sexta-feira, 5 de junho de 2020

POR QUE A REVOLUÇÃO AMERICANA NÃO VAI SER TELEVISIONADA

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Convém registrar que, ao menos nesta data, reina a euforia na cúpula americana, diante da divulgação da taxa de 'meros' 13,5% de desempregados, quando 100% dos analistas esperavam percentual próximo de 20%. Trump não se contém. O mercado está feliz? Ok. All right.
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Falta à insurreição, por enquanto puramente emocional, a estrutura política e um líder com credibilidade para articular as queixas


Por Pepe Escobar 

Incendiar e/ou saquear o Target ou o Macy's é uma digressão menor. Ninguém está atacando o Pentágono (nem sequer as lojas do Mall do Pentágono). Nem o FBI. Nem a Federal Reserve de Nova York. Nem o Departamento do Tesouro. Nem a CIA em Langley. Nem os prédios da Wall Street. 
Os verdadeiros saqueadores - a classe dominante - estão assistindo confortavelmente o show em suas gigantescas Bravias 4K, bebericando uísque single malt. 
Essa é muito mais uma guerra de classes que uma guerra racial, e assim deve ser analisada. No entanto, ela foi sequestrada desde o começo e apresentada como uma mera revolução colorida. 
A mídia empresarial dos Estados Unidos deixou cair como uma tonelada de tijolos - combinados de antemão? - sua ofegante cobertura do Planeta Lockdown para, ofegantemente e em massa, passar a cobrir a nova "revolução" americana. Distanciamento social não combina muito com o espírito revolucionário. 
Não há dúvida de que os Estados Unidos estão, neste momento, atolados em uma intrincada guerra civil, tão grave quanto a que ocorreu depois do assassinato do Dr. Martin Luther King, em Memphis, em abril de 1968. 
No entanto, uma dissonância cognitiva maciça é a norma em todo o espectro da "estratégia de tensão". Facções poderosas não economizam esforços para assumir o controle  da narrativa. Ninguém é capaz de identificar todas as complexidades e as inconsistências desse jogo de luz e sombra.
Agendas barra-pesada se misturam: uma tentativa de revolução colorida/mudança de regime (a lei do retorno é foda) interage com os Boogaloo Bois de extremíssima direita – que pode-se dizer que sejam aliados  táticos do Black Lives Matter – enquanto supremacistas brancos "aceleracionistas" tentam provocar uma guerra racial.
Citando os Temptations: é uma bola de confusão.

Os Antifa são criminalizados, mas os Boogaloo Bois têm passe livre (aqui o principal teórico do Antifa explica como ele defende suas ideias). Mais uma guerra tribal, mais uma - agora interna - revolução colorida sob o signo do dividir para governar, jogando os Antifa anti-fascistas contra os supremacistas brancos fascistas.
Enquanto isso, a infraestrutura política necessária para a decretação da lei marcial  evoluiu como um projeto bipartidário. 
Estamos imersos em um proverbial e total nevoeiro de guerra. Os que defendem que o Exército dos Estados Unidos deva esmagar os "insurretos" nas ruas defendem, ao mesmo tempo, um fim rápido para o império americano.
Em meio a tanto som e fúria significando perplexidade e paralisia, talvez estejamos atingindo um momento supremo de ironia histórica, no qual a (in)segurança interna dos Estados Unidos está recebendo o golpe de bumerangue não apenas de um dos principais artefatos de autoria de seu próprio Deep State - uma revolução colorida - mas também com o retorno dos elementos combinados de uma trifecta perfeita: Operação FênixOperação Jacarta e Operação Gládio.
Mas os alvos, desta vez, não serão os milhões espalhados por todo o Sul Global. Os alvos serão cidadãos americanos. 
Império volte para casa 
Um bom número de progressistas afirma que o que vem ocorrendo é um levante de massas contra a repressão policial e a opressão do sistema - e que isso, necessariamente, levaria a uma revolução, como a de fevereiro de 1917, na Rússia, que surgiu da escassez de pão em Petrogrado. 
Os protestos contra a brutalidade policial endêmica, portanto, seriam um prelúdio para uma remixagem do Levitem o Pentágono -  e que o interregno logo levaria a um possível confronto com os militares nas ruas.
Mas temos aí um problema. A insurreição, até agora puramente emocional, não gerou uma estrutura política e um líder com credibilidade suficiente para articular a miríade de queixas extremamente complexas. O que temos neste momento é uma insurreição incipiente sob o signo do empobrecimento e da dívida perpétua. 
Aumentado ainda mais a perplexidade, os americanos veem-se agora confrontados com algo que se assemelha ao Vietnã, a El Salvador, às áreas tribais do Paquistão ou à Cidade Sadr, em Bagdá. 
O Iraque desembarcou em Washington DC em traje de gala, com os Blackhawks do Pentágono fazendo "exibições de força" sobre os manifestantes, a bem testada técnica de dispersão usada em incontáveis operações de contra-insurreição" em todo o Sul Global. 
E então, o momento Elvis: o General Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos, patrulhando as ruas do Distrito de Colúmbia. O lobista da Raytheon que hoje preside o Pentágono, Mark Esper, chamou a isso de "dominar o espaço de batalha". 
Bem, depois de levarem um chute na bunda no Afeganistão e no Iraque, e indiretamente na Síria, o domínio de espectro total tem agora que exercer seu domínio em algum lugar. Então, por que não em casa, mesmo?
Tropas da 82ª Divisão Aérea, da 10ª Divisão de Montanha e da 1ª Divisão de Infantaria - que perderam guerras no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e, sim, na Somália - foram movidas para a Base Aérea de Andrews, próxima a Washington.     
O super-falcão Tom Cotton chegou a conclamar a 82ª Divisão Aérea, em um tuíte, para "fazer tudo o que for necessário para restaurar a ordem. Nenhuma piedade para com insurretos, anarquistas, amotinados e saqueadores". Que, certamente, são alvos mais fáceis  que as forças armadas russas, chinesas e iranianas. 
A performance de Milley me faz lembrar John McCain caminhando por Bagdá, em 2007, bem no estilo macho-man, sem capacete, para provar que tudo estava bem. Claro: ele tinha um pequeno exército armado até os dentes como guarda-costas. 
E, para complementar o ângulo do racismo, nunca é bastante lembrar que tanto um presidente branco quanto um presidente negro assinaram permissões para ataques de drones a festas de casamento em áreas tribais do Paquistão.  
Esper deixou bem claro: é bem possível que um exército de ocupação logo venha a "dominar o espaço de batalha" na capital do país e talvez em outros lugares. E o que vem depois? Uma Autoridade Provisória de Coalizão?
Comparada com outras operações semelhantes realizadas por todo o Sul Global, esta não apenas evitará a mudança de regime, mas irá também produzir o efeito desejado pela oligarquia dominante: uma volta do parafuso neofascista. Provando mais uma vez que quando você não tem um Martin Luther King ou um Malcolm X para lutar contra o poder, o poder vai esmagar você, faça você o que fizer. 
O Totalitarismo Invertido 
O grande teórico político Sheldon Wolin, já falecido, já tinha acertado em cheio em um livro que teve sua primeira edição em 2008: trata-se de um Totalitarismo Invertido.
Wolin mostrou que "as formas mais cruas de controle - das  polícias militarizadas à vigilância maciça, e também a polícia no papel de juiz, júri e executor, que agora é a realidade para as classes mais baixas - serão uma realidade para todos nós, caso continuemos a resistir ao contínuo afunilamento do poder e da riqueza para o topo.
"Somos tolerados como cidadãos apenas quando participamos da ilusão de uma democracia participativa. No momento em que nos rebelarmos e nos recusarmos a participar dessa ilusão, o rosto do totalitarismo invertido será muito semelhante ao dos sistemas totalitários do passado", escreveu ele.
Sinclair Lewis (que nunca disse que "quando o fascismo chegar à América, ele virá envolto na bandeira e brandindo uma cruz")  na verdade disse em Não Vai Acontecer Aqui (1935), que os fascistas americanos seriam aqueles que repudiariam a palavra 'fascismo' e pregariam a servidão ao capitalismo no estilo das liberdades constitucionais e tradicionais nativas dos Estados Unidos.”
Então, o fascismo americano, quando acontecer, falará com sotaque americano. 
George Floyd foi a centelha. Em uma reviravolta freudiana, o retorno do recalcado veio à toda, desnudando incontáveis feridas: como a economia política dos Estados Unidos esmagou as classes trabalhadoras, fracassou vergonhosamente na covid-19; sonegou serviços de saúde a preços praticáveis; beneficia uma plutocracia e prospera em um mercado de trabalho racializado, com uma polícia militarizada, guerras imperiais de muitos trilhões de dólares e o socorro financeiro para os que são grandes demais para quebrar. 
Instintivamente, pelo menos, embora de maneira ainda incipiente, milhões de americanos já percebem claramente que, desde a era Reagan, o jogo consiste em uma oligarquia/plutocracia que usa o supremacismo branco como arma para fins de poder político, como o bônus extra de uma transferência de riqueza constante e maciça para o topo.
Um pouco antes dos primeiros protestos pacíficos de Minneapolis, afirmei que as perspectivas realpolitik do mundo pós-lockdown eram sombrias, privilegiando tanto a restauração do neoliberalismo - já em vigor - quanto um neofascismo híbrido.
O Presidente Trump e sua a estas alturas já icônica operação foto com a Bíblia em frente à igreja de St. John - que incluiu cenas de cidadãos sendo atacados com gás lacrimogêneo - levou a encenação a um nível inédito. Trump queria enviar uma mensagem cuidadosamente coreografada a sua base evangélica. Missão cumprida.
Mas pode-se dizer que o sinal (invisível)  mais importante tenha sido o quarto homem em uma das fotos. 
Giorgio Agamben já provou além de qualquer dúvida razoável que o estado de sítio está agora totalmente normalizado no Ocidente. O Procurador-Geral  William Barr pretende agora institucionalizá-lo nos Estados Unidos: ele é o homem com liberdade de manobra suficiente para decretar  um estado de emergência permanente, uma Lei Patriota turbinada com esteroides, contando até mesmo com o apoio "demonstração de força" dos Blackhawk.  -  (Tradução de Patrícia Zimbres - Brasil 247 - Aqui).

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