Em 'Lua de Fel' a contagem regressiva de fim de ano é uma bomba-relógio
Por Wilson Ferreira
A contagem regressiva para o Ano Novo sempre foi a principal instituição do réveillon. Na rápida contagem regressiva de dez segundos é como se repassássemos nossas resoluções para o próximo ano, transformando mente e alma em uma página em branco novinha em folha.
O pensador Jean Baudrillard via com desconfiança essa contagem regressiva, fazendo uma analogia com a contagem regressiva de uma bomba prestes a explodir – a liquidação de todo e qualquer futuro em uma contagem regressiva, o futuro transformado em bomba relógio - Baudrillard chamava de "necrospectiva" -clique aqui.
Por trás da comemoração de uma efeméride sobre a obsolescência e fim de validade de um período do tempo está a percepção pessimista de que tudo tem um fim. O tempo faz qualquer coisa caminhar para a entropia, esgotamento e, finalmente, a morte.
Roman Polanski parecia ter em mente alguma coisa nesse sentido ao escrever e dirigir o filme Lua de Fel (Bitter Moon, 1992) quando o protagonista Oscar (Peter Coyote) sentencia de maneira sombria, poucas horas antes da festa de réveillon em um cruzeiro: “Os casais deviam se separar no auge da paixão, e não esperar o inevitável declínio”.
Polanski aproxima essa percepção esmagadora do tempo (como uma inexorável flecha que aponta sempre para o futuro) com o tema do amor, da vida conjugal e do matrimônio. Assim como sabemos que todo ano irá terminar, também sabemos que algo bom nunca dura para sempre. As coisas boas nunca duram, e nada temos a fazer a não ser lamentar e lutificar.
E se tentarmos agarrar com as mãos para evitar que esses bons momentos se dissolvam como “lágrimas na chuva” (como lamentava o replicante Roy em Blade Runner), o amor pode se converter em algo amargo e perverso.
O amor pode se transformar em algo que nos faz em pedaços, como cantava Ian Curtis na clássica música da banda pós-punk Joy Division: “Love Will Tear Us Apart”.
O pior filme de Polanski?
Lua de Fel é um filme que não goza da mesma reputação das obras primas do diretor, como O Bebê de Rosemary ou Repulsa ao Sexo. As críticas negativas, a maioria, falam de “embaraço” de Polanski – demasiado artificial, exagerado, overacting, extremamente misantrópico. O filme seria o retrato de um casamento “condenado a alta pornografia e baixa arte”. (Nota deste blog: Não incluir 'O Pianista' entre as obras primas de Polanski - aqui - é um senhor equívoco).
E o que é pior: Polanski lançava na época sua própria esposa, Emanuelle Seigner, no papel central como uma sedutora voraz com tendência a viúva negra cuja diversão é destruir os homens através da sua sexualidade. Sua performance foi criticada como o trabalho de uma atriz que só conseguiu o papel por ser esposa do diretor.
Mas parece que os críticos passaram batidos por uma sutil autoconsciência da narrativa: o protagonista Oscar é um escritor fracassado que jamais publicou um livro se quer. Por isso, a narrativa em flashback que faz da vida conjugal com Mimi (Seigner) é de pouca imaginação. Por isso, repleta de clichês e overacting: frases como “inseparáveis durante o dia e insaciáveis à noite” e o acúmulo de clichês pornográficos como, por exemplo, o café da manhã com o leite espalhado pelos seios de Mimi explicitam isso.
Polanski parece querer brincar com esses clichês e mostrar o porquê de Oscar ter se tornado um escritor fracassado – na verdade não passava de um playboy rico que queria viver os clichês literários de Paris fingindo ser intelectual e escritor apenas para seduzir mulheres.
O Filme
Nigel (Hugh Grant) e Fiona (Kristin Scott Thomas) fazem um cruzeiro marítimo até a Índia para tentar renovar os seus sete anos de casamento. Em primeiro lugar, conhecem um amigável indiano viúvo com sua filha que recomenda ao casal ter filhos para equilibrar o casamento – primeiro tema polanskiano: o ajuste de um casal sempre está alinhado com a ausência total de sexo.
Mas não demora muito para o casal ser introduzido à sexualidade transgressiva. São apresentados ao casal Oscar e Mimi, obviamente presos a algum tipo de ódio mútuo – ele um escritor preso a uma cadeira de rodas, cínico e autodepreciativo; ela, uma mulher voluptuosa que sugere a possibilidade de traição a Nigel em todas as oportunidades.
Oscar convida o jovem e fleumático britânico Nigel a sua cabine para revelar-lhe sua história longa e sinuosa de como a paixão o destruiu entre impulsos doentios, obsessão sexual, encontros amorosos até um ficar cansado do outro e entrarem num ciclo infernal de traição, abusos e tortura.
De início Nigel sente repulsa àquela história que Oscar começa a contar, mas sente um incontrolável impulso de olhar para o abismo e mandar Fiona e o casamento às favas em troca de uma noite com a sedutora Mimi – ouvir a história até o fim é a condição imposta por Oscar para que a traição receba suas bênçãos.
Se para Oscar a narração da sua tragédia (o primeiro flerte, a sedução, sexo compulsivo, ódio, traição e crime até ficar entrevado em cadeira de rodas sob os cuidados da vingativa Mimi) é uma forma de expiar o ódio de si mesmo, para Nigel é tudo aquilo que os sete anos de vida conjugal nunca tiveram no que se tornou a “tumba matrimonial” do casamento.
E para alimentar ainda mais a obsessão de Nigel, Fiona é uma mulher fria, distante, um pouco seca que parece que oferecerá pouca resistência à voluptuosa Mimi. Mas Fiona alerta Nigel: “o que você fará, eu posso fazer melhor!”. Sugerindo a lendária crueldade e frieza femininas das mulheres quando sentem-se traídas.
A tibieza espiritual: niilismo e hedonismo
Ao longo da narrativa episódica de Oscar nas horas que antecedem à festa do réveillon, fica também evidente o segundo tema polanskiano: a decadência dos corpos humanos como um reflexo da tibieza espiritual.
Aos pouco percebemos, nos flashbacks das desventuras de Oscar, como o niilismo e o hedonismo (as verdadeiras doenças espirituais modernas) começam a impregná-lo. Do desinteresse sexual por Mimi até chegar ao acidente e a prisão do corpo na cadeira de rodas.
Esse segundo tema dileto de Polanski conecta-se a essa interessante aproximação que o diretor faz do bizarro triângulo amoroso com a contagem regressiva de final de ano.
Na crise final entre Mimi e Oscar, ela lamenta: “Quando algo é bom, não queremos que dure para sempre?”. “Claro, mas as coisas boas nunca duram”, reponde melancolicamente Oscar.
Oscar sente-se incapaz de escrever um livro ou de ter filhos – submete Mimi a um doloroso aborto que a deixa infértil. Para ele, nada de bom dura nesse mundo.
Por isso, devemos nos apegar aos momentos fugidios de prazer como se não houvesse amanhã. Estamos no terreno psíquico da doença espiritual contemporânea: o minimalismo do hedonismo e niilismo – a percepção do tempo como uma contagem regressiva tão acelerada que o futuro só poderá ser uma bomba que explodirá.
Niilismo (do latim “nihil”, “nada”) como o ceticismo radical frente ao futuro, e o hedonismo (do grego “hedonê”, “prazer”, “vontade”) já tiveram sua época heroica como crítica consistente a sistemas opressivos que nos aprisionavam ao presente, negando-nos o futuro.
A filosofia hedonista do Carpe Diem (“aproveite o dia”), imortalizada na figura contestadora do professor Keating (Robin Williams) no filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), e no lema niilista anarco-punk “No Future”, teve sua época libertária.
Porém, hoje tornou-se uma doença espiritual de imobilização do espírito frente à seta do Tempo. Sem fé ou esperanças em transformações futuras, substituímos o desejável pelo possível: o apego aos momentos que não duram.
Se não duram, devem ser experimentados de maneira tão intensa que podem perigosamente se aproximar da morte, da overdose à perversão sexual. Esse parece ser o tema que persegue a carreira do diretor Roman Polanski.
Ficha técnica:
Título: Lua de Fel (Bitter Moon)
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Direção: Roman Polanski
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Roteiro: Roman Polanski baseado em novela de Pascal Bruckner
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Elenco: Peter Coyote, Emanuelle Seigner, Hugh Grant, Kristin Scott Thomas
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Produção: Canal +, RP Productions, Les Films Alain Sarde
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Distribuição: Fine Line Features
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Ano: 1992
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País: França, Reino Unido, EUA
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