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As mensagens indicam não ato(s) irregular(es) de Moraes, mas as distorções no desenho institucional das altas cortes
A Folha de S.Paulo publicou, na terça-feira (13), uma reportagem baseada em conversas de celular do ministro Alexandre de Moraes e de seus assessores no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O jornal descreve a troca de mensagens, concentradas principalmente entre os auxiliares, como uma “colaboração informal” entre os dois tribunais. É uma novidade que reforça o que já havia sido noticiado alguns meses atrás: estruturas do TSE, sobretudo a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, foram usadas para alimentar investigações penais em curso no Supremo que miram figuras de proa do bolsonarismo, como Eduardo Bolsonaro (PL-RJ), Carla Zambelli (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF).
A reportagem causou furor. Para os críticos de Moraes, aí estava mais uma prova de que o ministro abusou de seu poder, compartilhando de forma indevida informações entre os tribunais. A reação, me parece, foi exagerada.
É verdade que a comunicação num processo jurídico deve zelar por impessoalidade e formalidade, cuidados que faltaram aos assessores de Moraes. Um deles, Eduardo Tagliaferro, batia ponto no TSE; o outro, Airton Vieira, era juiz auxiliar no STF. As mensagens revelam que, em diálogos pelo WhatsApp, os dois cogitaram dissimular a origem de documentos. Vieira pediu a Tagliaferro, em dado momento, que trocasse o timbre de “Supremo Tribunal Federal” por “Tribunal Superior Eleitoral” num pedido de informação feito pelo STF. Se não o fizesse, ia ficar “uma coisa muito descarada”, explicou. Isso porque, formalmente, não faria sentido um assessor do TSE produzir um relatório de informações a pedido de um ministro do Supremo. Quem deveria pedir um relatório à assessoria do TSE era o presidente do TSE, Alexandre de Moraes.
Qual seria, portanto, o jeito correto de lidar com a situação? Mais ou menos assim: Moraes, vestindo o chapéu de ministro do STF, deveria enviar um ofício ao excelentíssimo presidente do TSE – ele próprio – informando-o sobre tais e quais postagens feitas por bolsonaristas. Em seguida, vestindo agora o chapéu do TSE, Moraes deveria ler o ofício e pedir à assessoria do tribunal que avaliasse o material recebido pelo excelentíssimo ministro do Supremo. A assessoria do tribunal eleitoral produziria, então, um relatório analisando se aquelas postagens configuravam fake news e contribuíam para deteriorar a democracia brasileira. Depois de trocar mais alguns ofícios com pronomes de tratamento pomposos, esses assessores deveriam, por fim, enviar o material ao STF, tendo como destinatário o ministro relator do inquérito das fake news: o mesmo Moraes.
Essa gincana causaria estranhamento até no mais dedicado dos burocratas brasilienses. Usar a estrutura do TSE para dar um falso lustro de provocação externa na investigação do Supremo é uma manobra questionável eticamente, mas não há indícios de que Moraes tenha cometido irregularidade. Bem ou mal, ele agiu dentro do que o desenho institucional das altas cortes permite. Além de o STF já ter requisitado, na época, o compartilhamento de informações com o TSE, o poder de decisão em ambos os tribunais estava nas mãos do ministro. As críticas feitas desde a publicação da reportagem da Folha miram, quase todas, o alvo errado. O problema está menos em Moraes e seus auxiliares, e mais na forma como algumas atribuições penais do Supremo se organizam.
Como regra, o processo penal no Brasil caminha de baixo para cima: começa no inquérito policial; depois vai para um juízo de primeiro grau; dali, pode ser enviado a tribunais de segunda instância e só depois, se necessário, para Brasília. A exceção à regra são os processos que, em vez de subir esses degraus, nascem direto no Supremo. O ministro relator, nesses casos, faz as vezes de delegado de polícia, porque cabe a ele conduzir a investigação. Depois, ainda protagoniza a ação penal, por conhecer muito bem os detalhes do caso. Foi assim com Joaquim Barbosa, que tocou, com empenho – e munido de todos os poderes legais e regimentais –, a investigação do Mensalão, primeira grande bomba que o Judiciário jogou no mundo da política na história recente.
Quanto mais baixa a instância, mais dispersas são as funções jurídicas, como bem recomenda a Constituição. Idealmente, deve-se separar não apenas a investigação e o julgamento, mas também as decisões do inquérito e a análise da ação penal. Cada uma dessas etapas é conduzida por um agente diferente. É isso que garante aos investigados e acusados alguns direitos fundamentais: o julgamento por um magistrado imparcial, o exercício pleno do direito de defesa e a liberdade para interpor recursos e pedidos de habeas corpus ao longo do processo.
Quando tudo se concentra no STF, parte desses direitos é severamente limitada (caso dos recursos e dos habeas corpus) e diferentes funções acabam juntas e misturadas na mesma figura. O ministro comanda o inquérito, decreta medidas cautelares (podendo determinar a prisão de investigados) e protagoniza o julgamento. Não espanta que surjam tantas acusações de parcialidade nos casos mais rumorosos (antes com Barbosa, agora com Moraes).
O episódio revelado pela Folha é sintomático desse problema. Moraes, não bastasse ser ministro do Supremo e relator do inquérito das fake news, presidia o TSE na época das mensagens (trocadas, segundo a reportagem, entre agosto de 2022 e maio de 2023). Vestindo o chapéu da jurisdição eleitoral, ele concentrou poderes amplos para agir de ofício – isto é, por conta própria, sem precisar ser provocado. Em tempos de atentados criminosos contra democracia, a matéria eleitoral frequentemente se confunde com aquela que ele tinha o dever de tratar como juiz penal, no STF.
Esse desenho institucional é problemático não apenas porque prejudica acusados e investigados, pondo em dúvida a imparcialidade do juiz, mas também porque joga lenha numa fogueira que a todo tempo chamusca o próprio tribunal e seus ministros. Em vez de se dedicar às grandes questões jurídicas, eles se veem obrigados a atuar no varejo criminal, expondo-se ao tomar decisões em inquéritos ainda em curso. Esse desgaste deveria ser assumido por juízes de instâncias inferiores, cujas decisões, quando polêmicas, são debatidas por algum tempo em outros tribunais antes de serem remetidas ao Supremo. ríticos de Alexandre de Moraes dizem – agora mais do que nunca – que muitas das investigações que ele conduz não deveriam estar no STF, porque não envolvem pessoas com foro privilegiado. Argumentam que o ministro concentra funções em excesso, faz as vezes de delegado, juiz e promotor; bate o escanteio e corre na área para cabecear. Não estão errados. Mas assim está posto, e o Supremo não dá sinais de que vá mudar. O regramento brasileiro não só coloca os mesmos ministros no STF e no TSE, decidindo nos dois tribunais simultaneamente, como ainda lhes dá o poder de conduzir inquéritos penais. Tudo junto.
Por um lado, a reportagem da Folha não deve produzir grandes consequências jurídicas, como a anulação de decisões já tomadas. Não se trata, como tentam fazer crer alguns bolsonaristas, de um caso com o potencial explosivo da Vaza Jato, que veio à tona em 2019. Como bem apontou o criminalista Davi Tangerino em uma postagem no X, estamos tratando da comunicação burocrática entre assessores de um mesmo magistrado, não de uma combinação entre julgador e acusador no curso de uma ação penal. Sergio Moro e os procuradores de Curitiba desrespeitaram a separação mais básica da Justiça ao confluir acusação e julgamento em um processo criminal. Moraes não chegou perto de cometer uma irregularidade dessa dimensão. Seu gabinete, em fase de investigação, apenas uniu duas pontas que já se confundiam na sua pessoa.
Por outro lado, há consequências políticas evidentes nesse episódio. A mistureba institucional joga contra o Supremo e engrossa o caldo de insatisfação com o tribunal. Em um ano eleitoral como este, o denuncismo contra Moraes pode animar a militância bolsonarista e pôr o STF na defensiva (a Folha promete novas reportagens nas próximas semanas). Não devemos esquecer que está em disputa, desde já, a eleição para presidente do Senado em fevereiro de 2025. Pleito importante para a base do ex-presidente, já que é nessa Casa que começam e terminam os processos de impeachment contra ministros da Corte.
A campanha anti-Supremo e anti-Moraes alimenta, além de tudo, a esperança de anistia com a qual tantos bolsonaristas sonham. Com o cerco da justiça se fechando, é isso que buscarão, cada vez mais. - (Fonte: Rev. Piauí).
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O tiro saiu pela culatra, a milhares de milhas daqui.
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