sábado, 21 de julho de 2018

A FILOSOFIA DO DIREITO E A IRA EM FACE DE DIREITOS DESRESPEITADOS

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Na esteira dos fatos que conduziram a manifestações "Sobre o Maior Imbróglio Jurídico do Século" - AQUI -, como a do professor Lênio Streck, ontem reproduzida por este blog, vale publicar o texto a seguir.
A despeito de tudo, mais do que nunca é preciso exercitar o que aqui dissemos: "E no entanto é imperioso que a defesa do réu se mantenha firme no caminho do estado de Direito".


Hans Sebald Beham.

Razões e desrazões para além da ira jurídico-política 

Por Eliseu Venturi

“’Útil’, dizem, é a ira, porque nos torna mais belicosos. Do mesmo modo é a embriaguez, porque nos torna insolentes e ousados, e a maioria, levemente sóbria, manuseia bem o ferro. Da mesma forma dirás que o frenesi e a insânia são necessários às nossas forças, porque, frequentemente, o furor dá mais vigor”. (Sêneca[ii]).
Os eventos jurídicos com desdobramentos tragicômicos em sucessão desde 08 de julho de 2018 levaram, mais uma vez, a partir de mais um capítulo, uma série de profissionais e pesquisadores do Direito a se perguntarem, com muito amargor, os motivos de terem dedicado uma vida ao Direito e de permanecerem neste caminho, participando de um controle intersubjetivo que parece ter sido derrotado pelo cinismo quase-institucionalizado.
Afinal, se a política (judicial) tudo pode, Direito para quê? Normas para quê se autoridades podem agir de modo insolente e soberbo, corroboradas por uma mídia antidemocrática? Se o Direito será torcido e distorcido aos limites de sua ruptura, qual a razão de continuar se subordinando ao seu império, de se continuar respeitando sua autoridade deslegitimada, de se estudar o Direito?  
O debate não é novo; aliás, é um dos clássicos problemas[iii] em Direito Constitucional em torno a uma prevalência ou dos fatores reais de poder ou da força normativa e da normatividade constitucionais (e, por extensão, jurídicas). Ademais, a resistência aos abusos de poder radica na existência dogmática dos direitos humanos e fundamentais e o próprio direito de resistência se assenta em tal premissa crítica.
De qualquer modo, a persecução daqueles motivos profissionais íntimos, em verdade, integra o cotidiano de qualquer ofício diante dos impasses do desenvolvimento de qualquer atividade. Porém, quando se alcança uma projeção macropolítica, institucional e estrutural, como a que se vê agora, que em muito supera os dramas micropolíticos e que neles projeta seus efeitos diretamente, mais se dissemina tal atmosfera de descontentamento – obviamente, por parte daqueles que não encaram o cenário com a festividade alienada e beócia do telejornal nacional.
Mistura de sentimento de traição pela arte e pela técnica (ou de traição da arte e da técnica), frustração, desespero e constatação de um estado de coisas para além do arbitrário, tal autoquestionamento profundo por parte daqueles profissionais expõe uma série de outras perguntas envolvidas (que retornam mesmo ao que seja o Direito, sua função social, sua extensão de garantias etc.), mas que também remete aos afetos na política.
Nesse sentido, uma paixão de ira inevitável parece tomar conta da vida jurídico-política; e este sentimento é mau conselheiro, embora não se deva desprezar sua presença, nem tampouco dela deixar de extrair outros efeitos que o meramente destrutivo e do ressentimento. Seu caráter indicial é valioso, embora seja paixão inútil.
Se, nas linhas de Maquiavel, ao político será esperada uma articulação inteligente entre Virtú e Fortuna, é, por outro lado, também ínsito ao controle racional da ira, conforme a reflexão de Sêneca, a consciência dos desígnios cambiantes da Fortuna. Algumas reflexões, assim, podem ser extraídas desta leitura e devem ser especificadas no debate de uma Filosofia do Direito.
Para Sêneca, a origem das bases da ira se encontraria na natureza das concepções racionais que se tenha do mundo e da vida. Tais concepções determinam certas expectativas, que podem se dar em diversos níveis e segundo maiores ou menores ânimos de otimismo e pessimismo atador.
Em geral, sob um ânimo com mais otimismo e esperança, pode-se chegar a expectativas muito elevadas e, assim, mais suscetíveis à irritação. A frustração destas expectativas produz sentimentos que englobam a auto piedade de se sentir submisso a uma injustiça e a surpresa e raiva de se ter por traída uma expectativa.
As consequências da ira, por sua vez, o mais das vezes são desmensuradas e catastróficas (tal como vira o filósofo no palácio subterrâneo de Nero), daí a necessidade de se compreendê-la como para além de um surto irracional.
A ira, assim, se sujeita ao controle pela argumentação filosófica, afastando-se da motivação da tomada de quaisquer decisões, enfocando-se, então, as virtudes mais apropriadas para se racionalizar e decidir qualquer medida – razão pela qual se vence primeiro a ira e, depois, os problemas que a motivam.
Desta sorte, repensar as concepções de mundo, as expectativas, e, mais, compreender e aceitar a previsibilidade de fatos da vida segundo padrões mais pessimistas (e, assim, mais precavidos) seriam medidas iniciais para se manter a calma e a compostura diante das inevitáveis frustrações, estopins da ira.
Afinal, a fortuna, cuja cornucópia pode trazer o bem, e cujo timão, os infortúnios, é inevitável e a ela se está sempre submetido; sua advertência serve especialmente como contraponto à cultura do indivíduo racional soberano, que imagina controlar sua vida e os fatos a sua volta – um dos fatores que, ademais, maximizam a ira nos sujeitos.
Trata-se de uma missão ainda mais complicada àqueles profissionais mencionados no começo do texto. O conhecimento das finalidades institucionais, suas missões, seu custo histórico, democrático e mesmo financeiro, parecem produzir – racionalmente – imensas expectativas em todos, ainda mais com a riqueza de direitos advindos em uma cultura democrática em construção.
Parece impossível administrar, emocionalmente, retrocessos e destruições, assim como assistir passivamente uma implosão devastadora de um projeto histórico de lutas e trabalho quando das violações constantes que se tem visto, o que demanda o mais frio estoicismo.
A urgência, nas linhas de Sêneca, é de uma necessidade de mudança das atitudes diante das situações que não se pode influenciar, sem definhar na descrença da impotência completa. Não se trata, portanto, de uma descrença no Direito, muito pelo contrário.
A situação toda, assim, precisa ser movida para fora da retroalimentação de um movimento circular da ira (que só promoverá mais autoritarismo e violação de garantias e direitos) em direção a uma ressignificação das coisas a partir desta mudança de atitude. Há todo um ressentimento ante a efetividade dos direitos fundamentais que se insere neste circuito, bem como todo um fomento estruturado em torno da frustração, do ódio pela esfera do político, pelo desprezo às formas de alteridade e solidariedade social.
Vencida a ira, veremos, livres dela, as causas mesmas de nossas expectativas e frustrações, assim como conseguiremos novo fôlego para a recriação tão urgente da política, da ética e, assim, da recuperação do Direito. Um novo horizonte estará posto numa antiga e valiosa moldura, e os profissionais e pesquisadores poderão contemplar com toda a beleza a paisagem de suas escolhas de vida.  -  (Fonte: AQUI).
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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.



[i] Hans Sebald Beham (1500–1550), Fortuna, gravura, 1541. Disponível em: < http://www.philamuseum.org/collections/permanent/203619.html?mulR=5194>. Acesso em: 15 jul. 2018.
[ii] LIMA, Ricardo. “De Ira” de Sêneca: tradução, introdução e notas. 2015. 238 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Universidade de São Paulo, Brasil. p. 66. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-14032016-110602/en..... Acesso em: 15 jul. 2018.
[iii] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

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