quarta-feira, 29 de junho de 2016

UM POUCO DE HISTÓRIA: XADREZ DO BREXIT BRASIL


O xadrez da Rainha da Inglaterra e do interino do Jaburu

Por Luis Nassif

A história é repleta de paradoxos. É como uma espiral, sempre dá voltas retornando ao mesmo lugar, mas alguns degraus acima, como dizia o músico e filósofo Koellreutter. Há enormes semelhanças entre as crises das primeiras décadas do século 20 e as atuais, culminando com o Brexit do Reino Unido, a campanha pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, que foi vitoriosa no referendo.
Desde o século 19 há a disputa pelo controle das políticas econômicas nacionais, entre a proposta globalizante – liderada pelo grande capital internacionalizado – e os projetos nacionais.
Esta disputa está na raiz da economia como ciência. De um lado, o pensamento majoritário de crença no mercado, que nasce com Adam Smith, com o mundo racionalmente integrado por economias nacionais, cada qual fundando-se em suas vantagens comparativas.
De outro, o desenvolvimento da economia política, a convicção sobre o papel do Estado nacional para criar a competitividade sistêmica, a partir das ideias do norte-americano Alexander Hamilton, sistematizadas depois pelo economista alemão Friedrick List. Nesse modelo, mercado interno passa a ser tratado como ativo nacional, assim como a proteção das indústrias nascentes, os investimentos estratégicos para conquistar mercados etc.
Na base de tudo, sistemas eleitorais nos quais os dois lados irão vender suas utopias, sobre qual modelo é mais eficiente para levar o bem-estar à maior parte da população eleitora.
Primeiro passo - a integração dos mercados
No século 19, a expansão da economia global, as novas rotas marítimas, a integração continental com as ferrovias, permitiram alguma integração internacional através do comércio.
O passo seguinte foi através dos fluxos de capitais, a primeira articulação efetiva entre países, a partir da coordenação do Banco da Inglaterra, tendo como parceiros os bancos centrais da Europa e dos países periféricos – no caso nosso, do Banco do Brasil cumprindo essas funções.
A cooptação das elites nacionais se dava através de três personagens centrais:
1.      Os capitalistas locais, que já mantinham relações com a banca inglesa.
2.      Economistas portadores das últimas novas da nova ciência, incumbidos de criar a utopia de que a livre circulação de capitais traria a prosperidade geral.
3.      Políticos eleitos, turbinados pelos recursos dos capitalistas e pelas utopias dos economistas.
A globalização viceja fundamentalmente em países democráticos, em que o jogo se decide pela cooptação dos vários agentes de opinião pública: intelectuais, jornais, políticos, advogados.
No meu livro “Os Cabeças de Planilha” detalho melhor esse modelo e a maneira como cooptaram Rui Barbosa, o primeiro Ministro da Fazenda da República.
Com esse pacto instituiu-se o predomínio do capital financeiro, abolindo qualquer forma de controle e regulação de mercados em um longo período que vai das três últimas décadas do século 19 até a Primeira Guerra Mundial.
Permitiu-se a criação de uma gama extraordinária de novas operações de mercado, visando turbinar ainda mais a especulação.
No tempo de Rui Barbosa, já se batizara de “tacadas” as jogadas possíveis com o controle da moeda, do crédito e a liberação do câmbio, que incluíam jogadas em bolsa, concessões ferroviárias escandalosas, operações de crédito com estados e União.
Esse modelo gera uma dinâmica que se espalha por várias economias até implodir o próprio modelo: Força política --> Desregulação de mercado --> Criação de novos instrumentos financeiros --> Geração de bolhas especulativas --> Implosão.
No caso brasileiro, o resultado foi a grande crise cambial do encilhamento, no nascimento da República, que atrasou por trinta anos o desenvolvimento do país.

Segundo passo - O choque de realidade
Aí chega a conta. Sucessivas bolhas especulativas minam as economias nacionais, mas o sistema político não consegue reagir porque, no período de predomínio da financeirização, sufocam-se as alternativas democráticas de mudança de rota.
Os cidadãos são tomados de profundo ceticismo em relação ao modelo político vigente, tanto interna quanto externamente, em relação às instituições multilaterais, em geral criadas para impor o poder do credor sobre os devedores.
As consequências fazem parte da história: Primeira Guerra, marcando o início do fim do modelo; crise de 1929 assinalando seus estertores; as disputas cambiais-comerciais entre nações; o nascimento do comunismo na Rússia (ainda uma economia feudal) e do nazi-fascismo a partir das disputas eleitorais na Alemanha, França e Espanha; a incapacidade da Liga das Nações em arbitrar conflitos nacionais. Na sequência, a consolidação de regimes ditatoriais até o desfecho final na Segunda Grande Guerra.
Os tempos são outros, o desfecho certamente será distinto, mas os sintomas são os mesmos.
Desde 1972, a financeirização passou a comandar as políticas nacionais. A expansão do capitalismo norte-americano turbinou a China, da mesma maneira que o inglês turbinou os Estados Unidos no século 19. Montaram-se os grandes blocos econômicos, abolindo as fronteiras nacionais.
No plano socioeconômico, abriu uma enorme janela de oportunidades, brilhantemente aproveitada pela China e pelos Tigres Asiáticos, relativamente aproveitada pela América Latina.
Países com baixos salários começaram a se industrializar, como chão de fábrica das grandes corporações. E países que não lograram desenvolver uma estratégia eficiente ficaram fora do baile.
Mais que isso, com o avanço das redes sociais e das diversas formas de comunicação global, a expansão do mercado de consumo e dos valores ocidentais, e sua contraposição, nos movimentos fundamentalistas em países de pouca tradição democrática,abrem espaço para um redesenho da geopolítica mundial. Nesse entrechoque de culturas, países inteiros foram destroçados devido ao desmonte de suas instituições. Trocaram uma ordem anacrônica, antidemocrática, pelo caos.
Em fins do século 19, as diversas guerras e crises europeias e do Oriente Médio promoveram um formidável fluxo de migração para os emergentes, beneficiando substancialmente EUA e América do Sul com mão de obra de qualidade superior.
No século 21, o fluxo migratório inverteu, com populações inteiras de nações destroçadas ou que perderam o dinamismo, invadindo o mercado de trabalho dos países centrais, já assolado pelas perdas de direitos, consequência dos ajustes que tiveram que serem feitos para impedir a quebra dos sistemas bancários nacionais.
Os efeitos são visíveis:
1.      Aumento do individualismo e da xenofobia.
2.      Crise dos partidos tradicionais e das instituições internas.
3.      Crescimento dos partidos de direita, estimulados pelas mídias nacionais, que pretenderam cavalgar a onda para ampliar seu poder político, ante as novas formas de comunicação.
É o que explica o referendo britânico.
A integração europeia era defendida pelo establishment político, financeiro, acadêmico. E foi derrotada pelo voto de protesto difuso, no qual se misturaram  a ultradireita xenófoba e a esquerda antiglobalização. Ou seja, a elite perdeu o controle das massas. O regime democrático torna-se disfuncional. E a maneira encontrada para controlar as pressões nacionais – a camisa de força da União Europeia – começa a fazer água.
Os desdobramentos no Brasil
Todos esses episódios têm desdobramentos no Brasil.
De 2008 a 2012 o Brasil se beneficiou da estratégia anticíclica de Lula e da sobrevida da especulação internacional com commodities, que garantiu alguns anos a mais de fartura.
Quando a crise derrubou as cotações de commodities, depois de dois anos de bom governo Dilma perdeu o rumo. Não conseguiu definir uma estratégia econômica, política, ou social, como ocorreu na crise de 2008 com Lula.
A crise derrubou o ânimo nacional e incendiou as ruas, com multidões insufladas pela mídia e compondo uma geleia geral ideológica: contra os impostos e a favor da melhoria da educação e saúde públicas.
A insatisfação foi turbinada pela Lava Jato, pela piora nas expectativas econômicas e pelos problemas com os serviços públicos. Mas não resultou em um conjunto articulado de propostas, encampado por algum partido político ou alguma liderança emergente. Houve apenas a insatisfação generalizada que abriu espaço para a ação descoordenada de grupos oportunistas de diversas espécies, como os grupos de Cunha-Temer, a Lava Jato, a mídia, os mercadistas. E isso em uma quadra da história em que escassearam as figuras referenciais, na política, na Justiça, no MPF, nos partidos e na mídia.
Essa frente entregou o poder de bandeja para uma das organizações mais suspeitas da moderna história política brasileira: o grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Romero Jucá.
A chance de dar certo é próxima de zero, conforme se verá a seguir. 

Um interino vulnerável moral e penalmente


A notícia de Temer recebendo Eduardo Cunha reservadamente no Palácio Jaburu, por si, seria motivo de impedimento de Temer. O presidente interino conversando reservadamente com um parlamentar cujo cargo foi suspenso por suspeita de corrupção, apontado em vários desvios e proibido de frequentar a Câmara, justamente para não conspirar contra a Justiça. Certamente a conversa não girou sobre o Brexit nem sobre a atual campanha do Vasco da Gama. E só foi oficialmente divulgada após os vazamentos sobre o encontro sigiloso.


Para o interino se expor dessa maneira, mostra uma relação nítida de interesses.
A qualquer momento, Temer poderá ser fuzilado por uma das seguintes alternativas:
1.      Uma delação de Cunha ou de outros membros da quadrilha.
2.      Uma denúncia da Procuradoria Geral da República.
3.      Vazamentos de informações pelos jornais e redes sociais.
Será possível ao país conviver com um interino com tais vulnerabilidades, com uma biografia polêmica, uma companhia suspeita e tendo nas mãos a mais poderosa caneta da República? 

Um interino sem dimensão política


Dilma entendeu a dimensão da crise, mas não teve competência para enfrentá-la. Temer sequer logrou um diagnóstico consistente sobre o cenário atual. É surpreendente que, em algum momento de sua vida, criasse fama de intelectual. Suas declarações públicas não conseguem ir além dos ecos da imprensa.
A maneira como se escora em Cristovam Buarque é deprimente. Alardeou aos quatro ventos o grande elogio recebido de Cristovam, que disse que só votaria pela volta de Dilma se ela mantivesse Henrique Meirelles e a equipe econômica. Ou seja, o aggiornamento de Cristovam não foi apenas em relação ao PT, mas à própria social democracia e à função do Estado que um dia fizeram parte de sua biografia.
Cristovam é uma espécie de Eugenio Bucci do Senado, equilibrando-se permanentemente entre extremos através de declarações rasas de um equilibrismo vazio.
A receita da lição de casa – os sacrifícios impostos aos cidadãos - funcionou quando podia se invocar o fantasma da hiperinflação. Qualquer sacrifício seria legítimo, pois todos eles visariam impedir a volta do fantasma.
O momento é outro. Têm-se uma população que experimentou períodos de bonança, conquistou direitos, incluiu-se no mercado e não aceita retrocessos. Para ela, Temer acena com mudanças radicais na Previdência, cortes nos gastos sociais com educação e saúde, aparelhamento da máquina pública com o que de pior a fisiologia política criou, a corrupção endêmica, profundamente enraizada na atuação política do grupo que empalmou o poder.

A democracia sem votos


É nessa sinuca que se desenvolve a tese da democracia sem votos, um sistema controlado pelas corporações públicas, pelo Ministério Público Federal e Tribunais superiores, pelos Tribunais de Contas associados à mídia.
É por aí que se entende a geopolítica norte-americana, de aproximar-se das estruturas dos Ministérios Públicos e Judiciários nacionais. Aliás, como bem lembrou Dilma na entrevista à Pública, a interferência externa não é agente central do golpe, que é fundamentalmente coisa nossa.
Será impossível se aplicar as teses neoliberais a seco. Nem encontrar políticos de discurso claro e vida limpa para conduzir o desmonte do Estado social sem ter o que mostrar pela frente.
Olhando todas essas peças do jogo, há movimentos que tenderão a crescer exponencialmente:
1.      Contra o golpe, ganhará fôlego a tese da constituinte exclusiva para a reforma política, suprapartidária, tendo como bandeira comum a crítica à crise de representatividade do Parlamento e dos partidos.
2.      Como aprimoramento do golpe, inicialmente a tentativa de tucanização de Temer, esbarrando na dinâmica da Lava Jato, de criminalizar também as lideranças tucanas até agora poupadas. Todos fazem parte do mesmo balaio.
3.       Como saída alternativa, o impedimento da chapa Dilma-Temer seguido de eleições indiretas visando consagrar alguém fora da política tradicional para completar o trabalho.
4.       Como lance final, maneiras de inviabilizar as eleições de 2018, pela óbvia impossibilidade de vencer eleições montado na velha lição neoliberal de desmonte das conquistas sociais.

(Fonte: Jornal GGN - aqui).

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