sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

TODO ADOLESCENTE É UM ALIEN NA SÉRIE 'NADA É O QUE PARECE'

.
"A virtude da série Nada é o que Parece Ser é como articula as questões adolescentes (amor, sexo, identidade etc.), não de uma forma épica (como em Strangers Things ou Super 8), mas lírica: a busca dos aliens é na verdade uma busca interior: afinal, todo adolescente sente-se um alienígena, estranho em sua própria família, escola e no próprio mundo."


Por
Wilson Ferreira

Quando nos deparamos com uma produção audiovisual nórdica sobre adolescentes, temos que prestar melhor atenção. Ao contrário dos congêneres hollywoodianos, centrados em dramas escolares com valentões, bullying e “losers” ansiando pela aceitação no grupo, filmes e séries nórdicas elevam os temas “teens” ao existencial e aos dramas da própria espécie humana. A série Netflix dinamarquesa “Nada É o que Parece Ser” ("Chosen", 2022- ) mantém esse tom ao se filiar ao sub-gênero indie “alt.sci-fi”: os temas da ficção científica são apenas pano de fundo para discutir as questões que cercam a adolescência: identidade, gênero, sexo, autoconhecimento etc. Um meteorito caiu numa pequena cidade há 17 anos e se transformou numa atração turística. Jovens acreditam que tudo é uma conspiração para esconder aliens que ali moram, confundindo-se com humanos. Jovens que encarnam a narrativa mítica de Detetives e Estrangeiros, tanto no cinema quanto na literatura. Afinal, todo adolescente já parece se sentir como um alienígena nesse mundo.

Desde 2012, com o filme sueco Deixe Ela Entrar (no qual a mitologia do vampiro abandonava o imaginário shopping center Crepúsculo para ingressar na rotina da adolescência repleta de ambiguidades e indecisões), as produções audiovisuais nórdicas adolescentes alcançaram a maturidade.

Ao contrário dos seus congêneres hollywoodianos centrados em dramas escolares com dramas envolvendo valentões, bullying e jovens com crises de autoestima por serem “losers” ou impopulares, os dramas tens nórdicos apresentam personagens com dramas que bem poderiam ser adultos – ainda longe da maturidade, vemos jovens confrontando-se com dramas mais existenciais: identidade, pertencimento, auto-conhecimento e sexualidade desenvolvida bem longe do campo da moralidade e culpa.

Porém, ainda mais além, nos últimos anos esses dramas nórdicos ainda transcendem o tema do “demasiado humano” que sempre predominou no cenário audiovisual europeu: dramas derivados da natureza humana egoísta e mesquinha.

Criada pelo trio Jannik Tai Mosholt, Kaspar Munk e Christian Potalivo, a série dinamarquesa Netflix Nada é o que Parece Ser (Chosen, 2022- ) eleva os dramas adolescentes a um subgênero bastante desenvolvido nos últimos anos pelo cinema independente: o psicodrama alt.sci-fi – temas de ficção científica são o pano de fundo ou pretexto para explorar questões existenciais e dos relacionamentos humanos.

Nada é o que Parecer Ser a princípio parece ser um mix de Stranger Things ou Super 8 (um grupo de adolescentes investiga mistérios no limite entre o terror e a ficção científica) com Arquivo X (uma corporação e até o governo acobertando esses mistérios). Porém, a série se filia às produções indies alt.sci-fi como Another Earth, Sound of My Voice, K-Pax ou Horse Girl

Ao elevar a temática adolescente a um drama adulto e existencial, a série desenvolve as questões jovens dentro dos amplos arquétipos gnósticos do Estrangeiro e do Detetive – lembrando aos leitores que, pelo menos no cinema, a constituição da subjetividade contemporânea passa por três narrativas míticas: a do Viajante, do Detetive e do Estrangeiro. Protagonistas da pós-modernidade mas, na verdade, atualizações ou recorrências de antigos mitos compartilhados pelo inconsciente coletivo da espécie. 

Em suas narrativas, em geral, esses protagonistas aparecem como prisioneiros em um universo hostil, estrangeiros dentro do seu próprio país, uma estranha sensação de deslocamento, de não fazer parte de um mundo decadente e corrompido.

Nada é o que Parece Ser é um drama adolescente, mas também um mistério de ficção científica de uma cidade pequena distante, no litoral da Dinamarca. Além dos dramas adolescentes e amadurecimento terem uma relação alquímica com os algoritmos da plataforma de streaming Netflix (facilmente se transmuta em ouro), é um campo vasto para roteiristas desenvolverem o núcleo central dessa conturbada faixa etária: adolescentes experimentam o mundo de forma polarizada: ou são a favor ou contra, ou se tornam crianças radiantes ou replicantes melancólicos.

É um ritual de passagem de ansiedade e revolta, no qual a busca do que você é se confunde em como você deverá se encaixar nos papéis sociais adultos, quando sair da adolescência. E, nesse quebra-cabeças de sentimentos e emoções polarizadas, uma estranha sensação: a de se sentir como um alienígena dentro de uma realidade que obrigatoriamente terá que aceitar – a sensação de que caiu num planeta estranho, ocupado por seres que se dizem nossos pais e amigos.




Uma sensação de alienação que alimenta paranoias, conspirações e um impulso religioso sci-fi: onde está a nave espacial mais próxima para fugir desse planeta?

A Série

Middelbo, uma pequena cidade litorânea dinamarquesa que já teve seus melhores dias quando um pujante estaleiro mantinha a economia local girando. Quando tudo acabou, a salvação veio do céu: há 17 anos a cidade que foi atingida por um meteorito e tornou-se um destino turístico popular, com a cratera e os restos do bólido em exposição ao lado de lojas e um museu com souvenires. 

Porém, um grupo de cinco adolescentes suspeita que esse evento não tenha nada a ver com um meteorito, mas sim uma nave alienígena que caiu na Terra. Tentam descobrir a verdade, enquanto as pessoas da cidade parecem tentar, para eles, esconder o que na verdade aconteceu.

Descobrir o que está acontecendo com a cidade é, para esses jovens, uma analogia perfeita para descobrir o que está acontecendo com elas mesmas. Eles estão felizes com suas pequenas vidas neste lugar minúsculo, ou eles querem mais? Eles são solitários ou querem uma companhia mais saudável? Como seria esse companheirismo? As questões se avolumam na medida em que a investigação e a paranoia evoluem.




O sub-gênero alt.sci-fi sempre foi uma forma de espelhar ou comentar questões da vida real, e com a série dinamarquesa não é diferente. A suspeita de que metade dos habitantes é formada por impostores extraterrestres é encadeada com ideias sobre identidade e pertencimento. 

E sobre uma jovem que não sabe quem ela quer ser, ou mesmo com quem ela quer dormir e fazer sexo. Ela é Emma (Malaika Mosendane), a protagonista que logo conhece e faz amizade com outras pessoas em situações semelhantes, desde a vampira 99% Marie (Andre Heick Gadeberg) até o obsessivo Mads (Albert Rudbeck Lindthardt) e o interesse amoroso impulsivo Frederik (Andreas Dittmer). Eles formam uma gangue investigativa e interessante o suficiente para sustentar seis episódios, 

O elemento da violência e do mistério, decorrentes dos elementos de ficção científica, são introduzidos no segundo episódio por um assustador professor de biologia chamado Hans (Henrik Prip) ganhando força a partir daí – aparentemente Hans queria revelar alguma coisa para sua aluna Emma, até ser assassinado por um misterioso forasteiro com um toque alienígena que chega em Middelbo.

Mads está obcecado com este assunto e acredita que uma empresa chamada Astraeus (que resolve investir na cidade revitalizando o estaleiro decadente) veio para Middelbo por causa dos seres do espaço sideral que ali se ocultam. Enquanto isso, a “vampira” Marie também faz parte do grupo que se apaixona por Emma, juntamente com Frederik também apaixonado pela protagonista. 




O curioso na série é como as investigações parecem um mero pretexto para os jovens discutirem suas próprias questões de descoberta de identidade e gênero. A investigação em si é pueril e inocente: pesquisas no Google e ferramentas como aplicativos, Iphones e redes sociais – nada científico ou preciso, refletindo o estado de espírito adolescente. Afinal, esse é o universo atual dessa faixa etária.

Aliás, os aliens e conspirações de verdade acabam sempre esbarrando no grupo. Justamente nos momentos em que os integrantes estão mais absorvidos em suas discussões de relacionamento internas. São como detetives desajeitados e dispersos, para os quais as provas e evidências é que chegam até eles. E, na medida em que avançam os seis episódios, de forma até brutal e violenta.

Adolescentes como Detetives e Estrangeiros

A virtude da série Nada é o que Parece Ser é como articula as questões adolescentes (amor, sexo, identidade etc.) não de uma forma épica (como em Strangers Things ou Super 8), mas lírica: a busca dos aliens é na verdade uma busca interior: afinal, todo adolescente sente-se um alienígena, estranho em sua própria família, escola e no próprio mundo.

Dessa maneira a narrativa articula os arquétipos contemporâneos do Detetive e do Estrangeiro: o Detetive, aquele que transforma a sensação de estranhamento com esse mundo em mistério que precisa ser desvendado, para sempre descobrir que a solução do enigma passa pelo próprio autoconhecimento; e o Estrangeiro: aquele que não se sente em casa em lugar algum. Procura sempre ou esquecer ou relembrar o seu passado, sua história, o que é. Passa a maior parte do tempo em silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em pedaços.

A figura do Estrangeiro é uma das mais exploradas em diversos gêneros: o personagem que pressente a inautenticidade do mundo onde ele se encontra. Aquele que demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte.

 



O personagem do Estrangeiro é tomado na cinematografia atual tanto no sentido daquele que veio de longe, de outras terras, dimensões ou planetas, como aquele que mantém uma relação de estranhamento e mal-estar onde vive, sentindo-se como um estrangeiro na sua própria família, trabalho ou sociedade.

Portanto, Nada É o que Parece Ser é uma estória de alienígenas, do espaço sideral e da Terra. Sobre o momento da nossa vida no qual a nossa percepção e a sensação de estranhamento são a mais aguçada, até tudo acabar no princípio da realidade adulto.  -  (Fonte: Cinegnose - Aqui).


Ficha Técnica 


Título: Nada é o que Parece Ser

Criadores: Jannik Tai Mosholt, Kaspar Munk, Christian Potalivo

Roteiro:  Kaspar Munk

Elenco:  Malaika Mosendane, Andrea Heick Gaderberg, Andreas Dittmer, Albert Lindhardt, Anders Heinrichsen, Magnus Andersen, Henrik Prip

Produção: Tall and Small, Netflix

Distribuição: Netflix

Ano: 2022-

País: Dinamarca

 

Postagens Relacionadas


Somos todos Viajantes, Detetives e Estrangeiros



O mito do vampiro chega à maturidade no filme “Deixe Ela Entrar”



A trivialização da catástrofe no filme “Sound of My Voice”



O encontro através de um espelho cósmico em “Another Earth”


Nenhum comentário: