sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O POWERPOINT É LIVRE


"Um ilustre jurista publicou no GGN um texto - reproduzido neste blog, AQUI - severamente admoestando o procurador (Dallagnol) da Lava Jato.

Disse Eugênio Aragão:
“Mas essa sua teorização de baixo calão não diz tudo sobre SEU complexo. Você à frente de sua turma vão entrar na história como quem contribuiu decisivamente para o atraso econômico e político que fatalmente se abaterão sobre nós. E sabem por que? Porque são ignorantes e não conseguem enxergar que o princípio fiat iustitia et pereat mundus nunca foi aceita por sociedade sadia qualquer neste mundão de Deus. Summum jus, summa iniuria, já diziam os romanos: querer impor sua concepção pessoal de justiça a ferro e fogo leva fatalmente à destruição, à comoção e à própria injustiça.”
Mesmo não sendo ilustre, discordo de Aragão no método. Na essência concordo inteiramente com ele. Explico.
Quando estava na Faculdade de Direito tive um professor de Direito Processual Penal que imediatamente considerei suspeito porque ele usava um anel. Não aquele perseguido por Gollum, na saga o Senhor dos Anéis, que somente exibia sua mensagem quando levado ao fogo. O anel do meu ex-professor era acintosamente eloquente. Ostentava dois fuzis cruzados e uma granada entre ambos. Ele havia sido oficial militar e atuara como Promotor durante os anos de chumbo.
Sendo filho de um perseguido político passei a hostilizar deliberadamente o algoz dos amigos de meu pai. Certa feita, obrigado a escrever uma redação sobre a pena de morte, produzi um texto mais literário do que jurídico em que condenava juristas como ele. Numa das frases que ainda consigo lembrar disse:
“Minha pena é de morte, para os professores que fazem do seu ofício o ócio dos livros nas estantes.”
No contexto em que foi inserida, esta frase admitia duplo sentido. O vocábulo “pena” poderia ser entendido como sinônimo de “caneta” ou de “punição”. A frase surtiu o efeito desejado. Ela causou um mal estar tão grande no ex-militar que ele me chamou diante dele para me perguntar o que eu havia dito. Sorrindo, disse que cabia ao leitor interpretar o texto segundo suas próprias convicções pessoais.
O professor passou a me olhar de maneira azeda. E eu continuei a azedar a vida dele. Certa feita, após fazer um comentário depreciando a tortura durante a Ditadura Militar, perguntei publicamente a ele o que significava aquele anel que ele nunca tirava. Ele disse que aquilo era o símbolo de um passado que ele preferia esquecer, pois como todo jovem ele também havia sido seduzido pelo canto de uma sereia.
Foi neste dia que comecei a ter alguma simpatia pelo referido professor, pois ele se revelou capaz de arrependimento. Lembrei-me dele quando li o livro “Eichmann em Jerusalém”, de Hannah Arend. A eminente filósofa alemã que imigrou para os EUA para não ser exterminada na Alemanha Nazista.
“O problema com Eichmann era exatamente que muitos como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado.” (Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 299).
Ao descrever o réu  que estava sendo julgado em Jerusalém, diz Arendt:
“Um ‘idealista’, segundo as noções de Eichmann, não era simplesmente um homem que acreditava numa ‘ideia’ ou alguém que não roubava e nem aceitava subornos, embora essas qualificações fossem indispensáveis. Um ‘idealista’ era um homem que vivia para a sua ideia – portanto não podia ser um homem de negócios – e que por essa ideia estaria disposto a sacrificar tudo e, principalmente, todos. Quando ele disse no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para a morte se isso tivesse sido exigido, não queria simplesmente frisar até que ponto se achava cumprindo ordens e pronto a executá-las; queria também mostrar o ‘idealista’ que sempre fora.” (Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 54).
Ao contrário de Eichmann meu professor de Direito Processual Penal havia demonstrado humanidade exatamente porque deixara de ser um idealista. É possível perdoar um homem que se arrepende dos erros que cometeu quando era jovem num contexto que não foi por ele criado. O juízo de reprovação é sempre mais severo quando somos obrigados a julgar os atos daquele que se recusa a admitir os crimes que cometeu justamente porque está em condições de saber ou sentir que está agindo de modo errado.
Apesar de já não nutrir rancor em relação ao professor de Processo Penal que demonstrou sua humanidade ao se mostrar arrependido por ter servido fielmente à Ditadura quando era jovem, ao final daquele ano letivo eu deveria ter sido reprovado. Além de não obter a média nas provas escritas eu não passara no exame oral. Após responder errado várias perguntas, o professor me perguntou o que deveria fazer comigo. Eu disse que estava nas mãos dele e que se ele continuasse me fazendo perguntas eu provavelmente continuaria respondendo errado, pois detestava Direito Penal e Direito Processual Penal.
Minha honestidade foi recompensada. O professor me perguntou qual nota eu precisava no exame oral. Seis, disse. “Eu vou lhe dar sete com uma condição. Você vai me prometer que nunca atuará em processos criminais”. Feito, respondi. “O senhor quer uma declaração escrita com firma reconhecida”.
Dallagnol age conscientemente de maneira errada ao expor à execração pública aquele que ainda não teve direito ao devido processo legal com a possibilidade de realizar provas e interpor os recursos cabíveis. Afinal, ao contrário de mim (que fui injustamente aprovado numa matéria que detestava), o perseguidor de Lula demonstrou profundo conhecimento de Direito Penal e de Direito Processual Penal quando foi aprovado no concurso para Procurador Federal. Apesar disso, como Eichmann, Dallagnol se transformou ou foi transformado num idealista e se mostra disposto a sacrificar os princípios constitucionais do Direito Penal não porque ele é especialmente malvado, mas porque a imprensa está disposta a aplaudir qualquer inimigo dos petistas. Como nos anos 1930, os jornalistas e telejornalistas constroem diariamente novos hostis generis humani.
Será necessário, portanto, que o procurador da Lava Jato continue a fazer teatro com PowerPoint. O contexto em que ele foi inserido pela mídia ainda não permite qualquer ação diferente. Se não agir segundo o script Dallagnol será imediatamente destruído pelas redes de TV. A esta altura, o procurador da Lava Jato certamente tem medo de ser  abandonado pela imprensa e esmagado pelos inimigos que os jornalistas e telejornalistas o incentivaram a combater de maneira implacável.
Num futuro distante (ou não tão distante) Dallagnol será julgado, mas não pelos critérios que ele desprezou. Então e somente então ele poderá demonstrar se será ou capaz de arrependimento antes de cumprir a pena que a História e os juízes dele determinarem.



(De Fábio de Oliveira Ribeiro, post intitulado "Dallagnol, continue a fazer teatro com Powerpoint", publicado no Jornal GGN - Aqui.
A propósito, não estranharíamos se se considerasse que o sr. Dallagnol sempre cultivou o sonho de ter nascido anglo saxão, enquadrando-se integralmente no perfil WASP. Como isso não foi possível, esmera-se em exercitar o furor religioso-persecutório, mediante pregações como a observada no episódio do Powerpoint...).

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