Por Beto Ruschel
De como um menino poeta não pousou na minha música
Morei de 65 a 69, na Cidade Vargas, um bairro da periferia de São Paulo.
Foi ali que fiquei “irmão” do Erondi, que fez dupla com a querida Jane Morais dos Três Morais.
Ele cantava “Ao ver passar no céu, pombinhas brancas…”e, pra nós, era o “Pombinha”.
Minha turma vivia pelas madrugadas tocando violão e cantando.
Seu irmão Getúlio e eu, no violão, o Chuvisco no pandeiro, o Pézinho no bongô e o Marcio “Branco”, no contra-baixo. Figuraça, sorriso eterno pendurado nos olhos azuis e o cabelo loiro desarrumado. O sapato feito sob medida no Spinelli arrastando o rabecão pelo barro dos terrenos baldios. Anos depois, o Branco teve uma música sua gravada pelo Tim Maia. Hoje tem uma Pousada simpática do lado de Campos do Jordão.
Daquele bando, dando inquestionável apoio moral, também fazia parte o Henrique Guilherme do futebol no rádio. Foi nesta época que me apaixonei pela Vera “Magra”, cuja família tinha certeza que eu nunca seria um bom partido pra ela. E tinha toda razão.
Numa madrugada, me despedi da turma, e subi sozinho pelas ruas desertas. Vinha meio “alegre”, sozinho, pensando na “Magra”, quando, na noite quieta entre os muros das casas modestas e o sono pesado dos operários madrugadores, ouvi um super violão. Pra encontrar a origem do som, desviei meu caminho.
Parei na frente de uma casa pequena enfiada no barranco e sentei na calçada. Fiquei ouvindo. E o violão parava, começava do mesmo lugar. O sujeito estava compondo, dava pra perceber. A cachacinha me deu coragem e cheguei mais perto… “poetas, namorados…” era só o que eu ouvia.
Fiquei tão seduzido, que não resisti e toquei a campainha.
Abriu a porta, um mulato de cara redonda e alegre. Com a gravata solta e a camisa volta ao mundo de mangas dobradas até o cotovelo, quando eu disse “Gostei do violão, posso entrar?” deu um sorriso e respondeu “Entre!”
Desci a escadinha e entrei pela porta.
Uma rede, uma esteira, um mesinha baixa, um bule com café frio e, pela salinha, numas almofadas no chão, uma moça bonita, uma magrinha de nariz adunco, um sujeito magro e cabeludão, e outro, mais magro que todos. Quase transparente, de tão branco.
Ele me sorriu delicado, e vi que tinha espinhas no rosto.
O mulato explicou que eu queria ouvir, sentou na rede e recomeçou o trabalho da composição.
Todos ouviam.
“Olha láVai passandoA procissãoSe arrastandoQue nem cobraPelo chão…
O violonista e compositor era o Gil. A moça bonita, a Gal, o cabeludo, o Caetano, e a magrinha de nariz de carcará, a Betânia. O menino transparente com espinhas, o Torquato Neto.
O Gil me fez tocar e eu, sem-vergonha, toquei. Fui até a cozinha fazer café com o Torquato.
Ficamos amigos.
Logo depois começamos a fazer músicas juntos.
Começamos umas quatro. Ele mudou pro Rio e combinamos de terminar todas. Eu brincava “Depois de tanto “sacrifício”, vou esquecer tudo!”, ele ria “Começamos outras! Sem sacrifícios!!”
Não lembro mais de nenhuma das melodias, com elas, quem sabe, lembrasse dos textos do Torquato…
Mas há uma razão pra isso.
Minha mãe morava na Rua Pamplona e era lá que a gente se encontrava pra trabalhar. Magro, doce, atento, ele chegava e, delicado, beijava minha mãe. E lá iam os dois pra cozinha do pequeno apartamento. Eu ficava na sala tocando.
De lá, eu ouvia as risadas. Eles falando do mundo, rindo do Sartre, dos colaboracionistas na guerra, riam até do Proust, dos militares e dos governos, falavam de tudo. Enfim, a Neli, minha “própria mãe” me roubava o Torquato.
Quando ele mudou pro Rio de Janeiro, me perguntava:
- Onde anda nosso querido Torquato? Diz pra ele que ainda tenho chá.
Quando ele morreu, não contei pra ela. Por muito tempo, prometi que ele iria aparecer, tinha mandado recados. Até que um dia, lendo algum jornal, a Neli ficou sabendo que o Torquato não viria mais.
E não me recriminou. Entendeu, eu antevia sua dor. Só disse.
- Fizestes bem, Agora ele está bem. Menino maravilhoso. Ele não era deste mundo de idiotas. Foi procurar o mundo dele. Mas tenho pena é de ti, meu filho. Perdestes a chance de ter um grande ser humano amigo e poeta enriquecendo, em muito, tua música. Sabes? O Torquato, nunca chegou aqui em casa. Ele sempre “pousou” por aqui.
Doce Torquato. Marcante, sofrido, mas dulcíssimo.................
(Texto publicado ontem, 21, no blog de Luis Nassif. Tão logo o li, ocorreu-me a ideia de sugerir ao Kenard Kruel que o inclua na segunda edição de 'Torquato Neto ou a Carne Seca é Servida'. Ato contínuo, inseri o seguinte comentário: "Caro Beto, vou reproduzir teu belo texto em meu blog domacedo.blogspot.com/ – onde, aliás, Torquato pontifica: ‘Torquato Neto ou a Carne Seca é Servida’, ‘Torquato Neto, o Verbo Desencantado’ (este a sair, ambos de meu compadre Kenard Kruel) e a Navilouca de Cioram e demais anjos tortos. Enquanto isso, fiquemos com o sorriso de Dona Neli e um Feliz Natal.")