segunda-feira, 24 de abril de 2017

UM POUCO DE HISTÓRIA: SOBRE GETÚLIO E O IMPONDERÁVEL


A campanha de imprensa que levou Getúlio Vargas ao suicídio

Por André Araújo

A crise politica que levou o Presidente Vargas ao suicídio em 24 de agosto de 1954 foi em grande parte montada pela imprensa carioca, naquela época a mais importante do Pais pela quantidade e peso dos jornais, pela alta qualificação dos colaboradores, parte deles grandes escritores da nata da literatura brasileira do século passado. Os donos e diretores dos jornais estavam no centro da elite social e econômica do Pais e sua influencia era proporcionalmente maior que hoje, havia uma interpenetração da politica no jornalismo e vice-versa.

A linha de frente da imprensa carioca era anti-Vargas por uma série de razões históricas, o terceiro tempo desse grande estadista da politica brasileira era voltado para uma linha que poderia se chamar de centro esquerda, nacionalista e desenvolvimentista, que desagradava aos chamados “setores conservadores” da sociedade e da politica brasileiras, os quais curiosamente apoiaram fortemente o mesmo Vargas nos quinze anos entre 1930 e 1945 e o temiam especialmente no período ditatorial do Estado Novo, quando Vargas era reverenciado.

O primeiro tempo de Vargas foi da Revolução de 1930 até o auto golpe do Estado Novo em 10 de novembro de 1937. Esse tempo foi de um governo centrista que lutou contra inimigos internos tradicionais, a elite paulista, o Partido Comunista, os integralistas, os tenentes de inicio aliados e depois um estorvo a descartar.

O segundo tempo de Vargas foi de uma direita proto-fascista: o Governo Vargas do Estado Novo era aliado do Terceiro Reich e por  acordos comerciais  em 1938 o Brasil foi o maior parceiro comercial da Alemanha e colocou nas fábricas Krupp a maior encomenda de artilharia na história da indústria bélica alemã, 1.100 canhões, cujo destino e desfecho caberiam em um outro artigo (a maior parte da encomenda  foi confiscada pela Marinha britânica no meio do Atlântico). Os generais Goes Monteiro e Dutra tinha uma tendência pro-Alemanha que perdurou de 1935 a 1940.

O terceiro tempo de Vargas, aquele da eleição democrática de 1950,  foi mal recebido pelo núcleo conservador da política, em cuja linha de frente estava o partido nascido da oposição a Vargas, a União Democrática Nacional, de viés conservador liberal pro-Estados Unidos, um partido de classe média urbana com lideranças de elite em torno do Brigadeiro Eduardo Gomes, líder da Aeronáutica, curiosamente Arma criada pelo próprio Vargas em 1941.

As grandes decisões de Vargas no chamado “período democrático”  entre 1950 e 1954, viram nascer por iniciativa do Presidente Vargas o BNDE, a Petrobras, a Eletrobras e toda uma politica de desenvolvimento nacional coordenada pelo Estado, parte dela elaborada pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, o chamado Plano SALTE. Apesar de nacionalista-desenvolvimentista nesse período, Vargas tinha boas relações com os Estados Unidos, afinal Vargas tinha sido um importante - pela cessão de bases aéreas fundamentais no Nordeste - e valioso aliado dos americanos na Segunda Guerra, algo que não fora esquecido.  O BNDE foi capitalizado com o saldo  do Fundo do Trigo no Banco do Brasil, conta essa do Governo americano pelo fornecimento de trigo nos anos da Segunda Guerra e no pós-guerra, valor que ficou depositado e não sacado pelo governo americano. Vargas jogava golfe no Itanhangá com os Embaixadores  Johnson e Kemper, que o tinham em alta conta, especialmente porque no mesmo período Peron era o símbolo do anti-americanismo na America Latina em contraste com o moderado Vargas.

Os inimigos de Vargas se congregavam na UDN, especialmente no Rio de Janeiro e Minas Gerais - a UDN paulista nunca teve o peso de suas seções cariocas e mineiras -; em São Paulo o partido mais ativo era o PSP-Partido Social Progressista, de Ademar de Barros, outra emanação do varguismo, e o nascente PDC-Partido Democrata Cristão.

Vargas já era combatido pela UDN, perdedora das eleições de 1946 para o ex-condestável do Estado Novo, Marechal Eurico Gaspar Dutra, oriundo do varguismo, embora depois opositor a Vargas, e depois a UDN perdeu as eleições da 1950 para o próprio Getúlio. Era portanto um partido sedento de vingança contra o varguismo, cuja contestação era a razão de ser do partido: a UDN nasceu para combater Vargas e as forças que ele representava.

O chamado “atentado da Rua Toneleros” foi uma trama urdida pelo chefe da segurança de Vargas, Gregório Fortunato, pessoa de absoluta lealdade a Getúlio mas ignorante e sem noção da complexidade do quadro politico. Pensando estar prestando um serviço ao chefe, Gregório contratou um pistoleiro para matar Carlos Lacerda, maior inimigo de Vargas na imprensa; na execução do atentado foi atingido e morto um oficial da Aeronáutica,  Major Rubens Vaz, que acompanhava Lacerda no momento, o que desencadeou uma crise politico-policial de 20 dias,  amplificada pela imprensa e capitalizada pela aguerrida oposição liderada pela UDN, que viu no acidente fatal uma chance única de tirar Getúlio do poder, com apoio dos militares da Aeronáutica, que montaram um Inquérito Policial Militar para apurar o fato com viés de apontar Getúlio como mandante com o  apoio da imprensa da direita aguerrida.

Pela lógica dos acontecimentos estava claro desde o inicio que não fora Vargas o mandante do atentado, que não tinha nenhuma razão de ser a luz da lógica mental  de um politico sofisticado e tarimbado como  Vargas, com décadas de experiência politica.

Getúlio jamais iria correr esse tipo de risco absurdo e irracional, que mesmo que tivesse sucesso em nada aproveitaria a ele. Só a ignorância e a estupidez de um fiel mas primário Gregório poderia engendrar tal missão amalucada pensando com isso prestar um serviço ao chefe.
Todo esse quadro ficou claro para a imprensa carioca da época, MAS como não aproveitar um erro dos porões do Catete para atingir o poder do Presidente e derrubá-lo?

Os jornais cariocas da época eram muitos, poderosos e na esmagadora maioria anti-Vargas:

O JORNAL – Carro chefe dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, brilhante jornalista e chantagista, não tinha viés ideológico, poderia ir para um lado ou outro de acordo com suas conveniências, Chatô tinha uma longa história de amor e ódio a Vargas desde os anos 20.
Tiragem: 70 mil exemplares – Diretor: Teiphilo de Andrade
Colaboradores: José Lins do Rego, Murilo Marroquim
DIÁRIO DE NOTÍCIAS – Jornal de grande influência política, anti-Vargas, meio sensacionalista, barulhento, com um público de classe média da Zona Sul.
Tiragem: 50 mil exemplares - Diretor: Orlando Dantas
Colaboradores: Joel Silveira, Raul Pilla, R. Magalhães Jr.
JORNAL DO COMMERCIO – O mais antigo jornal do Rio, fundado em 1827, politicamente neutro, conservador, com público no comercio varejista, nos importadores e advogados.
Tiragem : 20 mil exemplares – Diretor : Elmano Cardim
Colaboradores: Sobral Pinto, Dinah Silveira de Queiroz, Otto Prazeres (pai de Lourdes Catão)
JORNAL DO BRASIL – O mais nobre dos jornais do Rio, rei dos anúncios classificados, orientação política moderada, muito ligado aos EUA; um de seus diretores, Al Neto, era relações públicas da Embaixada americana.
Dono e Diretor: Conde Pereira Carneiro
Tiragem: 45 mil exemplares - Redator Chefe: Aníbal Freire
Colaboradores: Barbosa Lima Sobrinho, Roquette Pinto.
DIÁRIO CARIOCA – Jornal dos granfinos, dono:  Horácio de Carvalho, milionário, foi primeiro marido de Lily Marinho que depois seria a  terceira e última esposa de Roberto Marinho. Horácio de Carvalho era um dos ícones da alta sociedade carioca, descendente da aristocracia mineira, o jornalismo era mais um hobby apaixonante.
Tiragem: 40 mil exemplares – Diretor: Danton Jobim
Colaboradores: Pedro Dantas, Mauricio Medeiros, J.B. de Macedo Soares
O Diário Carioca apoiou o Governo Dutra mas era anti-Vargas, Horácio de Caralho era todavia amigo e apoiador de Juscelino, nessas voltas e reviravoltas que são típicas da política mineira.
DIÁRIO DA NOITE – O jornal mais popular dos Diários Associados, orientação política de acordo com os interesses de Assis Chateaubriand, que eram essencialmente monetários. Na campanha de agosto de 1954 foi na onda anti-Vargas. Chatô tinha excelente olfato para carniça e já via o fim de Getúlio; depois se reaproximou do varguismo com JK, que o nomeou Embaixador em Londres para tirá-lo do Brasil e ter o apoio de seus jornais.
Tiragem: 80 mil exemplares – Diretor: Austregésilo de Athayde (da Academia Brasileira de Letras)
TRIBUNA DA IMPRENSA – O grande porta-voz do anti-varguismo, sem limites, escandaloso - lembra muito a VEJA de hoje -, atiçava e açulava a Aeronáutica para incriminar Vargas no Inquérito Policial Militar sobre o atentado da Rua Toneleros, cujo alvo (Carlos Lacerda) era o diretor do jornal.
Esse IPM foi conduzido na Base Aérea do Galeão, que ficou conhecida como “República do Galeão”, pelo poder autoritário e arbitrário dos investigadores, tudo indicando que iriam incriminar Vargas como mandante do crime da Rua Toneleros: a imprensa pressionava a Aeronáutica para chegar a esse desfecho mesmo quando se via que Vargas NÃO era o mandante e sequer sabia do plano de Gregório.
A tiragem da Tribuna era pequena mas sua repercussão, grande; a Tribuna queria ver sangue na Crise de Agosto e exagerou no tom e nos ataques: quando Getúlio se matou Lacerda teve que se exilar em Portugal porque sua vida corria perigo no Brasil, era tido e havido por alguns como o causador do suicídio de Getúlio.
Tiragem: 25 mil exemplares – Diretor: Carlos Lacerda
Colaboradores: Adauto Lúcio Cardoso, Gustavo Corção, Dario de Almeida Magalhães, Alceu Amoroso Lima, Edgar Mata Machado.
O GLOBO – Jornal carioca de maior circulação, conservador e anti-Vargas, intransigente defensor da política externa americana. O GLOBO seguiu na onda dos ataques a Vargas mas não na linha de frente como a Tribuna, o Diário Carioca e o Diário de Noticias.
O instinto do grupo sempre foi o de tirar proveito das crises políticas mas sem se arriscar.
Tiragem: 110 mil exemplares – Diretor: Roberto Marinho
Redator-Chefe: Herbert Moses (presidente vitalício da Associação Brasileira de Imprensa)
ÚLTIMA HORA – Jornal oficialista, fundado para apoiar Vargas, jornal  também personagem da crise pelos ataques que Lacerda fazia a Samuel Wainer. ÚLTIMA HORA foi financiado pelo Banco do Brasil e foi um dos epicentros dos ataques de Lacerda a Vargas antes do atentado.
Tiragem: 90 mil exemplares – Diretor: Samuel Wainer
Havia ainda mais meia dúzia de jornais de menor tiragem e influência, como A NOITE, O MUNDO, FOLHA TRABALHISTA, etc
Toda a CAMPANHA DE IMPRENSA de 20 dias tinha um objetivo: fazer Vargas renunciar e ser preso. Quando viram que Vargas não renunciaria, foi proposta a Vargas uma licença por tempo indefinido, para não mais voltar. Vargas disse que estava muito velho para sair do poder humilhado. A solução foi a mais inesperada, o suicídio na madrugada do dia 24.
O gesto final e fatal teve também um cálculo político de Vargas, na morte. O SUICÍDIO desmontou a conspiração anti-varguista e deu uma sobrevida ao sistema de Vargas por mais 10 anos, sistema esse que estava baseado no PSD-Partido Social Democrata e no PTB-Partido Trabalhista Brasileiro, nos sindicatos e nos caudilhos do Brasil rural - ainda metade da população do Brasil morava no campo -; o sistema de alianças do varguismo se estruturava por todo o Norte-Nordeste e Centro do Pais, com os herdeiros dos chamados “Interventores” do Estado Novo; aliados históricos de Vargas, como Benedito Valadares em Minas, Vitorino Freire no Maranhão, Pedro Ludovico em Goiás. Agamenon Magalhães em Pernambuco.
O suicídio causou um choque e uma comoção que ninguém esperava, Lacerda teve que fugir do Pais para não ser linchado, as forças anti-Vargas foram desbaratadas e o grupo de Vargas, representado pelo PSD, especialmente de Minas, e pelo PTB se reagrupou e retomou força politica, conseguindo eleger Juscelino no ano seguinte tendo Jango como vice.
O sistema de Vargas foi desmontado em 1964 pelo regime militar mas sua raiz nacional desenvolvimentista rebrotou no Governo Geisel, que fez parte da Revolução de 1930 (Geisel foi em 1931 Secretário da Fazenda da Paraíba).
A campanha  que levou Vargas ao suicídio não foi algo excepcional na história da imprensa brasileira; campanhas virulentas ocorreram nos movimentos abolicionista, republicano,  no levante de Canudos, no episódio Pinheiro Machado, no movimento tenentista,  no período prévio à Revolução de 30, especialmente no episódio João Dantas, depois na vitória da Revolução, na campanha contra Jango em 1964, na eleição de Collor.
Não é possível entender a história da imprensa brasileira sem conhecer a fundo a biografia de Assis Chateaubriand e suas campanhas de aluguel, sempre a serviço de seu bolso. Brilhante e mau caráter, Chatô ao lado de suas malfeitorias legou também extraordinários ativos ao Brasil nas campanhas memoráveis dos aeroclubes - que resultaram em centenas de pistas de aviação no interior -, nos postos de puericultura e na construção e formação do Museu de Arte de São Paulo, o maior da América Latina. Para tudo arrecadava dinheiro dos empresários na base do achaque, ficava com uma parte MAS usava a outra parte para os fins da campanha; ao fim legou grandes realizações e uma biografia complicada, seu vírus foi inoculado na imprensa brasileira e continua rondando revistas e noticiários de TV, que praticam seu tipo de jornalismo agressivo mas sem deixar o seu tipo de legado.
O suicídio de Getúlio não era uma hipótese considerada por qualquer analista político da época. O acontecimento mostra como o imponderável domina a História, é impossível prever todas as hipóteses e acasos. Se a crise tivesse o desfecho esperado, Getúlio seria deposto  e provavelmente preso, as forças que se aglutinaram para eleger JK não conseguiriam essa concentração porque o PTB teria sido destruído como símbolo do varguismo, a UDN chegaria ao poder que tanto ambicionava, com ou sem votos, e a História do Brasil teria sido outra desde então; cada etapa da Historia  determina a seguinte.
Ninguém sabe como o  líder acuado traça seu destino e como esse destino reverbera no futuro. O líder, mesmo morto, preso ou exilado sempre representa uma ideia, uma amálgama de forças, mesmo caído  influencia o porvir, essa é a lição da História.
Respeitar o imponderável é uma advertência em todas as crises políticas.  -  (Fonte: AQUI).

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