismo. 

Pesquisadores como Erik Davis (Techgnosis – myth, magic and mysticism in the age of information, New York: Serpent Tail, 2004) acreditam que o Espiritualismo foi a primeira religião da Era da Informação. Os fenômenos mediúnicos, mesas girantes, escritas automáticas etc. estudados por Alan Kardec e pela Teosofia de Madame Blavatsky e Leadbater no século XIX, surgem simultaneamente à descoberta do eletromagnetismo e na transformação da eletricidade em informação com o telégrafo. E depois o rádio e a TV.

 Os próprios fenômenos paranormais começam a ser interpretados como fenômenos eletromagnéticos de comunicação espiritual. 

Podemos dizer que A Vastidão da Noite é fascinante porque capta essa espécie de “grau zero” desse estranhamento cultural diante dos novos mundos que estavam sendo vislumbrados pela tecnociência. Antes de ser sobrecodificado pela Política (Guerra fria e paranoia anticomunista) ou pela nova religião do pós-guerra: a New Age. 


Ficha Técnica 

Título: A Vastidão da Noite

Diretor: Andrew Patterson

Roteiro: Andrew Patterson, Craig W. Sanger

Elenco: Sierra McCormick, Jake Horowitz, Gail Cronauer

Produção: GED Cinema

Distribuição:  Amazon Studios

Ano: 2019

País: EUA

 

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(Fonte: Cinegnose - Aqui).

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