quarta-feira, 21 de agosto de 2024

QUESTÃO CINEMATOGRÁFICA - PERDOAR SEM ESQUECER - FILME EM FOCO: "O MENSAGEIRO"

 .
Um filme necessário, mas imperfeito.


Por Eduardo Escorel

A principal qualidade de O Mensageiro é ser perturbador. O filme de Lucia Murat nos impede de esquecer o passivo acumulado no Brasil de 1964 a 1985 que continua pendente – não foram julgados os militares e policiais mandantes e executores dos atos de tortura e assassinatos cometidos a serviço do governo durante a ditadura. Impunes, foram beneficiados por uma interpretação conveniente da Lei de Anistia, sancionada em 1979.

No prólogo de O Mensageiro é apresentado um monstruoso ato covarde de crueldade: no primeiro plano, dois pés descalços enquadrados em close sobem com dificuldade uma escada de cimento; alguém está dando pequenos saltos de degrau em degrau; a voz off em tom suave orienta quem tenta subir: “Mais um!”; o rosto de um rapaz que está olhando para baixo é encoberto pela cabeça encapuzada de quem está ao seu lado; o jovem insiste: “Mais um degrau!”; visto de cima, quem está se esforçando para subir apoia apenas o pé esquerdo e mantém a perna direita dobrada; o rapaz repete: “Mais um!”; ao saltar, a pessoa se estatela por não haver mais um degrau para subir; entreouve-se um sussurro: “Merda!”; vestindo farda verde, o jovem esboça um sorriso e ordena: “Levanta!” Ainda no chão, quem caiu se vira e, com a cabeça encoberta, pergunta: “Por que que você fez isso? Os outros precisam de informação. Você não precisa de porra nenhuma. Por que que você gosta de ver os outros fodidos? Qual é o problema? Merda!”; após ter apoiado a mão no umbral e dado um passo à frente, ao virar, o capuz de quem vinha subindo a escadaria é arrancado da cabeça, revelando o rosto intumescido de uma moça de cabelos curtos e olhar intenso; o rapaz de farda bate a porta de ferro da cela, passa o ferrolho e se afasta pelo corredor escuro; visto de frente, à luz do dia, ele sobe uma escadaria, segurando com a mão esquerda um cacetete que leva na cintura; acaba de subir diante de um canhão. É um dia de céu azul. Na parede em frente é possível ler Fortaleza de Santa Cruz da Barra 1612. Localizada em Niterói, na entrada da Baía de Guanabara, a Fortaleza serviu de prisão e local de tortura durante a ditadura de 1964. Ao passar por dois outros militares, o jovem presta continência, e um corte brusco conclui o 1’30” do prólogo. Em seguida, no fundo preto, surge o título – O Mensageiro.

Até esse momento, nem a moça, nem o carcereiro, foram nomeados. Só serão identificados adiante. Desse modo, o sentido da abertura do filme ganha dimensão maior. Sem se restringir apenas ao enredo específico de O Mensageiro, a sequência inicial revela o grau de perversidade que a maldade humana pode atingir, o que é explicitado pouco depois quando através de uma fresta na parede da cela a moça vê o corpo ensanguentado e já sem vida de um companheiro de militância sendo removido e ouve em off a pretensa explicação dirigida a ela por um oficial: “Seu amiguinho fugiu.”

O Mensageiro se passa quase todo em 1969, após o sequestro do embaixador americano ocorrido no início de setembro. O primeiro terço do filme é dedicado a apresentar Vera (Valentina Herszage) – a militante presa; Armando (Shico Menegat) – o recruta carcereiro; a mãe e o pai de Vera – Maria (Georgette Fadel) e Henrique (Floriano Peixoto), além dos coadjuvantes. É só no segundo terço que Armando, a pedido de Vera, passa a servir de mensageiro entre ela e seus pais, tornando-se protagonista do filme. Ele é o foco principal de O Mensageiro, conforme o título indica. Complexo, Armando é ingênuo, mal-informado e, ao mesmo tempo, cruel, grosseiro, brutal, machista e emocionalmente instável. Capaz de boas ações, pode ser amoroso e diz a Maria ser “só um soldado… Só faço a guarda dos prisioneiros… Nunca encostei na Vera… Eu não sou um torturador.” No final, afirma que deixará o quartel, vai voltar para o Sul e “descobrir outros caminhos por lá”.

O epílogo de O Mensageiro, por sua vez, exige grande acuidade do espectador para entender que há uma passagem de tempo pouco antes de o filme terminar, após o plano do mar batendo nas rochas sobre as quais está assentada a muralha de pedra da Fortaleza de Santa Cruz. No plano seguinte, ônibus coloridos que circulam hoje em dia cruzam de um lado para outro diante da câmera – algumas décadas se passaram. Na aula em que a própria Murat atua como professora, Hannah Arendt é citada. À primeira vista, a sequência corre o risco de parecer incluída deus ex machina, por mais interessante que seja o tema tratado – “Existem culpados?” – e a referência ao famoso trecho de A Condição Humana em que Arendt trata da irreversibilidade e o poder de perdoar.

O espectador, porém, mesmo dotado de percepção aguçada, terá uma epifania ao ouvir o início da pergunta de um aluno feita em voz off: “Professora Vera, com certeza você conhece a experiência da África do Sul…?” A menção ao nome da professora e uma alusão anterior ao fato de ela ter sido torturada, feita por outro aluno, seriam suficientes para revelar que ela e a jovem militante Vera são a mesma pessoa? De qualquer modo, o didatismo explícito da sequência soa fora de lugar e mais prejudica do que favorece o filme.

Paradoxal, por outro lado, é o fato de uma informação crucial para situar O Mensageiro estar escondida em forma de legenda após os créditos finais do elenco e equipe principal: “Enquanto na Argentina, 1125 torturadores foram condenados por crimes contra a humanidade, no Brasil, passados 38 anos do fim da ditadura, nenhum ditador nem torturador algum foi levado a julgamento.”  -  (Fonte: Revista Piauí).

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