Líder indígena em Mato Grosso relata como as queimadas avançam sobre sua aldeia, destruindo casas, árvores, animais e memórias
Por Lucio Mariano Kogue
(No dia 10 de setembro, o fogo que assola o Pantanal invadiu a aldeia Córrego Grande – Gomes Carneiro, no Mato Grosso. A comunidade é habitada por cerca de 450 indígenas bororo e pertence à Terra Indígena Tereza Cristina, a cerca de 304 km de Cuiabá. Com pouquíssimos recursos, moradores da aldeia tentaram conter o fogo e impedir a destruição de seu território sagrado. Com o avanço das chamas, 48 famílias precisaram abandonar suas casas. A mata ao redor da comunidade ficou completamente destruída. Dias depois do incêndio, a fumaça ainda está na aldeia e preocupa lideranças indígenas. Lucio Mariano Kogue, morador da aldeia e presidente da Associação Indígena Bororo Tugo Baigare, narra momentos de desespero dos brigadistas voluntários e conta quais são as consequências materiais e simbólicas do incêndio).
Em depoimento a Camille Lichotti
O pessoal aqui da aldeia estava pescando na beira do Rio São Lourenço quando o fogo chegou. Foi na quinta-feira (10). Eles estavam lá com a família, como a gente sempre faz. A gente ouviu as crianças chorando. Todo mundo voltou para a aldeia correndo, gritando, avisando que o fogo tinha atravessado o rio e estava na aldeia. Foi uma correria porque o povo assustou, né? Fogo não é de brincar.
Tem mais de três semanas que a gente conversava com nossos parentes de outras aldeias sobre o fogo que estava vindo. Ele veio da aldeia Piebaga, que fica perto. Até então, a gente só via o fogo de longe, não esperava que fosse chegar tão forte. Tudo começou na segunda (7), quando alguns dos colegas que trabalham numa fazenda vizinha vieram avisar para ficar atento com o fogo. Aqui em volta tem muita fazenda de pecuária. O nosso pessoal que mora aqui, os anciãos, falaram que o fogo não ia entrar na aldeia porque tem o rio aqui em volta, que ia fazer uma barreira. E a gente acreditou no que eles falaram. Mas quando a gente assustou, o fogo já tava aqui dentro da comunidade. Aí, a partir de segunda, a gente começou a ficar lá no fogo para não deixar ele se aproximar, né? Primeiro a gente tentou combater com a comunidade da aldeia mesmo. Juntamos criança, mulher, jovens, o pessoal mais forte, e tentamos combater por nós mesmos. Mas as coisas foram piorando. Pedimos apoio da Funai, e eles mandaram o corpo de bombeiros, mas vieram só quatro pessoas. A gente sentiu [que era] muito fraco, e quando eles foram embora entramos em contato com a Funai de Cuiabá, aí mandaram dez brigadistas.
(Rio São Lourenço)
A gente foi na Fazenda Vitoria, que fica a uns 300 metros, aqui dentro da reserva, pedir ajuda lá para tentar apagar. Emprestaram um trator para ajudar no aceiro. Aceirar é pegar as enxadas, facão, machado, ir limpando e abrindo o mato. A gente faz na mão mesmo porque não tem maquinário, não tem nada. A gente tirou as folhas secas e deixou só terra pura para dar tempo de a gente correr com água e não deixar o fogo passar. Fiquei nesse fogo desde que ele chegou. A gente começava a fazer o aceiro 10 horas da manhã e parava meia-noite e pouco, para não deixar entrar na aldeia. A gente ficava lá sem almoço e sem janta, 24 horas um ajudando o outro, um carregando o outro. Nesse momento, a gente abraçou o problema e ninguém ficou longe de ninguém, todo mundo tava junto combatendo o incêndio. O que doeu mais foi ver menina que nunca viu isso acontecer lutando, correndo atrás para combater o incêndio também. Meninas de 13, 14 anos. Crianças.
As meninas, os rapazes jovens, carregavam os galões de 20 litros para ajudar a apagar o fogo, e a gente com umas bombas de água nas costas. Essas bombas foram deixadas aqui pela empresa Rota do Oeste, que ia treinar uma brigada em 2012. Mas não terminou o treinamento. Só deixou os equipamentos: bombinha costal, abafador, uma pipa – que já está estragada e fez falta aqui. Essa empresa veio fazer um estudo na aldeia em 2012, uma pesquisa de como a gente vive, do que vive. E aí a gente pediu a eles que preparassem uma brigada aqui para a comunidade. Começou o treino com o povo da aldeia, mas não terminou, ficou pela metade. Os equipamentos foram estragando. Então a gente fez o que pôde fazer com o que tinha. As crianças vinham com o galãozinho de água na mão para dar para a gente beber. Mas aqui ninguém é profissional, né? Algumas meninas não tinham calçado, outros só tinham um chinelo e uma bermuda – a maioria não tinha preparo. A bomba começou a não ter água e a fumaça intoxicou alguns parentes. São os anciãos nossos, que preservam nosso meio, as pessoas que têm mais capacidade de mexer com fogo – é quem cresceu e viveu nessa comunidade.
Um ancião contou que a juventude dele nunca viu isso. Naquele tempo tinha uns incêndios, mas eles combatiam só com pau, folha, jogando areia e pronto. Não era assim, fogo de acabar. Ele disse que as coisas mudaram bastante para cá. Agora tem muitos fazendeiros em volta de nós, com agropecuária, e alguns deles colocam fogo no pasto. E hoje eles estão assistindo isso acontecer junto com esses jovens que tão crescendo agora.
O pior dia mesmo foi sexta. Porque o fogo começou a chegar nas casas. As casas são tudo de palha trançada, madeira, pau a pique. É fácil de o fogo pegar. Tivemos que tirar todo mundo de casa na correria, deixando tudo para trás. Só levaram documento e a roupa do corpo. Em torno de 48 famílias saíram aqui da aldeia e foram para outras aldeias perto de Rondonópolis [município do estado do Mato Grosso, a aproximadamente duas horas da Terra Indígena Tereza Cristina]. Para as famílias saírem foi muito difícil, porque a maioria não conseguiu deixar sua casa. A gente pediu que eles levassem nossos anciãos e nossos filhos, para que pelo menos eles preservassem a vida deles enquanto a gente estava aqui lutando. O povo saiu chorando, tendo que ver a perda que nós passamos. Pra gente o mundo está acabando. Ninguém aqui nunca tinha visto isso.
Ficamos na maioria homens. Algumas mulheres ficaram também, com seus maridos, para dar força, né? Na sexta a gente quase perdeu alguns parentes no fogo. Muita gente começou a passar mal, com dificuldade para respirar. O que pega é a fumaça, né? No sábado, umas 18 horas, não consegui mais trabalhar. Eu me intoxiquei com a fumaça. Fiquei tonto, desmaiei. Nossos parentes me socorreram e me levaram para o postinho de saúde na aldeia. Mas aqui não tinha aquele oxigênio suficiente para colocar em mim. Tiveram que me levar para Rondonópolis. Quando eu acordei, estava numa UPA. Um colega que estava comigo disse que eu tinha desmaiado quando me levaram para a cidade. Falei pro médico que não queria ficar lá, queria voltar para a comunidade, ajudar meu povo. Minha esposa estava na aldeia com meus filhos, ela não quis ir pra outra aldeia. Isso ficou gravado na minha cabeça, que lá em Rondonópolis não era lugar pra ficar. Eu tinha que voltar pra aldeia. O médico não quis me dar alta. Eu falei: “Doutor, se eu tivesse que morrer, já estaria morto. Eu preciso ir embora porque minha família está lá na aldeia. Eu preciso voltar para ajudar minha família e meu povo que tá sofrendo.” Ele falou que eu não estava 100%, que não dava pra voltar. “Você precisa se tratar, Lucio. Na minha visão, a brigada acabou para você”, disse o doutor. Mas eu falei que precisava voltar para a aldeia, ver o que estava acontecendo com a minha família. Aí, depois de muita conversa, ele me liberou, e eu voltei no domingo de manhã para a comunidade.
(Aldeia Córrego Grande)
Ainda tinha muita fumaça, mas o fogo já estava mais controlado – conseguimos salvar as casas pelo menos. Mas aqui em volta acabou tudo, a gente perdeu tudo. Principalmente os animais – não tem mais caça próxima da aldeia, não tem mais palha para fazer a casa, não tem mais fruta para dar pras crianças comerem. Nossas ervas foram tudo embora. Acabou, não tem nada para nós mais. Aqui tinha queixada, paca, quati, macaco, os pássaros, periquito, as araras que tinha aqui em volta não tem mais. Morreu tudo. A gente costumava caçar mais queixada e paca. Mas o fogo torrou tudo aqui, a mata acabou. A gente agora vai consumir o que restou, do que tem do rio. Na mata mesmo, não tem mais nada. A gente pede para não queimar porque faz falta pra gente. Pra nós é como se tivesse perdido um irmão, um parceiro, que é a natureza. Porque a gente faz parte dela. Quando a gente vê isso acontecendo em volta da aldeia, vendo o desespero de criança, de senhores por causa desse fogo, a gente sente com isso, entendeu? Aqui é onde está nossa vida, né? A vida do nosso povo tá aqui. Os anciãos que já partiram estão aqui.
O que dói pra gente é que alguns fazendeiros falam que os indígenas que puseram fogo. Mas como a gente ia botar fogo? Nós que preservamos aqui, porque nossas riquezas, nossas ervas, frutos, tudo está aqui dentro. Pra nós, o fogo começou através desses pastos. Essas fazendas são uma coisa de muito tempo. Antigamente, há muitos anos, eles chegavam com sítio, comprando um lote aqui, outro lá. Mas aí foram vendendo para outros fazendeiros, e foi crescendo, crescendo, e hoje estamos aqui no meio das fazendas.
Estamos com seis crianças pequenas aqui na comunidade, e a gente ia começar as rituagens [rituais] com eles para entrar na fase adulta. Colocar os nomes e tudo mais. A gente queria fazer essa assembleia, que ia juntar os homens da aldeia para fazer caçada e pescada, fazer uma correria, uma gincana. Mas infelizmente a Casa Nova ficou abandonada. Com o fogo a gente não tem mais palha para cobrir ela, nem taboca. A gente está mais triste por isso. Esses nossos jovens que nasceram, a gente vai passar esse ano e o ano que vem sem poder fazer nada para eles. Não vai poder apresentar a tradição para eles, as danças. Porque não temos mais como fazer a casa de cerimônia. A gente queria tirar a palha velha da casa, para colocar tudo de novo. Essa casa é onde a gente faz toda a tradição, e para fazer o ritual a gente precisa tirar a palha velha e cobrir ela toda de novo. Mas o fogo acabou com tudo que a gente tinha planejado. Acabou tudo. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
(LUCIO MARIANO KOGUE - Liderança indígena bororo, presidente da Associação Indígena Bororo Tugo Baigare).
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