sábado, 5 de fevereiro de 2022

UM MINISTÉRIO PARA A SOLIDÃO

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A solidão extrema é um fenômeno global, com consequências sociais tão profundas quanto preocupantes


Por José Natanson

Para debater sobre um tema tão profundo como a solidão, primeiro é preciso explicar do que estamos falando. Ao contrário da língua inglesa, que distingue a solidão desejada e feliz (solitude) da solidão entendida como isolamento, privação e angústia, ou seja, como a distância entre as interações sociais desejadas e reais (loneliness), em idiomas latinos nós temos apenas uma palavra, abrangendo ambos os significados. É perfeitamente possível desenvolver uma vida plena na solidão: Kierkegaard, irremediavelmente solitário, prescreveu a si mesmo tomar “banhos de gente”, em caminhadas lentas pelas ruas de Copenhague, até voltar à reclusão em casa, para continuar escrevendo. Você pode ficar bem sozinho, ou se sentir solitário quando cercado por outras pessoas. Referimo-nos aqui ao isolamento social indesejado, sofrido e radical, uma epidemia silenciosa que atinge cada vez mais pessoas.

As causas materiais que explicam este drama social passam, antes de tudo, pelos movimentos – sempre silenciosos, mas sempre decisivos – das estruturas demográficas. A expectativa de vida aumentou no Primeiro Mundo e em alguns países de desenvolvimento médio, especialmente nas grandes cidades: na Argentina, por exemplo, passou de 69,5 anos em 1980 para 76,7 anos atualmente. Isso alongou o tempo em que os pais vivem sem os filhos, que pode durar até duas ou três décadas e levar a uma velhice solitária em caso de morte precoce de um dos cônjuges, geralmente o homem – as argentinas vivem em média quatro anos a mais.

Essa tendência a uma “individuação da velhice” também é resultado de mudanças nas subjetividades. Por exemplo, a vontade dos mais velhos de preservar sua autonomia até o fim – pelo menos daqueles que podem pagar –, evitando o asilo ou a convivência desconfortável com filhos já crescidos, que às vezes os tratam com condescendência, ao estilo do avô de “Os Simpsons”, que quando começa a contar uma anedota na mesa da família, só consegue fazer todos irem embora e deixá-lo sozinho com Maggie, presa em sua cadeirinha de bebê. Também pode ser resultado de separações tardias: casais que não ousaram enfrentar o divórcio no passado, quando ainda não era tão comum, e o fazem mais tarde, quando os filhos são emancipados, após décadas e décadas de recriminações acumuladas.

Mas o fenômeno não se limita aos idosos: a porcentagem de jovens e adultos que moram sozinhos também vem aumentando. Entre os principais motivos, podemos citar o atraso na idade da primeira coabitação – a média na cidade de Buenos Aires, entre o início do Século XX e os dias atuais, passou de 27 para 33 anos –, a generalização dos divórcios – em 2020 houve mais divórcios que casamentos em Buenos Aires, pela primeira vez na história – e as transformações no regime de maternidade/paternidade, como o aumento da idade dos pais – a idade média em que as mulheres tiveram o primeiro filho passou de 28 anos em 2000 para 31 atualmente –, a queda da taxa de fecundidade – de 1,87 filhos por mulher em 2000 para 1,54 hoje – e o aumento de pessoas que não têm filhos – 20% das mulheres que moram na capital argentina chegam ao fim de seus anos férteis sem serem mães.

Se a “individuação da velhice” se explica essencialmente por razões demográficas, a da juventude-adulta responde também à mudança da posição da mulher na sociedade, que deixa de se limitar ao papel tradicional de mãe, disputa com os homens o trabalho mercado e muitas vezes opta por priorizar estudos e carreiras profissionais. Além disso, devemos acrescentar as recorrentes crises econômicas – a própria incerteza argentina com relação ao futuro material – que muitas vezes força o adiamento de projetos familiares.

De qualquer forma, cada vez mais pessoas vivem sozinhas. Os domicílios unipessoais passaram de 30% para 35% na Alemanha, de 13% para 23% na Espanha e de 13% para 27% nos Estados Unidos. O fenômeno é reflexo do desenvolvimento: quanto maior o nível de renda, maior o percentual de domicílios unipessoais. No Japão, impressionantes 40% dos lares são habitados por uma única pessoa. Na Argentina, entretanto, passaram de 10% em 2000 para 18% no censo de 2010, com diferenças notáveis dependendo da província: seguindo a lógica descrita, representam 30% na cidade de Buenos Aires e apenas 10% na província de Santiago del Estero, no Noroeste do país.

Um mundo de solitários

Um possível reflexo cultural dessa tendência é o surgimento da “literatura de si mesmo”, que fez da autorreferencialidade e da anedota pessoal um subgênero que parece destinado sobretudo a alimentar a imagem pessoal e exacerbar o narcisismo hiperindividualista das redes sociais – o eu pode ser um protagonista aceitável quando se trata de um gênio torturado, a quem acontecem coisas interessantes (...), mas perde o interesse quando se trata de um jovem de Buenos Aires que briga com a namorada e se muda para um apartamento no bairro de Almagro.

Mas não vamos nos desviar. Dissemos no início que a solidão pode ser um estado desejado e até ideal, e que você pode estar cercado de pessoas e se sentir sozinho. No entanto, deve-se admitir que desde o Gênesis (que destaca que “não é bom que o homem esteja só”), a existência solitária é considerada um estigma. O discurso popular argentino reconhece o drama da solidão radical ao recorrer a um sutil deslocamento verbal: de “estou sozinho” a “sou sozinho”. Na Grécia antiga, a pior punição não era a pena de morte e sim o banimento, o ostracismo.

O mercado já opera pensando nessa enorme massa de solitários. Constrói novos conjuntos habitacionais para eles, gigantescos prédios de apartamentos de um ou dois cômodos com espaços comuns que vão de academias e piscinas a áreas de trabalho compartilhadas, onde os vizinhos podem ir com seus laptops, garantindo um mínimo de contato humano entre eles por dia. Se o impulso ao teletrabalho desencadeado pela pandemia aprofundou ainda mais a tendência à solidão, cancelando a conversa ao lado da máquina de fotocópias, as fofocas durante o almoço, tampouco será uma surpresa o fato de que o mercado oferece imitações: os espaços de coworking, como uma recriação do escritório, esse microcosmo de relações humanas que é o palco principal da série “The Office”, e que hoje constitui uma área em claro declínio – basta dar um passeio pelo centro de Buenos Aires para entender que é um mundo em desaparecimento. Da mesma forma, as mesas compartilhadas dos bares descolados de Palermo remetem às velhas tábuas das antigas tabernas, e confirmam que, embora o comensal possa manter os olhos teimosamente fixos na tela do celular ou do computador, a necessidade de estar com os outros ainda está vigente em algum lugar.

Mas as duas inovações tecnológicas mais notáveis destinadas a combater a solidão indesejada são os robôs e os aplicativos de amigos. No Japão, cerca de 20 milhões de pessoas, a maioria idosas, vivem sozinhas, como resultado do aumento da expectativa de vida (a segunda maior do mundo), da desestruturação do mercado de trabalho e da tendência de jovens casais aproveitarem a teletrabalho para fugir das cidades, onde seus pais ficam. Referência desde a Década de 1980 em automação e robótica, as empresas japonesas oferecem uma ampla gama de robôs que melhoram a vida dos idosos: exoesqueletos que os ajudam a andar, camas inteligentes que incorporam padrões de sono, robôs que propõem jogos de desafio e androides dotados de inteligência artificial, capazes de interação emocional (até certo ponto). Em geral, são pequenos robôs sorridentes que “se expressam” em tom calmo, nunca ameaçador: nada que remeta ao “Exterminador do Futuro” ou que sugira superioridade física.

Os aplicativos de amizade conectam as pessoas de acordo com suas afinidades. O Meetup, por exemplo, propõe eventos e atividades em locais próximos, de acordo com determinados interesses, que podem ir do cinema à gastronomia. Tomando como referência sites de namoro com geolocalização. Aplicativos como o Friender e o Citysocializer possuem filtros que permitem falar apenas com usuários que compartilham os mesmos interesses e gostos, enquanto o Pantook, pensado para pessoas que chegam em uma cidade e não conhecem ninguém, tem um algoritmo de vigilância que detecta qualquer indício de paquera ou flerte, nesse caso não entrega a mensagem e pode até suspender o usuário. Além das implicações sociais e morais desses desenvolvimentos tecnológicos – quem disse que um amigo tem que compartilhar todos os meus gostos? Onde começa e termina a paquera? –, o interessante é que eles não procuram substituir a presença humana, mas encorajá-la.

A cidade solitária

O isolamento social indesejado produz efeitos muito nocivos em quem o sofre, a ponto de a Organização Mundial da Saúde definir a solidão como uma “epidemia contemporânea”: desde a clássica angústia, ansiedade e depressão até distúrbios do sono, baixa autoestima, sistema imunológico comprometido e hábitos problemáticos como o alcoolismo.

O surto do coronavírus agravou esse quadro. Embora o confinamento tenha sido difícil para todos, seu efeito foi particularmente severo para quem, no momento de se declarar em quarentena, morava sozinho: as primeiras tentativas entusiásticas de recriar cenários virtuais de socialização – o jovem que se veste, penteia o cabelo, prepara um drink, apaga as luzes do estúdio e conecta o computador para conhecer outras pessoas em uma festa virtual – rapidamente demonstraram seus limites. A Internet é um avanço formidável, mas não permite olhar um para o outro de perto, beijar ou tocar, sentir a respiração do outro, intuir sua transpiração. A rede ativa apenas alguns sentidos, nivela laços que são conexões, não relacionamentos.

Em editorial recente, o jornal El País alertou para um aumento de suicídios de jovens na Espanha nos últimos dois anos, em grande parte induzidos pelo isolamento, solidão e medo do futuro causados pela pandemia. Não parece ser um acaso que foram os mesmos jovens que, seguindo um instinto mais forte do que qualquer proibição, saíram rapidamente à procura de contacto físico com o outro, indo de aniversários de zoom a festas clandestinas. Caso fosse necessário, o fracasso da virtualização educacional demonstrou a importância da presença nas relações humanas.

Em “A cidade solitária”, um libro que é ao mesmo tempo uma crônica da imersão buscada na solidão e um ensaio de crítica cultural, a autora Olivia Laing sustenta que aqueles que atravessam uma experiência de solidão extrema são mais inclinados a desenvolver uma percepção negativa do mundo. Como se o senso de sociabilidade estivesse atrofiado. Tendem a desenvolver uma hipersensibilidade a ações nocivas ou negativas – um polegar para baixo em uma rede social, um esbarrão involuntário na rua, um olhar estranho no transporte público – e ignorar atitudes amigáveis ou agradáveis, o que gera um círculo vicioso em que a pessoa solitária está cada vez mais imersa em um isolamento suspeito.

A solidão faz parte da angústia social a que nos referimos em outro editorial, um fenômeno generalizado que não se manifesta por meio de uma insurreição popular ou de uma revolução no estilo de dezembro de 2001, mas por meio de milhares de micro histórias de dramas pessoais: pessoas que estouram por dentro. Embora seja impossível verificar essa hipótese nas estatísticas gerais, alguns indicadores – aumento da violência intrafamiliar, aumento do consumo de álcool, dependência de psicotrópicos – sugerem que algo muito profundo está acontecendo.

O isolamento social alimenta esse mal-estar mais amplo, que também se reflete na linguagem da época. A ferocidade das redes, a indignação como o declínio a que se recorre ao menor revés e a intolerância que hoje impera em importantes setores da sociedade falam no fundo de um desconhecimento do outro, de uma recusa teimosa em reconhecer sua legitimidade – e, em um nível mais extremo, até mesmo a sua humanidade. Insistimos que isso não significa dizer que os solitários sejam mais agressivos, ou que as pessoas que vivem sozinhas se comportem de forma diferente daquelas que vivem com outras pessoas. Já esclarecemos que você pode viver sozinho e viver em paz, e ter família ou parceiro e sentir a solidão absoluta. O que queremos levantar aqui, como hipótese para continuar debatendo, é a relação entre a extrema solidão e as tensões das conversas atuais.

Respostas

Desde que Émile Durkheim escreveu “Suicídio”, sabemos que decisões aparentemente muito pessoais – nada é mais pessoal do que o ato desesperado de tirar a própria vida – admitem causas mais gerais: tal é a origem da sociologia moderna. Menos dramático que o suicídio, mas igualmente preocupante, o isolamento que atinge um setor crescente da sociedade não deve ser visto como um agregado de fracassos individuais, mas como uma epidemia – no sentido mais puro do termo, ou seja, um mal que atinge um grande número de pessoas ao mesmo tempo –, a qual merece uma resposta institucional.

Assim que assumiu a chefia do governo britânico, Theresa May anunciou a criação de um Ministério da Solidão, que foi liderado por Tracey Crouch. Esse ministério implantou uma série de políticas voltadas para o enfrentamento do isolamento social, principalmente dos idosos: na época, metade dos britânicos com mais de 75 anos (cerca de 2 milhões) morava sozinha. No Japão, onde os restaurantes oferecem mesas de um só lugar afastadas de casais e grupos para o que eles chamam de ohitori-sama (senhor honrado sozinho), o governo também criou um Ministério da Solidão, preocupado com o aumento de mortes, em total isolamento – é ilustrativo o fato de que existe uma palavra japonesa para definir o fenômeno, “kodokushi”, ou “morte solitária”.

Não são luxos do Primeiro Mundo. Na Argentina, o número de pessoas que moram sozinhas vem aumentando sistematicamente. Embora pouco se fale sobre o assunto, a experiência internacional mostra que o problema pode ser enfrentado por meio de uma série de iniciativas: centros comunitários, batalhões de jovens voluntários que se aproximam dos idosos, oficinas e encontros. São sempre projetos locais, em nível micro, que buscam essencialmente acompanhá-los e mostrar-lhes que a sociedade – e sua manifestação política, o Estado – se interessa por eles, que, em última análise, não estão sozinhos em meio à colmeia febril de vida no Século XXI.  -  (Fonte: Carta Maior - Aqui).

(Publicado originalmente em eldiplo.org).

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