quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A MÍDIA, O RENTISMO E O DEBATE INTERDITADO


Debate interditado

Por Fernando Nogueira da Costa

Em um momento de retrocesso do social-desenvolvimentismo para o neoliberalismo, o debate das decisões cruciais – aquelas que mudarão o contexto brasileiro de maneira irreversível a não ser à custa de muitas perdas de rendas e riquezas –, na mídia (impressa e televisa) nacional, está interditado. O denominado PIG (Partido da Imprensa Golpista) só publica colunas e artigos daqueles que apoiaram (e ainda mantêm o apoio a) o golpe parlamentarista.
Qual é o problema de não aparecer o contraditório, sufocando vozes oposicionistas e discordantes tanto do ajuste fiscal quanto da reforma da Previdência Social? Os tomadores das decisões, seja do Poder Executivo golpeado, seja do Poder Legislativo não eleito para aprovar este programa de governo, que foi derrotado em 2014, erram ao não analisar todas as consequências políticas e socioeconômicas de seus atos unilaterais!
Retirando o poder dos eleitores escolherem o programa governamental, a própria democracia eleitoral é sequestrada por vinte anos. A maioria circunstancial do Congresso aprovou um artigo constitucional que, praticamente, impede o Estado brasileiro de ter uma atuação anticíclica contra a grande depressão econômica.
Vieses cognitivos são as tendências de pensar de certas maneiras — aprendidas na “escola-da-vida” — que podem levar a desvios sistemáticos de lógica e decisões irracionais. São estudadas em Psicologia Econômica ou Economia Comportamental.
Classificadas como vieses heurísticos, constituem regras de processamento de informações ou “atalhos mentais” que o cérebro usa para tomar decisões ou fazer julgamentos. O viés confirmatório, também chamado de auto validação ilusória, é a tendência humana de se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais.
Trata-se da adoção de postura oposta à da Ciência. Hipóteses são consideradas científicas se e somente se suas previsões, em princípio, são empiricamente falsificáveis. Em outras palavras, é necessária uma grande quantidade de testes para que se possa refutar uma teoria. Por isso, o debate científico plural representa o confronto de hipóteses distintas e caminhos alternativos para a escolha mais racional.
As pessoas demonstram esse viés cognitivo, que leva ao autoengano, quando reúnem ou se lembram de informações de forma seletiva, ou quando as interpretam de forma tendenciosa. Tal efeito é mais forte em questões de forte carga emocional e em crenças econômicas, ideológicas e religiosas profundamente arraigadas, como as que estamos vivenciando na sociedade brasileira. A coesão social foi perdida com os discursos de ódio de parte a parte. A intolerância mútua predomina neste momento de crise profunda.
As pessoas, no caso, tendem a interpretar evidências ambíguas de forma a sustentar suas posições preexistentes. Tanto a pesquisa, a interpretação e a memória, todas tendenciosas, explicam a polarização de atitudes. As divergências se tornam mais extremas ainda que as diferentes partes sejam expostas à mesma evidência. As crenças arraigadas persistem mesmo após suas evidências serem demonstradas falsas.
O debate interditado na imprensa brasileira prima pelo efeito irracional de primariedade: os colunistas apelam à argumentação simplória, como se fosse da maior confiança qualquer informação encontrada antes de outras obtidas em um raciocínio mais complexo. Abusam da correlação ilusória, quando falsas associações entre dois eventos ou situações são identificadas como tendo uma função causal.
Por exemplo, cito alguns argumentos de economistas neoliberais midiáticos que aparecem frequentemente na imprensa. Primeiro, o atual populismo demagógico de direita: “em sociedades democráticas muito desiguais, o eleitor mediano não favorece políticas que priorizam o crescimento, mas, sim, políticas que priorizem a equidade. (…). Explica (…) por que após a estabilização o gasto público e a carga tributária cresceram sem limite. Também explica por que somos uma sociedade de juros reais elevados e baixa poupança”. Partindo de uma premissa que é meia-verdade, já que o eleitor mediano prioriza, sim, obter ocupação e renda real, deduz dessa suposta causa um efeito que não é verdadeiro: “o combate à desigualdade levaria aos juros reais elevados e baixa poupança”.
Pelo contrário, na verdade, os juros reais agravam a desigualdade social, concentrando ainda mais a riqueza financeira. Como evidência, a ANBIMA informa que os 110.351 clientes do Private Banking nos três primeiros trimestres deste ano tiveram crescimento de 14,57% no saldo de seus ativos financeiros sob administração, o que significa que o saldo médio per capita se elevou R$ 914.106,50 em nove meses. Considerando o varejo de baixa e alta renda, além desses clientes Private, no primeiro semestre de 2016, o saldo dos Fundos e Títulos e Valores Mobiliários das Pessoas Físicas se elevou em R$ 110 bilhões. Ora, a “poupança financeira” (ou funding para financiamentos) continua sendo capitalizada. Ela se multiplicaria muito mais caso empréstimos estivessem sendo concedidos para alavancar o crescimento da renda.
O problema teórico é que economistas neoclássicos adotam uma concepção pré-keynesiana de poupança. Chamam de “poupança forçada”, devido à queda inflacionária dos salários reais, quando bancos financiam os investimentos e expandem a demanda agregada além de uma dada oferta agregada, até que ocorra o crescimento desta capacidade produtiva. Sem pensar de maneira dinâmica, pregam a restrição do investimento à poupança preexistente. Abominam o crédito! Não à toa a relação crédito/PIB caiu durante todo o governo FHC e já voltou a cair com a volta da Velha Matriz Neoliberal…
Os economistas da FGV e/ou Insper, “entidades sem fins lucrativos” (assim como os templos de outros sábios-pregadores), que cobram mensalidades (“dízimos”) de cerca de quatro mil reais e não pagam impostos, além de viverem de encomendas do setor público brasileiro, podem dizer, levianamente, sem ninguém para contradizer na mídia brasileira: “Parece que a chiadeira do setor contra a PEC já é ação do fortíssimo grupo de pressão dos professores das universidades federais, cujo orçamento poderá́ ser afetado (e é saudável que assim seja) pela PEC”.
Ora, o atual “chapa-branca” diz: “penso que a existência de uma restrição fiscal dura irá enfraquecer os grupos de pressão e fortalecer o eleitor mediano”. Por que ele não refuta seu viés de auto validação ilusória, isto é, a tendência a preferir informações que confirmem suas crenças ou hipóteses, independentemente de serem ou não verdadeiras? Será porque não consegue ver sua atuação midiática como a típica de um representante de outro grupo de pressão, o da casta dos mercadores-financistas do ensino privado, que se beneficiará das atuais “medidas impopulares”?
A PEC-55/241, entre outros malfeitos, com o desestímulo à carreira docente e o sucateamento das Universidades públicas jogará uma “clientela potencial” para a exploração desse ensino mercantilizado. De forma análoga, o corte de benefícios da Previdência Social entregará uma “clientela potencial” para a Previdência Privada Complementar. Todos ficarão prisioneiros da “rentseeking” [caça à renda] em ativos financeiros, como apreciam os economistas neoliberais, para o gozo de seu grupo de pressão.
(Fonte: Brasil Debate - AQUI).
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007)

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