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"No julgamento de Londres, se está transformando a política internacional em direito internacional. Isso cria uma incerteza jurídica precedente e futura, cujas consequências não são previsíveis."
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A Venezuela é a campeã mundial em reservas - confirmadas - de petróleo. São trezentos bilhões de barris de óleo (de excelente qualidade) e isso em parte explicaria a situação política reinante naquele país. Outra parte residiria na questão geopolítica, visto que a América Latina é palco da 'guerra surda' entre Estados Unidos, Rússia e China. Ao que consta, o governo americano não abre mão de que suas corporações se assenhorem do óleo (os EUA já chegaram a importar da Venezuela 20% do que consomem; hoje não temos ciência). Daí o boicote sem trégua ao país de Maduro, que teria se tornado refém da Rússia. Daí Guaidó, daí as constantes ameaças de invasão (com 'tropas' a postos na fronteira da Colômbia), daí o sufoco econômico e sanitário, agora agravado pelo coronavírus. Daí o 'déficit democrático' venezuelano, como registra a autora do artigo abaixo.
Por Gabriela Kuenhle
O direito nacional e internacional não conta mais. O atual espetáculo jurídico perante a Corte de Comércio de Londres sobre as reservas de 30 toneladas de barras de ouro venezuelanas armazenadas na Grã-Bretanha leva a essa conclusão. Surpreendentemente, com uma velocidade que ninguém imaginava, o tribunal liderado pelo juiz Nigel Teare decidiu reconhecer apenas Juan Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela. Um ato moderno de pirataria.
Em 22 de junho, o julgamento dos bens da Venezuela bloqueados na Inglaterra teve início em Londres. Estão em jogo cerca de 1,3 bilhão de dólares em propriedades do Estado venezuelano. Por décadas, até os governos pré-chavistas usaram essas barras de ouro nos cofres subterrâneos do Banco de Londres para transações financeiras internacionais. Hoje, o Bank of London se recusa a cumprir sua obrigação de devolvê-las sob um contrato internacional atual.
Dada a dramática situação econômica da Venezuela, aprofundada e levada à asfixia econômica pelas sanções dos Estados Unidos, o governo Nicolás Maduro as tentou recuperar há um ano, sem sucesso. Consequentemente, o Banco Central da Venezuela (BCV) processou o Banco da Inglaterra (BoE, por sua sigla em inglês) em 14 de maio deste ano, por quebra de contrato.
O juiz Nigel Teare abriu o processo nesta semana. Ele aceitou antecipadamente uma estratégia de litígio que exigia, como primeiro passo, esclarecer quem era o presidente legítimo da Venezuela “reconhecido” como tal pelo governo britânico(!): O presidente Nicolás Maduro ou o líder da oposição, o autoproclamado “presidente interino” Juan Guaidó.
Pode a Grã-Bretanha decidir sobre uma questão de soberania da Venezuela?
O juiz Teare introduziu uma estrutura política no processo legal que cria um precedente perigoso. Como se fosse um direito de uma potência estrangeira (no caso, a Grã-Bretanha) decidir sobre uma questão que afeta a soberania de uma nação, evitando a consulta da vontade de sua população.
No dia do primeiro julgamento, o advogado de Guaidó, Andrew Fulton, argumentou que a Grã-Bretanha havia reconhecido Guaidó “legal e politicamente” como presidente da Venezuela. Ele citou uma declaração do chanceler britânico Jeremy Hunt, de 4 de fevereiro de 2019, como evidência “conclusiva”. A declaração pública da época dizia: “o Reino Unido agora reconhece Juan Guaidó como presidente constitucional provisório da Venezuela até que eleições presidenciais credíveis possam ser realizadas”. Então Guaidó teria curso legal como presidente da Venezuela, embora essa seja mais uma notícia falsa.
Relações diplomáticas válidas com o governo venezuelano
O advogado Nick Vineall, representante dos interesses do Conselho Executivo do Banco Central da Venezuela (BCV), argumentou na direção oposta: o governo britânico reconheceu o governo de Nicolás Maduro devido às realidades diplomáticas. Ele sustentou que "ambas as partes sempre mantiveram relações diplomáticas plenas, normais e recíprocas”. Ambos os governos operam embaixadas no outro país.
Ao mesmo tempo, Vineall, que insistia na importância do status diplomático, enfatizou: “a declaração do ministro Jeremy Hunt sobre Juan Guaidó é ambígua e não abrangente”. Embora expressasse apoio político, não implicava o reconhecimento de Guaidó em todos os aspectos como chefe do estado venezuelano ou chefe de seu governo. Ele alertou: “se Londres concedesse a Guaidó direitos governamentais abrangentes, seria uma violação do direito internacional”.
O advogado também lembrou que o governo britânico se recusou a fornecer um certificado para o julgamento atual, que reconheceria Guaidó de forma inequívoca. Tudo isso mostra como é ambígua a declaração do chanceler Hunt.
O debate traz à tona as contradições e limites nessas construções políticas e jurídicas. Por um lado, 50 governos reconheceram Guaidó no início de sua carreira como “presidente interino” da Venezuela, enquanto outros 150 estados membros da ONU não o reconheceram. Por outro lado, todos eles, inclusive os que reconheceram Guaidó, mantiveram suas relações diplomáticas oficiais com o governo de Nicolás Maduro. Resta saber se os mesmos governos estariam dispostos a dar a Guaidó o mesmo crédito por suas ações neste ano e meio.
Os antecedentes da disputa sobre a verdadeira presidência
Mas qual é o pano de fundo da disputa sobre a verdadeira presidência da Venezuela? Como isso se relaciona com o ouro depositado em Londres?
De acordo com a lei venezuelana, os membros do conselho executivo do Banco Central (BCV) são nomeados pelo presidente do país. Porém, há alguns meses atrás, nasceu uma disputa nesse sentido. Guaidó fundou uma entidade que supostamente “administra o Banco Central "do exílio”, nos Estados Unidos. Esse grupo agora reivindica controle sobre o banco e suas transações, como se fosse uma instituição paralela, com legalidade paralela.
A medida permite ao governo dos Estados Unidos e seus aliados dar a aparência de uma estrutura legal para desapropriações e bloqueios das finanças venezuelanas no exterior. Eles querem que o grupo de Guaidó represente uma alternativa legalmente legítima ao atual conselho de administração do Banco Central venezuelano, sugerindo que ele teria o direito de receber os enormes bens do povo venezuelano. O Tribunal Comercial Internacional de Londres também se baseia nessa hipótese.
Seguindo o roteiro, esse processo legal abre a possibilidade de mudar o corpo diretivo do Banco Central, tentando cortar suas raízes e questionando a legitimidade do próprio presidente do país.
Decisão sobre dois grupos de diretoria do Banco Central da Venezuela
Agora, o tribunal decidirá qual dos dois grupos no conselho do Banco Central da Venezuela tem direito ao cargo e, portanto, é considerado o parceiro contratual legítimo do Banco da Inglaterra. Segundo o tribunal, era necessário esclarecer de antemão qual das duas figuras presidenciais tinha o direito de nomear uma diretoria bancária. A resposta dependeria do reconhecimento pelo governo britânico. Será o mundo de cabeça para baixo?
O conselho executivo do Banco Central mostrou responsabilidade humanitária, alocando seus ativos no exterior a um fundo ligado à ONU (Organização das Nações Unidas) para fins humanitários na Venezuela. Dada a situação imediata de emergência de seus compatriotas, agravada pela epidemia do coronavírus, Juan Guaidó deve, pelo menos, suspender temporariamente a disputa legal e apoiar a ação da ONU na Venezuela, concordando em financiá-lo com fundos venezuelanos no exterior. Não surpreende, portanto, que hoje Guaidó tenha tão poucos seguidores na Venezuela.
Jurisdição limitada do tribunal britânico?
Além disso, deve ser esclarecido se o Tribunal Comercial Britânico tem competência legal para reconhecer a nomeação de executivos bancários não oficiais por parte de Guaidó, que não respeita a lei venezuelana. O Supremo Tribunal da Venezuela já declarou os fatos nulos. O tribunal de Londres ignorará a decisão de Caracas? Com quais argumentos?
Guaidó não atende critérios de um presidente interino
Guaidó não tem legitimidade na Venezuela. Ele definitivamente não atende aos critérios estabelecidos na constituição venezuelana para ser um presidente interino. Também não possui esses critérios de acordo com o direito internacional. Por exemplo, deveria ter convocado novas eleições o mais tardar três meses após a sua autoproclamação. O tribunal inglês pode ignorar as normas constitucionais venezuelanas?
Evitando o problema, o advogado Fulton, defensor de Guaidó, alegou no julgamento que o tribunal não poderia julgar se Guaidó tem autoridade sobre o estado da Venezuela e suas instituições, uma vez que excede a jurisdição de um tribunal britânico. Ele só poderia decidir se o governo britânico o reconheceu. Consequentemente, as decisões de Guaidó devem ser “aceitas sem questionar”, como “atos soberanos de um estado estrangeiro”.
O advogado Vineall assumiu a posição oposta: pediu ao juiz que levasse em conta a decisão de Caracas. Porque “o assunto da disputa é o ouro armazenado na área de jurisdição britânica”.
As decisões do juiz Teare não devem esperar até agosto ou setembro, um valioso desperdício de tempo para a população venezuelana, que aguarda os fundos da ONU, e que eles sejam transformados em medicamentos e alimentos.
Guaidó está relacionado a crimes graves
No entanto, todos os esforços legais e políticos para impor esse jovem como chefe de estado venezuelano colidem com sua questionada idoneidade.
Ele não foi capaz de se qualificar para essa acusação, pelo menos até que os tribunais resolvam os crimes graves pelos quais é acusado. Isso inclui corrupção na administração de fundos de origem incerta, destinados a desertores militares venezuelanos envolvidos na tentativa de golpe armado na Venezuela em 2019.
Também inclui contatos documentados com a máfia colombiana e o narcotráfico do mesmo país, além de sua assinatura em um contrato de dois milhões de dólares com a empresa mercenária norte-americana Silvercorp, para realizar os ataques terroristas e assassinatos por contrato na Venezuela, também totalmente documentados.
A Interpol também deve estar interessada. Desde quando estes são crimes justificáveis em todo o mundo? Essa pessoa é adequada como garantidora da administração limpa dos recursos milionários do Estado venezuelano? O governo do Reino Unido e o judiciário podem se dar ao luxo de ignorar esses casos?
Transformar a política internacional em direito internacional
No julgamento de Londres, se está transformando a política internacional em direito internacional. Isso cria uma incerteza jurídica precedente e futura, cujas consequências não são previsíveis. No futuro, tratados entre estados e acordos internacionais poderão ser minados retrospectivamente, ou mesmo cancelados inteiramente por governos paralelos deste tipo, com instituições-sombra e supostos funcionários nomeados fora das normas legais. Basta o veredito de um juiz para garantir a chancela com a palavra mágica: “justiça”. Será que querem combater o déficit democrático na Venezuela com um déficit democrático na Europa? - (Fonte: Carta Maior - Aqui).
(Gabriela Kuenhle: psicóloga, socióloga e jornalista de meios europeus e latino-americanos, escrevendo artigos sobre temas de direitos humanos, democracia e meio ambiente. Colaboradora do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica - CLAE)
sábado, 4 de julho de 2020
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