No próximo 5 de outubro, nossa Constituição estará completando 30 anos de vigência. A Constituição Cidadã, conforme a qualificou Ulysses Guimarães, foi e vem sendo tratada como Carta Magna? A Carta Magna vem sendo adequadamente zelada pelo STF, à vista do que ela mesma impôs em seu artigo 102? Até que ponto as chamadas interpretações extensivas impactaram, ou não, o escopo da Constituição Federal?
Poder Judiciário e constitucionalismo abusivo
Por Fernando Honorato
Chiara Signorini foi uma mulher camponesa de hábitos simples, casada com Bartolomeo Signorini e mãe de alguns filhos (não se sabe quantos). Com péssima fama nos arredores onde viveu em situação de isolamento social, à margem da convivência comum, era constantemente despedida por seus patrões. Janaína Aparecida Quirino é mulher pobre, usuária de álcool e outras substâncias entorpecentes, mãe de cinco filhos, todos menores em situação de abrigamento, vive constantemente em situação de rua. Para além do estado de invisibilidade e exclusão social, o que as mulheres mencionadas apresentam em comum?
Ambas foram processadas, julgadas e condenadas por fatos reprovados pelo direito, função que hoje cabe ao Poder Judiciário. Chiara Signorini foi submetida a sete interrogatórios. Janaína não foi interrogada uma vez sequer. O processo referente a Chiara Signorini pertence a um conjunto de processos inquisitoriais conservado no Arquivo de Estado de Módena, na Itália, em que a referida senhora foi acusada de feitiçaria em 1518. O processo referente a Janaína é mais recente e apresenta idioma mais familiar aos leitores: no interior de uma cidade do Estado de São Paulo, Janaína foi condenada à esterilização compulsória em 2016. Assim, sem ter sido ouvida em juízo e sem direito de defesa, ela foi submetida à laqueadura sem manifestação de vontade expressa e inequívoca neste sentido.
Os casos de Chiara e Janaína possibilitam uma análise sobre o papel que os juízes exercem – ou deveriam exercer – na garantia e efetivação de direitos fundamentais no contexto democrático, a partir de um olhar histórico que problematize a prática do constitucionalismo abusivo por integrantes do sistema de justiça brasileiro. Toda análise histórica é datada e, por isso mesmo, limitada, parcial, fragmentada, sendo, portando, insuficiente para a formulação de uma verdade geral incontrastável. Com isso pretendo ressaltar que nem todos os juízes praticam o constitucionalismo abusivo.
Uma das questões centrais para a teoria constitucional atualmente é como as constituições podem ser usadas para melhor proteger a ordem democrática. Constitucionalismo e democracia estão imbricados como duas faces de Jano. Na modernidade, o constitucionalismo traduz a exigência do Estado de Direito, separação dos poderes e proteção de direitos fundamentais por meio, dentre outros mecanismos, de um Poder Judiciário autônomo e independente. Sempre que o uso destes mecanismos for capaz de tornar a sociedade menos democrática, estaremos diante do que David Landau designou por “constitucionalismo abusivo”1.
Referindo-se a manobras que tornam um regime menos democrático, Landau associa a democracia a um espectro, reconhecendo que existem vários tipos de regimes híbridos, situados entre o autoritarismo total (que Hannah Arendt designou de totalitarismo) e a democracia plena. Em outras palavras, sempre poderão ocorrer traços autoritários em uma democracia, do mesmo modo que um regime autoritário poderá experimentar eventualmente práticas democráticas. Por isso mesmo, como ensinam Marcelo Cattoni e Rafael Patrus, é fundamental que a constituição permaneça aberta à interpretação pluralista, a um projeto permanente de Estado Democrático de Direito2.
Enquanto métodos tradicionais de ruptura com a democracia como golpes de estado têm declinado nas últimas décadas, o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários ou semiautoritários tem crescido. Os atores e forças políticas dominantes podem engendrar mudanças constitucionais que tornem muito difícil desalojá-los do poder, bem como enfraquecer instituições responsáveis pela sua fiscalização. Instituições como o Poder Judiciário podem ser controladas e mobilizadas em prol dos projetos políticos destes detentores do poder. O resultado é a diminuição da proteção aos direitos de minorias, bem como um alto índice de incidência de violações de direitos humanos.
É extremamente fácil construir um regime que pareça democrático, mas que, na verdade, é autoritário. Daí surgem constituições que aparentam ser democráticas quando vistas de longe, na medida em que contêm elementos que não são diferentes daqueles encontrados em constituições democráticas liberais. Mas, vistas de perto, elas foram substancialmente modificadas com a finalidade de enfraquecer a ordem democrática. O constitucionalismo abusivo é muito mais difícil de ser detectado do que as ameaças tradicionais à democracia. O truque, evidentemente, é preservar a aparência de constitucionalidade diante desta realidade.
Quando o próprio Poder Judiciário se converte em fonte de violação dos direitos fundamentais, como no caso da esterilização eugênica acima relatada; ou ainda, nos casos de flexibilização do princípio do estado de inocência, com o reconhecimento da possibilidade do cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; ou ainda, da proliferação de condenações criminais com lastro apenas na palavra da vítima, testemunhos policiais e delações premiadas; ou ainda, das violações às regras de competência no caso Lula, e tantos outros, estamos diante da prática do constitucionalismo abusivo.
O historiador italiano Carlo Ginzburg, que narra a história de Chiara Signorini3, revela o que chamou de “ligeira desorientação” ao analisar o processo criminal em que Adriano Sofri foi condenado a vinte e dois anos de prisão pela Audiência de Milão (com base em uma espécie de delação premiada), pela prática de homicídio contra o comissário de polícia Luigi Calabresi. Esta foi a primeira sensação experimentada pelo historiador, acostumado por razões profissionais a ler processos inquisitoriais dos séculos XVI e XVII, ao começar a ler as atas do referido processo que tramitou no ano de 1988 sob a instrução do juiz Antonio Lombardi e do promotor Ferdinando Pomarici. A referida desorientação decorreu da familiaridade entre os processos inquisitoriais de bruxaria e o processo de Adriano Sofri, dando uma impressão de continuidade com o passado que o surpreendeu de imediato4.
Esta semelhança deve servir de alerta para a sociedade com relação ao que se espera do Poder Judiciário, sob pena de voltarmos à era de uma caça às bruxas, literalmente.
O presente artigo está incluído em uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Este espaço é compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
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1 Ver David Landau, Abusive constitutionalism, U.C.D.L. Rev, v. 47, n. 189, p. 189-260, 2014.
2 Marcelo Cattoni e Rafael D. Patrus, Constituição e poder constituinte no Brasil pós-1964: o processo de constitucionalização brasileiro entre “transição e ruptura”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, v. 45, 2016, p. 171-191.
3 Ver Carlo Ginzburg, “Feitiçaria e piedade popular: notas sobre um processo modenense de 1519”, in Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 15-39.
4 Ver Carlo Ginzburg, Il giudice e lo storico, Milano, Feltrinelli, 2006, esp. p. 13-16.
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