Por Cinzia Arruzza
O anti-Berlusconismo dominante nunca quis admitir a continuidade entre as políticas de austeridade de Berlusconi e as políticas da centro-esquerda.
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Não faltaram comparações entre Donald Trump e o ex-primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi ao longo da campanha presidencial norte-americana e só aumentaram depois de Trump declarar vitória. E elas não são totalmente desprovidas de fundamento.
Podemos elencar alguns ensinamentos importantes se nos afastarmos das aparentes semelhanças entre Berlusconi e Trump, e em vez disso nos concentrarmos nas semelhanças entre o anti-Berlusconismo e a forma que ameaça tomar o anti-Trumpismo.
As semelhanças acabam aqui. A ascensão de Trump ao poder é em certa medida mais surpreendente que a mais previsível primeira vitória eleitoral de Berlusconi. Enquanto Trump capturou o Partido Republicano, concorrendo contra grande parte do sistema Republicano e os media, Berlusconi usou o seu império mediático para controlar a informação e criar um novo partido, moldando o espectro político nesse sentido. Devido às características do sistema parlamentar italiano, Berlusconi foi obrigado a coligar-se com outros partidos de direita que rivalizavam entre si, Aliança Nacional e Liga Norte: o primeiro sucedeu ao partido neofascista MSI e o segundo é um partido de direita federalista e xenófobo. Além disso, Berlusconi não tinha a bandeira do isolacionismo e protecionismo, não desafiava os acordos comerciais internacionais e não punha em causa a participação da Itália na criação da União Europeia e da zona euro – pelo menos até 2011. Por último, a Itália não tem um papel geopolítico hegemônico comparável ao dos Estados Unidos.
Estas diferenças são suficientemente importantes para prevenir prognósticos superficiais sobre o rumo da presidência Trump com base nas vicissitudes italianas. Mas isso não quer dizer que não sirvam para tirar algumas lições da experiência italiana. Pelo contrário, podemos elencar alguns ensinamentos importantes se nos afastarmos das aparentes semelhanças entre Berlusconi e Trump, e em vez disso nos concentrarmos nas semelhanças entre o anti-Berlusconismo e a forma que ameaça tomar o anti-Trumpismo.
Estas diferenças são suficientemente importantes para prevenir prognósticos superficiais sobre o rumo da presidência Trump com base nas vicissitudes italianas. Mas isso não quer dizer que não sirvam para tirar algumas lições da experiência italiana. Pelo contrário, podemos elencar alguns ensinamentos importantes se nos afastarmos das aparentes semelhanças entre Berlusconi e Trump, e em vez disso nos concentrarmos nas semelhanças entre o anti-Berlusconismo e a forma que ameaça tomar o anti-Trumpismo.
A amnésia seletiva do anti-Berlusconismo
Num recente artigo no New York Times, Luigi Zingales dá-nos uma interpretação pouco sistemática dos erros cometidos pela oposição a Berlusconi, defendendo que a resistência contra todas as medidas de Berlusconi e as mobilizações populares contra o seu governo, e o foco excessivo no seu carácter acabaram por reforçar o poder de Berlusconi em vez de o enfraquecer. Na interpretação de Zingales, as únicas derrotas de Berlusconi deveram-se a campanhas eleitorais centradas em propostas positivas, em vez de ataques de caráter a Berlusconi, por parte de Romani Prodi e Matteo Renzi. A partir desta análise, Zingales propõe que os adversários de Trump devem parar com as atuais manifestações de rua e mostrar vontade de colaborar com a sua administração no Congresso em temas onde existe acordo entre o presidente e os Democratas contra o establishment Republicano, como novos investimentos em infraestruturas.
Isto é uma receita para o desastre. Deixem-me esclarecer os dados históricos. O primeiro governo de Berlusconi, em 1994, durou apenas sete meses inglórios. Foi varrido por uma mistura de fatores heterogêneos, dos quais podemos apontar os dois mais importantes. O primeiro foi a indisciplina da Liga Norte, cujos votos Berlusconi precisava mas a quem nada tinha para oferecer em troca. Nomeadamente, a tentativa de reforma do sistema de pensões e a sua incapacidade de promover uma reforma federalista foi contra os interesses eleitorais da Liga Norte, preocupada em perder boa parte do apoio entre os trabalhadores. Quando a Liga Norte decidiu retirar o apoio ao governo, Berlusconi foi obrigado a demitir-se. O segundo fator foi a mobilização popular, nomeadamente a greve geral de Outubro de 1994, convocada pelas três principais centrais sindicais contra a reforma das pensões, que – de acordo com fontes sindicais – levou três milhões de pessoas às ruas de 90 cidades, e outra em novembro, que teve uma manifestação de um milhão em Roma, uma das maiores manifestações sindicais até à data.
Mas é o que se seguiu à queda do primeiro governo de Berlusconi que pode dar as lições mais importantes à oposição anti-Trump, pois foi graças às políticas de austeridade e neoliberais seguidas pelo centro esquerda nos seis anos seguintes que o poder de Berlusconi se consolidou. Primeiro, o governo tecnocrata liderado por Lamberto Dini entre 1995 e 1996 levou a cabo a mais devastadora reforma do sistema de pensões até então, introduzindo o regime contributivo para substituir progressivamente o sistema retributivo. A reforma foi aprovada com o apoio do centro-esquerda e o acordo dos sindicatos, em nome de impedir a todo o custo o regresso de Berlusconi ao poder. Nas eleições de 1996, a coligação de centro-esquerda conseguiu obter a maioria parlamentar graças ao apoio da Refundação Comunista e à recusa da Liga Norte em formar governo com Berlusconi. A coligação de centro-esquerda formou o primeiro governo Prodi e em seguida o governo de Massimo D’Alema. Ao longo de cinco anos, os governos de centro-esquerda aprovaram as reformas laborais que introduziram a precarização massiva e reduziram bastante os direitos laborais; tentaram aprovar uma reforma destruidora da educação pública e conseguiram introduzir políticas de autonomia escolar que abriram caminho à gestão empresarial das escolas públicas, bem como reformas neoliberais no ensino superior; levaram a cabo a maior privatização de bens e empresas públicas de toda a Europa até essa altura; participaram no bombardeamento da OTAN à Sérvia; e aprovaram a lei de imigração que criou os primeiros centros de detenção para imigrantes sem documentos. Por fim, D’Alema criou o famigerado “Bicamerale”, uma comissão bipartida que, esperava ele, levaria a um acordo com Berlusconi sobre um projeto de reforma semi-presidencialista da Constituição que teria fortalecido as prerrogativas do poder executivo à custa da representação e da democracia parlamentar.
Com cada uma destas medidas, os governos de centro-esquerda só encontraram oposição organizada nas ruas por parte da esquerda radical, porque os sindicatos e os eleitores do centro-esquerda estavam dispostos a engolir tudo em nome de impedir a todo o custo o regresso de Berlusconi ao poder. O resultado brilhante destas políticas foi o verdadeiro início da era Berlusconi, com a sua vitória nas eleições de 2001, que lhe deu uma maioria esmagadora quer no Senado quer na Câmara de Deputados. Enquanto após 2001 o eleitorado do centro-esquerda saiu à rua para as manifestações anti-Berlusconi em defesa da democracia e contra a corrupção, os deputados do centro-esquerda continuaram a colaborar com Berlusconi sempre que possível e a protegê-lo das acusações judiciais, da mesma forma que se recusaram a aprovar uma lei contra o monopólio de Berlusconi no setor da informação durante os governos de Prodi e D’Alema. A cereja em cima do bolo foi o acordo de 2014 entre Renzi e Berlusconi para a reforma constitucional e a nova lei eleitoral, com a bênção do presidente da República, o ex-comunista Giorgio Napolitano. Também vale a pena recordar que Berlusconi perdeu as eleições de 2006 e só regressou ao poder após o governo Prodi ter sido incapaz de manter a sua estreita maioria parlamentar por causa da deserção de um pequeno partido centrista (UDEUR).
O anti-Berlusconismo italiano dominante sofreu sempre de amnésia seletiva. Os efeitos de seis anos de duras políticas de austeridade e virtual ausência de oposição social significativa nunca foram tidos em conta como um fator decisivo por detrás da consolidação do poder de Berlusconi. Esse anti-Berlusconismo dominante também nunca quis admitir a continuidade entre as políticas de austeridade do segundo governo Berlusconi e as do centro-esquerda. O ataque de Berlusconi aos direitos laborais foi, por exemplo, apenas um esforço para alargar a precariedade do trabalho introduzida pelo centro-esquerda (um objetivo atingido anos depois pelo governo de centro-esquerda de Renzi através da Lei do Emprego). As suas privatizações de serviços públicos seguiram-se à conversão do centro-esquerda à ideia de que o “privado” é melhor. A lei de imigração do centro-direita, que criminaliza a imigração ilegal, é apenas uma emenda à anterior lei do centro-esquerda. A participação italiana nas guerras no Afeganistão e Iraque só foi politicamente possível por causa da primeira violação do Artigo 11 da Constituição italiana – que impede a Itália de participar em guerras de agressão – por parte de D’Alema para permitir que as forças italianas ajudassem no bombardeamento à Sérvia.
Do anti-Berlusconismo ao anti-Trumpismo: evitar os mesmos erros
A conclusão desta triste história é esclarecedora. Apesar de toda a conversa sobre o fascismo de Berlusconi, o seu império mediático e controle da informação pública, a sua “videocracia” e o fim da democracia republicana, uma semana de terrorismo financeiro suave e a aliança de interesses entre a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o setor europeísta do capital italiano – com apoio do Presidente da República e do centro-esquerda – foi suficiente para afastar rapidamente Berlusconi do cargo e substituí-lo pelo governo tecnocrático de Mario Monti. Este foi o fim desse mesmo centro-direita que aos olhos do anti-Berlusconismo dominante era tão invencível uns meses antes.
(Nota deste blog: Renzi acaba de renunciar, em vista do resultado de plebiscito realizado neste final de semana.
Cristina Sampaio. (Portugal).
A direita italiana pode agora impor o brexit. União Europeia em polvorosa).
O anti-Trumpismo sofre do mesmo risco. Logo após as eleições presidenciais, a classe trabalhadora branca foi o alvo dos comentadores afetos aos Democratas, apontada como a causa da vitória de Trump e descrita como intrinsecamente racista e manifestamente inculta. Os eleitores dos pequenos partidos foram acusados de contribuir para a derrota de Clinton. As tentativas de explicar tanto o apoio do eleitorado trabalhador a Trump como a abstenção à luz das consequências da globalização neoliberal e desencanto com a presidência Obama foram ridicularizadas como sendo reducionismo econômico. E bastantes artigos de reflexão debruçaram-se acerca do fim da democracia americana e da chegada do fascismo americano.
Uma análise bem informada da composição do voto em Trump e o seu significado para as mudanças políticas moleculares em curso no eleitorado dos EUA terá de esperar até o fim da contagem dos votos. Contudo, parece haver nova informação importante. Ao contrário das leituras das últimas semanas, parece que Trump afinal obteve mais um milhão de votos do que Romney entre os eleitores latinos. A margem de vitória de Clinton no voto popular aumentou para uns impressionantes 1.7 milhão, mas Clinton continua 2.3 milhões abaixo de Obama em 2012 e é provável que alguns eleitores de Obama tenham agora votado Trump. Por fim, a afluência às urnas foi afinal maior que em 2012.
O que parece ter dado a vitória a Trump foi a combinação de dois fatores. Um deles, como é óbvio, é o sistema eleitoral extremamente antidemocrático, que o Partido Democrata nunca quis pôr em causa. O segundo fator assenta na capacidade de Trump em servir de catalisador para motivações de voto completamente heterogêneas. Uma parte significativa do seu eleitorado branco foi certamente galvanizada pelo seu tremendo racismo, homofobia e misoginia e viu em Trump um agente de vingança pela eleição de Obama e a nomeação de uma mulher candidata.
Mas um componente importante do voto em Trump não pode ser explicado sem referir a desilusão com a presidência Obama, os efeitos sociais dramáticos da crise econômica mundial, as deslocalizações, a austeridade e a percepção bem fundamentada das ligações de Clinton com Wall Street e o velho sistema.
Esta heterogeneidade de razões e expectativas, juntamente com a relação tensa entre Trump e um grande número de responsáveis Republicanos, representa um elemento de fragilidade na futura presidência Trump.
Uma oposição eficaz a Trump deve agir para desenredar estas razões heterogêneas e por vezes incompatíveis, por um lado lutando contra a nova vaga de racismo, misoginia e homofobia que aí vem e, por outro, dirigindo-se às legítimas aspirações para uma mudança radical, expressa parcialmente no voto em Trump e na abstenção de milhares de antigos eleitores dos Democratas. Isto significa trabalhar para a criação de grandes alianças sociais e movimentos que se oponham ao que aí vem, mas também abandonar de uma vez por todas a ideia de que o mal-menorismo, que já causou graves estragos, é uma alternativa válida. Como mostra o desastre do anti-Berlusconismo italiano, a única forma de contrariar eficazmente o neoliberalismo autoritário, racista e sexista é oferecer uma alternativa radical e crível.
(Fonte: Site Carta Maior; texto reproduzido no Jornal GGN - aqui).
[Cinzia Arruzza é Professora Assistente de Filosofia na New School for Social Research em Nova Iorque. É autora de “Feminismo e Marxismo – Entre Casamentos e Divórcios(link is external)”, entre outros livros. Artigo publicado na Verso Books(link is external). Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net].
Uma análise bem informada da composição do voto em Trump e o seu significado para as mudanças políticas moleculares em curso no eleitorado dos EUA terá de esperar até o fim da contagem dos votos. Contudo, parece haver nova informação importante. Ao contrário das leituras das últimas semanas, parece que Trump afinal obteve mais um milhão de votos do que Romney entre os eleitores latinos. A margem de vitória de Clinton no voto popular aumentou para uns impressionantes 1.7 milhão, mas Clinton continua 2.3 milhões abaixo de Obama em 2012 e é provável que alguns eleitores de Obama tenham agora votado Trump. Por fim, a afluência às urnas foi afinal maior que em 2012.
O que parece ter dado a vitória a Trump foi a combinação de dois fatores. Um deles, como é óbvio, é o sistema eleitoral extremamente antidemocrático, que o Partido Democrata nunca quis pôr em causa. O segundo fator assenta na capacidade de Trump em servir de catalisador para motivações de voto completamente heterogêneas. Uma parte significativa do seu eleitorado branco foi certamente galvanizada pelo seu tremendo racismo, homofobia e misoginia e viu em Trump um agente de vingança pela eleição de Obama e a nomeação de uma mulher candidata.
Mas um componente importante do voto em Trump não pode ser explicado sem referir a desilusão com a presidência Obama, os efeitos sociais dramáticos da crise econômica mundial, as deslocalizações, a austeridade e a percepção bem fundamentada das ligações de Clinton com Wall Street e o velho sistema.
Esta heterogeneidade de razões e expectativas, juntamente com a relação tensa entre Trump e um grande número de responsáveis Republicanos, representa um elemento de fragilidade na futura presidência Trump.
Uma oposição eficaz a Trump deve agir para desenredar estas razões heterogêneas e por vezes incompatíveis, por um lado lutando contra a nova vaga de racismo, misoginia e homofobia que aí vem e, por outro, dirigindo-se às legítimas aspirações para uma mudança radical, expressa parcialmente no voto em Trump e na abstenção de milhares de antigos eleitores dos Democratas. Isto significa trabalhar para a criação de grandes alianças sociais e movimentos que se oponham ao que aí vem, mas também abandonar de uma vez por todas a ideia de que o mal-menorismo, que já causou graves estragos, é uma alternativa válida. Como mostra o desastre do anti-Berlusconismo italiano, a única forma de contrariar eficazmente o neoliberalismo autoritário, racista e sexista é oferecer uma alternativa radical e crível.
(Fonte: Site Carta Maior; texto reproduzido no Jornal GGN - aqui).
[Cinzia Arruzza é Professora Assistente de Filosofia na New School for Social Research em Nova Iorque. É autora de “Feminismo e Marxismo – Entre Casamentos e Divórcios(link is external)”, entre outros livros. Artigo publicado na Verso Books(link is external). Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net].
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