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"Creio que o momento exige que olhemos para nós e que estudemos os nossos intérpretes. Os temas do homem cordial, do bacharelismo, do culto à personalidade, da exploração, do racismo, das várias formas de preconceito, do patrimonialismo, não necessariamente nessa ordem, são sérios demais."
Raízes do Brasil e o eterno problema do homem cordial
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Precisamos ler e estudar os brasileiros. Raízes do Brasil é um excelente ponto de partida. O livro conta 84 anos. A primeira edição é de 1936. Dá início à Coleção Documentos Brasileiros, da Editora José Olympio. Gilberto Freyre dirigia a coleção. De algum modo, é um livro de juventude. Sérgio Buarque tinha 34 anos à época dessa primeira publicação. Havia morado na Alemanha, como correspondente de um jornal de Assis Chateaubriand. O crítico Antonio Candido conta em uma entrevista, que foram vizinhos, ainda que não tivessem conversado em Berlim. O pai de Antonio Candido era médico e fazia estudos de aperfeiçoamento na capital da Alemanha. Há muita influência de Max Weber na construção de Raízes do Brasil. A própria concepção de “homem cordial”, frequentemente mal-entendida e recorrentemente mal citada, poderia, em princípio, e metodologicamente, explicitar um “tipo ideal” na acepção weberiana. Já volto nesse tema.
Há uma segunda edição, de 1948, substancialmente alterada. Ao ensejo dos 80 anos da publicação do livro, a Companhia das Letras publicou uma exuberante edição crítica, comparando todos os textos, de todas as edições, comentando-os, de modo definitivo. É o que a crítica literária apontaria como uma “crítica genética”, isto é, um esforço arqueológico para desvendar um texto. Essa edição é sonho de colecionador. À edição de 1948 sobreveio uma edição de 1956, com revisão do famoso primeiro parágrafo, que nos matiza como “uns desterrados em nossa terra”. Segue a edição de 1963, publicada pela Universidade de Brasília. A edição de 1969 conta com importante prefácio de Antonio Candido, que é o núcleo da fortuna crítica desse livro importantíssimo.
Raízes do Brasil é dividido em sete capítulos, suficientemente densos para serem qualificados como sete ensaios. O mais importante e o mais citado de todos é o capítulo 5, denominado de “O homem cordial”. Essa concepção seria, ao mesmo tempo, a surpresa e o anátema do livro. Especialmente para a propaganda do Estado Novo (ditadura de Vargas) interessaria o conceito, na medida em que, lido superficialmente, sugeriria a bondade natural de nosso povo, que somos (sic) avessos à guerra, à violência e à exploração do outro. Somos (sic) amistosos, francos e benfazejos. Será?
Foi essa a leitura feita por Cassiano Ricardo (1894-1974), o porta-voz do modernismo nacionalista. Em carta dirigida a Sergio Buarque, Cassiano enfatizou que não havia dúvidas de que elaborávamos uma civilização de fundo mais emotivo que a dos outros povos. Afirmava que “detestamos a violência porque o nosso estilo de vida é o da mansidão social”, que “o brasileiro é menos cruel do que outros povos”. Se correto Cassiano Ricardo, Sergio Buarque ficaria próximo de Gilberto Freyre, no contexto de uma suposta dulcificação de nossa maior mazela histórica.
Sergio Buarque reagiu, e em carta a Cassiano Ricardo, desfazendo qualquer mal-entendido, registrando que não acreditava em uma bondade fundamental dos brasileiros. O conceito, em verdade, não era do autor de Raízes do Brasil. É de Rui Ribeiro Couto, cujo pequeno excerto que trata do assunto foi publicado pela Companhia das Letras nas edições comemorativas dos 70 e dos 80 anos desse famoso livro. Homem cordial significa que pensamos com o coração. E pensamentos cordiais, nesse sentido, são bons, mas são também ruins. Amor e ódio, nessa lógica, coabitam um mesmo espaço imaginário.
Eu sei que os tempos eram outros. Mas há um mínimo civilizatório que não se pode desprezar. Onde essa bondade natural que Cassiano Ricardo enfatizou? Em meus olhos, versão digitalizada do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, disponíveis pela Biblioteca Nacional. Assustemo-nos. “Vende-se uma linda e vistosa negrinha de 14 anos, sem moléstia de qualidade alguma” (3 de janeiro de 1870). “Vende-se um lindo moleque de 14 anos, copeiro e muito sadio” (4 de janeiro de 1870). “Aluga-se um moleque de 11 anos” (21 de setembro de 1872). “Vendem-se duas negrinhas, de 14 a 15 anos” (12 de maio de 1873). “Aluga-se uma pardinha de 15 anos, para portas a dentro, e uma negrinha de 9 anos, muito esperta, para andar com crianças” (29 de janeiro de 1874). “Vende-se um lindo moleque de 10 anos, muito vivo e inteligente” (18 de janeiro de 1870). “Vende-se uma bonita crioulinha de 8 anos de idade, própria para presente” (5 de janeiro de 1870). Chega. Chega. Chega.
Raízes do Brasil também sugere uma leitura no contexto da história do direito e de nossos arranjos institucionais. Refiro-me ao capítulo 6, Novos Tempos, que trata, entre outros, do sentido do bacharelismo. É uma leitura que deve ser complementada com clássicos de Alberto Venancio Filho (Das Arcadas ao Bacharelismo) e de Sérgio Adorno (Os Aprendizes do Poder). O bacharelismo é também uma dissociação entre trajetória acadêmica e exercício profissional. Segundo Sérgio Buarque, “as nossas academias diplomam todos os anos centenas de novos bacharéis, que só excepcionalmente farão uso, na vida prática, dos ensinamentos recebidos durante o curso”. Há bacharéis para tudo quanto é lado. Uma cultura superficial, cheia de achismos e de opiniões, que os meios contemporâneos de transmissão de informações potencializaram: todo mundo é médico, economista, advogado, historiador, sociólogo e vidente.
O primeiro capítulo, Fronteiras da Europa, parece-me, é o mais atual. O autor explora a implantação da cultura europeia em ambiente diverso. Essa transposição desenha uma recorrente crise de identidade, justificativa da asserção de que “somos desterrados em nossa terra”. Nossa realização se daria como desdobramento de um contexto forjado em outro clima e em outra paisagem. Entre nós vicejou uma cultura da personalidade, que é da tradição ibérica. Quanto menos uma pessoa precisa de seus semelhantes, maior o seu valor. Cada um de nós é filho de nós mesmos, uma herança estoica, que Sergio Buarque de Holanda radica em Sêneca e na filosofia nacional espanhola.
Nesse campo, nosso traço mais marcante seria a falta de coesão na vida social. Para o autor de Raízes do Brasil as leis não se destinam a unir, mas a frear paixões momentâneas. Todo o modelo normativo (na tradição das Ordenações) são “criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo, e contrárias a ele”. Criamos um modelo hierárquico, que depende da anarquia, como ponto de justificação e de garantia de prestígio. Paradoxo. Pior. A solidariedade é gremial e somente se dá entre amigos.
Há influência weberiana no texto. Sergio Buarque sustenta que portugueses e espanhóis não conseguiram se organizar espontaneamente, o que típico do mundo protestante. A política seria sempre uma força exterior, que não dependeria de nossa vontade. Somos conduzidos. Nossa tradição evidenciaria uma repulsa à moral fundada no trabalho. Em Raízes do Brasil percebe-se que nunca houve na gente hispânica (nós) o apreço ao trabalho e à atividade voluntária. Para Sérgio Buarque, assim, o ócio importaria mais do que o negócio.
Creio que o momento exige que olhemos para nós e que estudemos os nossos intérpretes. Os temas do homem cordial, do bacharelismo, do culto à personalidade, da exploração, do racismo, das várias formas de preconceito, do patrimonialismo, não necessariamente nessa ordem, são sérios demais. Copiando passagem de Antonio Candido, em coluna que inaugurava na Folha da Manhã, em 7 de janeiro de 1943, que li há dez anos, e que copiei num caderninho amarelo, “Se nem sempre é possível dizer tudo aquilo que se pensa, é sempre possível dizer o que se pensa”. Nessa memorável passagem está contido um programa de ação. Precisamos ler e estudar os brasileiros. - (Aqui).
(Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, doutor pela PUC-SP, é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP).
(Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, doutor pela PUC-SP, é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP).
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