O jornalista franco-ucraniano Jacques Bergier (1912-1978, um dos precursores do Realismo Fantástico) descrevia suas experiências no campo de concentração de Neue Breme, depois que foi capturado pela Gestapo por fazer parte da Resistência francesa. Para Bergier, quatro técnicas lhe possibilitaram sobreviver às privações e torturas: (1) Abandone todas as esperanças – assim o medo desaparece; (2) Use e abuse do tempo – o tempo interior pode ser esticado ao infinito; (3) Nunca converse com os demônios – os guardas podem torturá-lo, mas não obrigá-lo a falar com eles; (4) Prive-se de tudo – tendo pouco, tente ficar com menos.
Bergier acreditava que o homem faz a pergunta errada: “se existe uma Força Suprema, por que ela tolerava Neue Breme?” Na verdade temos que começar no nível mais baixo, o dos animais: um coelho, por exemplo, vive como um prisioneiro: tem sempre fome, está sempre fugindo dos inimigos, é ferido e quase sempre morto... mas mesmo assim continua vivendo.
Essa brutal experiência dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial gerou um profundo impacto filosófico no século XX. Um deles, foi o Existencialismo – a existência antecede qualquer ideia sobre Deus, essências ou propósitos Supremos.
Pois uma frase dita no início de Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things, 2020), novo filme do diretor e roteirista Charlie Kaufman, assombra o filme desde o seu início: “Os outros animais vivem no presente. Os humanos não podem. Então, eles inventaram a esperança”.
Em suas memórias, sonhos, delírios, projeções e fantasias o homem sempre tem a esperança de a vida ter um sentido além da mera existência. Mas, e se vasculharmos mais detidamente esse nosso mundo interior que anima nossas esperanças e descobrirmos que nada existe? A não ser labirintos e prisões em nossas mentes.
Esse é o tema central de Estou Pensando em Acabar com Tudo.
Charlie Kaufman é um velho conhecido deste Cinegnose. Como roteirista, um exemplo vivo de como os temas gnósticos se introduziram no mainstream hollywoodiano. Desde filmes como Quero Ser John Malkovich (1999) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004). Até dirigir e escrever Sinédoque, Nova York (2008), até então o seu trabalho com pleno controle criativo.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é uma adaptação de um livro homônimo de 2016 do canadense Iain Reid. Porém, carrega todas as obsessões temáticas e ousadias formais dos filmes anteriores de Kaufman – personagens presos nos labirintos do próprio psiquismo. Explorações sobre arrependimento, fracassos e solidão. E suas experiências formais: narrativas surrealistas que parecem dobrar sobre si mesmas como fossem as gravuras de MC Escher.
A estória parece bem simples: uma mulher vai conhecer os pais de seu novo namorado que moram em uma fazenda na fictícia Tulsey Town. A noite é de nevasca, o que torna a viagem potencialmente perigosa. Essa é a superfície. Mas nenhum filme de Kaufman fica na superfície de uma narrativa.
A viagem para a fazenda remota é apenas o esqueleto narrativo do filme mais desafiador de Kaufman. Uma peça que beira às esquesitices surreais de David Lynch, indo e vindo entre a realidade e o registro onírico.
O problema para o espectador em todo filme de Kaufman é que no início parece que acompanhamos uma narrativa realista e verossímil. Para, de repente, perdermos o fio condutor realista e nos perdermos nos labirintos do psiquismo dos protagonistas.
Porém, temos sempre que nos orientar por esse tema obsessivo de Kaufman: o que sempre acompanhamos são protagonistas prisioneiros no próprio psiquismo, vasculhando suas memórias de fracassos, esperanças e desilusões.
Muito semelhante às quatro técnicas de sobrevivência de Bergier: o tempo interior é sempre muito mais vasto do que a da realidade objetiva.
O Filme
As cenas de abertura parecem ser relativamente diretas. Mas mesmo assim, Kaufman utiliza-se de técnicas desorientadores – a começar pela ambiguidade do título: acabar com um relacionamento ou com a própria vida?
A conversa no carro de Jake (Jesse Plemons) com a jovem que nunca saberemos seu nome (Jessie Buckley) em um momento parece revelar a ansiedade do rapaz que vai apresentar a namorada a seus pais; e em um instante, parece um longo monólogo interior.
Repentinamente, o filme corta para um velho zelador limpando os corredores de um colégio que parece não ter nenhuma conexão com o casal: Será que ela ou ele o conhecem? De que maneira aquele idoso se envolverá com os protagonistas?
Esse conceito de labirinto interior fica ainda mais claustrofóbica com os close-ups em uma tela pequena na proporção 4:3 – forçando o espectador a prestar mais atenção para os detalhes do enquadramento, e até mesmo para o que está faltando.
A sensação de pânico (para a jovem e também para o espectador) aumenta na casa dos pais de Jake. Primeiro, seus pais demoram tanto para descer as escadas que a jovem se pergunta se eles sequer sabiam que estavam vindo.
Quando o fazem, interpretados por Toni Collette e David Thewlis, eles parecem amigáveis o suficiente e honestamente ansiosos para ouvir histórias de como esses dois jovens pombinhos se conheceram.
Mas Jake fica constantemente desconfortável, quase antagônico aos seus pais. E então as coisas ficam realmente surreais quando a mãe e o pai parecem mudar de fases diferentes de suas vidas nas cenas subsequentes, indo do jovem ao velho e vice-versa, como se estivéssemos testemunhando momentos de toda a vida dos pais naquela gelada noite de neve.
Jake e a jovem acabam indo embora, mas vamos apenas dizer (apenas por enquanto) que eles terão contratempos para chegar em suas casas em uma noite que é repetidamente chamada de "traiçoeira".
Jake é o único personagem que tem um nome. Por que? Essa é a primeira peça do quebra-cabeças proposto por Kaufman.
Duas peças são mostradas logo no início. Na primeira, as cenas do velho zelador esfregando as salas do colégio sempre cortam para Jake ao volante, conversando com a namorada.
Sua conversa estranha e sinuosa com sua namorada contém inúmeras pistas de que as coisas não são o que parecem. Por exemplo, o nome da namorada muda diversas vezes, assim como o seu suposto campo acadêmico (ora é uma estudiosa em física quântica, ora uma garçonete etc.), sugerindo que ela pode ser menos uma mulher de carne e osso do que uma lembrança vagamente reconstruída.
Tudo o que vimos, do início ao fim, foi essencialmente os labirintos das memórias, sonhos, fantasias e ilusões de um velho zelador solitário de um colégio que não conseguiu realizar os sonhos da glória acadêmica e sentimental. A namorada de Jake nada mais é do que uma versão idealizada de alguém que conheceu casualmente em um bar, sentiu-se atraído, mas não teve a coragem de abordá-la.
Toda a viagem foi através de uma jornada interior de memórias de Jake, desejos não realizados, obsessões e arrependimentos. Essencialmente é a triste história de um homem que metaforicamente matou seu jovem eu sonhador e cheio de ideais – como na sequência final em que Jake aceita o Prêmio Nobel.
A grande chave de compreensão é a máquina de lavar no porão da casa dos pais de Jake. Lá a jovem encontra na máquina o uniforme do velho zelador que vimos nas cenas iniciais – uma espécie de metáfora do porão como a parte obscura da mente de Jake onde esconde a sua vergonha mais profunda: o fracasso acadêmico.
O filme está repleto de tocas de coelho metafísicas.
No quarto de infância de Jake, a câmera passa por vários livros, DVDs e obras de arte que mais tarde são revelados como totens de sua memória, referências aos quais estão espalhadas por todo o filme. Por exemplo, quando Jake e a namorada começam a falar, aparentemente do nada, sobre o drama de John Cassavetes de 1974 A Woman Under the Influence, sua opinião sobre o filme cita diretamente uma crítica do filme de Pauline Kael, cujas críticas coletaram estavam na prateleira de Jake.
O discurso de aceitação do Prêmio Nobel de fantasia final de Jake cita literalmente aquele feito pelo matemático e economista John Nash, cuja luta contra a esquizofrenia foi narrada no filme Uma Mente Brilhante (2001) - um dos DVDs na prateleira de Jake.
Com o seu roteiro no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Charlie Kaufman criou um ponto de inflexão nos filmes gnósticos: se na era Matrix tínhamos protagonistas prisioneiros por perfeitas simulações tecnológicas da realidade, a partir desse filme (ao lado de Vanilla Sky, 2001) vemos protagonistas prisioneiros em mundos interiores – desordens neurológicas ou psíquicas, conflitos interiores, alucinações, sonhos, memórias etc.
A única exceção é que em Estou Pensando em Acabar com Tudo não temos uma figura demiúrgica que manipula esse mundo interior. Porém, Kaufman ressalta o niilismo gnóstico ou existencial: assim como a vida na fazenda não tem nada de romântica ou relacionada à beleza da natureza (a sequência da estória do porco que estava sendo comido vivo por vermes mostra o quanto a Natureza pode ser feia e cruel), da mesma forma a existência é destituída de qualquer sentido ou propósito nobre.
Certamente, é o filme mais desesperançado de Kaufman. Lembrando aquelas quatro técnicas de sobrevivência para prisioneiros em campos de concentração, listadas por Jacques Bergier – nesse mundo, viveremos melhor se abandonarmos toda esperança e vivermos um dia de cada vez. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: Estou Pensando em Acabar com Tudo |
Diretor: Charlie Kaufman |
Roteiro: Charlie Kaufman |
Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Collete, David Thewlis |
Produção: Likely Story |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2020 |
País: EUA |
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