sábado, 26 de fevereiro de 2022

SOBRE DOCUMENTÁRIOS INDICADOS AO OSCAR (II)

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Sobre três dos documentários indicados ao Oscar: 'Writing with Fire', 'Três Canções para Benazir' e 'Audible' - analisados por Carlos Alberto Mattos.


(Writing with Fire)
Heroínas do jornalismo

Ser mulher na Índia não é o melhor destino – eis porque gurus safados vendem ervas para “garantir” uma gravidez de menino. Ser mulher e da casta mais inferior, os dalits ou intocáveis, é nascer já condenada ao inferno em vida. Imagine uma mulher dessa casta se arvorar em ser jornalista. Pois um grupo de destemidas do estado rural de Uttar Pradesh se lançou em 2002 na criação de um jornal feito só por mulheres dalit. O Khabar Lahariya (literalmente “Onda de Notícias”) circula em edição impressa semanal, em site e em canal do Youtube com 550 mil inscritos.

Writing with Fire, dirigido pelo casal de documentaristas Sushmit Ghosh e Rintu Thomas, as acompanhou por cinco anos, entre 2015 e 2020, justamente na fase em que elas estavam migrando para o jornalismo digital. Era um momento desafiante para algumas das repórteres, que não sabiam sequer manejar o básico de um celular, dispositivo que passava a ser sua principal ferramenta de trabalho.

O filme destaca três personagens: Meera, a já experiente chefe de reportagem; Suneeta, repórter indecisa entre seguir a carreira e abandoná-la para casar; e a humilde Shyamkale, em luta contra a insegurança no mundo virtual. Discorrendo sobre a a missão do jornal, Meera pode soar até ingênua no mundo midiático de hoje: “O jornalismo é a essência da democracia. Nós estamos aqui para defender os interesses dos mais fracos e levá-los às autoridades”. E completa com quatro palavras definitivas “O resto é business“.    

As reportagens investigativas do Khabar Lahariya durante o período das filmagens cobriam assuntos arriscados, como estupros de mulheres, trabalhadores mortos em minas ilegais controladas pela máfia e a ascensão eleitoral das milícias do nacionalismo hindu, que ameaçam os direitos das mulheres e perseguem muçulmanos. Com sorrisos em que se veem traços de timidez, ironia e dissimulação, as repórteres enfrentam a indiferença e os olhares de deboche de policiais e políticos.

Em suas casas muito modestas, onde pode faltar até energia para carregar o celular, confrontam também o descrédito e a reprovação dos homens da família. Por trabalharem eventualmente à noite, são confundidas com prostitutas. Apreciadas pelos maridos por terem instrução, ao se casarem devem abandonar o trabalho e se dedicar à casa.

O documentário observa suas saídas em campo, reuniões internas e vivências domésticas. É possível que a presença de uma equipe de cinema, por menor que fosse, tenha alterado bastante o comportamento de certos entrevistados diante dos celulares das repórteres. Ainda assim, é possível estimar a dificuldade que elas encontram para se fazerem respeitar como jornalistas de origem humilde. De resto, senti falta de alguma informação sobre a sustentação técnica e financeira do Khabar Lahariya. Na internet é possível saber que duas ONGs o apoiam: na sua criação, a Nirantar – A Center for Gender and Education e, na atualidade, a Independent and Public-Spirited Media Foundation. 

>> Writing with Fire ainda não chegou ao circuito brasileiro.

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(Três Canções para Benazir)
Pequena história de um sonho


Indicado na categoria de curta documentário e disponível na Netflix, esse filme afegão trabalha bem com a síntese para mostrar um momento definidor na vida de Shaista, jovem habitante de um campo de refugiados nas cercanias de Cabul. Recém-casado, ele prefere se alistar no exército a trabalhar colhendo ópio nos campos de papoula, destino de grande parte da juventude afegã. O pai e os líderes de sua tribo se opõem, tanto pelo ineditismo do fato, quanto por medo de represálias do Talibã (o filme se passa antes da volta destes ao poder).    

Ainda que resuma com eficiência a situação, saltando para uma inesperada mudança quatro anos depois, o filme do casal Elizabeth e Gulistan Mirzaei (radicados atualmente na Califórnia) deixa a impressão de que havia muito mais por contar. A inocência de Shaista e sua mulher Benazir cria momentos cativantes diante da câmera, que vão se contrapor às cenas finais. A abordagem visual é expressiva, embora tudo transpire uma espécie de realidade encenada de maneira a comunicar sucintamente a história de um pequeno sonho em meio às adversidades.

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(Audible)
O Som das convenções 


Também disponível na Netflix, 
Audible (Audível) é o curta doc mais convencional dos três que vi até agora. Baseia-se na fórmula desvantagem-superação/mágoa-reconciliação. Com os ingredientes de praxe: discriminação, bullying, trauma, disputa, resiliência, vitória.      

Amaree tem 17 anos e frequenta uma escola para surdos em Maryland. É o único surdo na família e foi abandonado pelo pai na infância. Como todos na escola, ficou abalado pelo suicídio recente de um colega. Joga no time de futebol americano da escola e paquera uma coleguinha. Há um jogo e um baile importante pela frente, metas absolutas da dramaturgia juvenil estadunidense.

Tudo se desenrola de acordo com um modelo previsível, que não deixa brechas para a realidade atrapalhar o roteiro. A direção de Matthew Oggens, um especialista em filmes sobre esportes, apoia-se em situações quase sempre encenadas e falas diretas para a câmera. O estilo é fortemente sensorial, como de hábito em filmes sobre deficiências auditivas ou visuais. A montagem célere e a edição de som elaborada tentam fornecer na forma o que falta ao filme em termos de material dramático e originalidade.  -  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

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