segunda-feira, 13 de junho de 2016

DELAÇÃO NA BERLINDA


Na República dos delatores, a verdade é o que menos interessa

Por Salah H. Khaled Jr.

Dediquei boa parte da minha formação acadêmica ao tema da busca da verdade no processo penal, enfrentado na graduação, mestrado e doutorado, sob a orientação de Aury Lopes Jr. Sustentei que o processo penal deve abrir mão da ambição de verdade, ou seja, que a centralidade do processo penal não deve estar vinculada ao que o julgador define como verdade alcançável – e desejável – com base em sua própria subjetividade. Redefini o regime de verdade do processo penal e defendi que um conceito de verdade como correspondência é absolutamente inadequado para a reconstrução narrativa que é feita pelo juiz, com base em rastros do passado. No entanto, embora tenha proposto um conceito substancialmente distinto do que é rotineiramente empregado pela maioria dos autores que discutem o processo penal, deixei claro que não defendia – como jamais defenderei – uma verdade exilada, isto é, expulsa do sistema processual penal. [i]
São muitas as razões para que a verdade não possa ser inteiramente deixada de lado: princípios como a presunção de inocência e o in dubio pro reo exigem uma concepção de verdade, ou perderiam completamente o sentido, como perderia sentido a ideia de que a carga da prova cabe à acusação. É comum que concepções narrativistas de processo flertem com a insólita ideia de atividade probatória desvinculada de uma conexão com a verdade, como ocorre também – ainda que não de forma tão flagrante – em conceitos como verdade formal e verdade processual. A verdade não pode ser substituída por efeitos retóricos de sedução, como também não basta o mero preenchimento formal de hipóteses legalmente estabelecidas. [ii]
De qualquer modo, não é propriamente essa a discussão que interessa aqui e sim o que a delação premiada representa enquanto manifesto e inaceitável abandono da verdade pelo processo penal. Como já referi em outras oportunidades, o instituto não me agrada por inúmeros motivos. Penso que ele introduz enormes distorções no processo penal e ameaça fazer dele um balcão de negócios. Não vejo como isso possa servir a qualquer propósito nobre, por mais que alguns possam dar ouvidos ao canto da sereia. São muitos os motivos para não ver a delação premiada com bons olhos. Relaciono rapidamente alguns deles:
a) Reforça a conhecida seletividade do sistema penal, uma vez que somente os eventuais autores de crimes complexos terão a possibilidade de fazer delação premiada, que "não é para ladrão de galinhas", como foi inclusive abertamente dito alguns anos atrás.
b) Introduz a lógica de que é preciso prender para obrigar a fazer acordo, tornando a prisão um expediente da própria negociação, de modo semelhante ao corpo objetificado do herege, que era manipulado como coisa pelo inquisidor.
c) Potencialmente pode fazer com que aquele que se recusa a negociar seja transformado em inimigo, visto como obstáculo para a persecução penal e, logo, merecedor de tratamento "diferenciado" no pior sentido do termo.
d) Não existem limites claros para o que é ou não negociável, nem com quem se negocia e com quem não se negocia, o que possibilita uma margem enorme de seletividade, que potencialmente maximiza anomalias como a chamada criminalização seletiva da corrupção.
e) Penas sui generis decorrem da delação, o que é uma verdadeira aberração em nosso sistema penal: é comum que a figura da "prisão domiciliar" seja rotineiramente empregada, novamente demonstrando que somente alguns terão a sorte de não ter que se submeter ao martírio que é nosso sistema penitenciário, apesar de terem praticado crimes de enorme gravidade. 
f) Finalmente, por que confiar na palavra de um delator? Ele é obrigado a dizer o que os negociadores querem ouvir. Se nada tem a dizer, obviamente não tem com o que negociar e, logo, é preciso inventar.
Todas as situações acima demonstram de forma relativamente segura porque é necessário se acautelar contra a crença desmedida nas virtudes da delação premiada. Mas a letra "f" em si mesma conhece seu "ponto fora da curva", que é o que particularmente interessa aqui. Um exemplo demonstra isso claramente: recentemente foi divulgado pela imprensa que "a delação de sócio da OAS trava após ele inocentar Lula". [iii]
É surpreendente que a notícia não tenha provocado maior espanto na comunidade jurídica. Mesmo para um processo como "balcão de negócios" deve existir limites. A margem de discricionariedade que é dada aos negociadores faz das delações em questão um reflexo direto de suas próprias preferências, potencializando práticas punitivas absolutamente sui generis: não só consagram de forma velada um direito penal do autor – voltado para pessoas transformadas em alvos específicos e não para fatos – como elegem uma moldura restrita e previamente definida do que representa a "verdade" desejável. O resultado é claro: somente consumam a barganha mediante o preenchimento do déficit que aparentemente eles mesmos estabelecem. A exigência de correspondência entre o que se deseja ouvir e o que deve ser dito é tão grande que a insuficiência do relato para confirmar a convicção previamente definida do negociador basta para que a oferta seja imediatamente retirada da mesa.
O instituto já conspira para fazer do país uma República de delatores. Todos devem gravar não só o que é dito, como induzir eventuais peixes a comerem a isca, para que eventualmente tenham algo a oferecer no "mercado" caso se tornem potenciais clientes do sistema penal. Isso em si mesmo já seria suficientemente assustador e passível de fazer com que a vida diária se transforme em um exercício constante de paranoia. Mas o que mais impressiona é a guinada que a institucionalização da delação provoca na conexão do processo com a verdade, que ganha uma nova dimensão de sentido: se os inquisidores do passado investigavam a alma do acusado e dela pretendiam extrair sua essência, os atuais engaiolam passarinhos para que cantem em coro uma ópera já ensaiada e que ameaça fazer do eventual acusado um convidado para a filmagem de um roteiro previamente escrito. Ele deixa de ser o ingrediente principal e se torna a cereja do bolo, enquanto a verdade é esquecida, entulhada. Simplesmente não merece atenção e, logo, não desperta maior interesse, já que está fora da moldura.
Vou confessar uma coisa. Sempre detestei dedo-duro. Desde criancinha. Por mais dividida que fosse uma turma, sempre tínhamos um princípio de solidariedade. Ninguém contava quem atirou a bolinha de papel amassado em sala de aula. Essa regra raramente era contrariada. Mas acima de tudo, a professora jamais oferecia nota para que alguém dissesse que foi um aluno específico – do qual por algum motivo ela não gostava – quem atirou a bolinha... e muito menos deixava de dar nota quando o candidato ao prêmio o inocentava. Talvez algo tenha se perdido no meio do caminho. Terá sido a verdade?
Mais do que nunca, Carlos Drummond de Andrade é oportuno:
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Abraços e bom fim de semana!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

REFERÊNCIAS
i Ver KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.
ii Ver KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
....
(Fonte: site Justificando; reproduzido no Jornal GGN - aqui).

Nenhum comentário: