Apesar de ser o talentoso autor de inumeráveis canções, só teve um CD gravado, do qual eu tive a alegria de ser a produtora.
Aí vai o relato do que lembro, 27 anos depois da gravação.
Abraço a todos e espero que curtam!
Quando criança, eu ia muito à piscina do Grêmio Náutico Gaúcho, clube cujos sócios eram na sua maioria moradores do bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
Havia um sobrado antigo onde, no andar de cima, ficava o salão de baile. Lembro de, em algumas tardes, subir a escadaria para ver e ouvir uns guris, mais velhos do que eu, que tocavam e cantavam lá.
Adolescente, deixei de ir ao clube.
A vida seguiu: casei, morei no Chile, em Brasília, em Campinas, tive filhos, me separei e voltei a morar em Porto Alegre no início de 1981.
Ao retornar, fiz amizade com o Toneco , que me convidou para fazer vocal num show dele e do Giba Giba. Sempre gostei de música e sempre cantei: nas festas da escola, no orfeão artístico, no coral de câmara, nas festas com os amigos, com os colegas da faculdade de arquitetura, onde tinha chance... Cantar com eles foi a minha porta de entrada para conhecer e fazer amizade com muitos músicos.
E foi assim que fiz amizade com o João. Ele era um grande contador de histórias e eu gostava muito de ouvi-las. Carinhosamente, me chamava de Mariazinha, a princesa portuguesa, e para mim ele era o João das Palmeiras! Pois não é que mais tarde descobri que era ele um daqueles guris que eu via e ouvia no Gaúcho?
Mas, o João era um ser complexo: em um momento era afável, carinhoso, bem-humorado e, no momento seguinte poderia ficar muito irritado e até violento, mesmo com os amigos mais queridos. Acho que tinha consciência disso, já que na letra de “Armadilhas” ele nos diz: “quem me pensa as feridas, se eu agrido os amigos...”.
Se transformava em uma outra pessoa, ficava difícil lidar com ele e o melhor era se afastar até que a crise passasse. Logo passava e os amigos sempre o perdoavam.
Naquele tempo, João morava em um antigo casarão em Teresópolis, na companhia dos músicos Zé Caradípia e dos saudosos Cenair Maicá e Talo Pereira. As portas ficavam sempre abertas para os amigos que se encantavam com suas muitas e lindas composições.
E foi nestas idas à casa dele que Toneco, Glória Oliveira e eu começamos a incentivar o João a gravar suas criações.
O Coordenador de Música da Prefeitura de Porto Alegre era Carlos Branco, meu amigo desde o final dos anos 80 quando eu programava e produzia “O choro é livre” no Theatro São Pedro e quando ele ainda era um baita violonista e um grande “chorão”.
Branco havia criado um projeto com o objetivo de gravar músicos “da antiga” que nunca tinham tido o seu trabalho registrado. O primeiro foi um LP da Banda Municipal do Maestro Macedinho e o segundo ainda estava em aberto. Aproveitei a chance, fiz a proposta, ele aceitou e só faltava convencer o artista.
E não é que o João começou a se entusiasmar? Mas, ainda com um pouco de dúvida porque a prefeitura estava com o PT e ele não gostava dos “barbudinhos”, apesar de ter vários amigos de esquerda, inclusive eu. Expliquei que ele não teria contato com ninguém do governo, a não ser com o Branco. Deu certo, conseguimos que ele aceitasse!
Seriam lançadas mil cópias em CD, não em LP. Não gostei disto, porque naquela época os CD´s ainda eram raros e os CD’s Player muito caros e eu achei que pouca gente teria a chance de ouvir. Mas por sorte, o Branco não me deu bola!
Era início de 1994, João, Toneco e eu começamos a planejar o CD e a estabelecer algumas diretrizes:
- só seriam convidados para participar os intérpretes que já haviam cantado as composições dele (uma pessoa que até ali tinha desconhecido o seu trabalho me procurou e queria cantar. Brigou comigo quando eu disse que não);
- a escolha dos instrumentistas seria feita pelo João e pelo Toneco;
- os arranjos e a produção musical seriam do Toneco. Um belo dia, uma certa pessoa sussurrou no ouvido do João que o Toneco não poderia exercer as duas funções ao mesmo tempo e deixou ele em dúvida. Claro, este alguém queria ser o produtor musical do CD. Conversei com ele, dei um corridão no dito cujo e pronto, assunto resolvido;
- não seria consumida bebida alcoólica durante as gravações (não queria correr o risco daquele outro João aparecer por lá) e inventei que esta era uma exigência dos dirigentes do estúdio;
- todas as gravações seriam feitas à noite. Eu o buscaria em casa para que participasse das gravações e depois o levaria de volta;
- o João não queria cantar, então respeitaríamos a sua vontade e ele não cantaria;
- as fotos para o CD seriam feitas por seu grande amigo Assis Hofmann.
Havia ainda um “pequeno” problema: a verba disponível era mínima e não haveria como pagar cachês. Problema logo resolvido porque TODOS os convidados aceitaram e, mais, se sentiram honrados, porque eram amigos e admiradores do João.
Lembro de um deles, que era militante da antiga ARENA, ter me contado que ficou muito espantado por ter sido convidado para participar, porque a prefeitura estava com o PT.
A gravação seria no estúdio da ISAEC, na época comandada pelo Francisco Aneli, o técnico de som seria o Bozó (hoje Luca Pedregosa e feliz da vida na Itália) e a assistente de estúdio a Daise Dockhorn. Um pessoal muito querido que logo se entusiasmou com o projeto.
Toneco, eu e João escolhemos dezoito músicas, uma pequena amostra de suas inúmeras composições. Cada intérprete cantaria a música que esteve ou estava no seu repertório.
As músicas escolhidas foram: Santuário, Rio do Siriú, No tempo (parceria com Robson Barenho), Ontem, hoje e amanhã, Onde singram e balouçam as canoas d’um pau só, Caminho do Oswaldino (parceria do Zé Caradipía), O trabalho do Milton, Armadilhas, Águas abertas, O orvalho e a rosa (parceria com Mutinho), Outonal (parceria com Ivaldo Roque), A solidão vertical do edifícios Mirante, Girassóis (parceria com Clóvis Alegre que hoje se assina Alegre Corrêa), Moça Litorânea, Samba da Borges (outra parceria com Mutinho), Popa de leque e O calhau.
Isto posto, foi escalado o time de intérpretes e instrumentistas:
Participaram do CD como intérpretes: Fátima Gimenez e sua filha Adriana, Flora Almeida, Glória Oliveira, Josiane Picada, Zé Caradípia e Heleno Gimenez nos vocais.
Os instrumentistas foram: Adão Pinheiro (piano e arranjo da sua faixa), Argos Montenegro (bateria), Beto Bollo (violão), Chico Gomes (flugelhorn) Clóvis Ibañez (harmônica), Evaldo Guedes (contrabaixo acústico), Fernando do Ó (percussão), Geraldo Flach (piano e arranjo da sua faixa), Luiz Carlos Borges (acordeon), Pedro Figueiredo (flauta), Renato Borghetti (gaita ponto), Ricardo Arenhaldt (bateria), Ricardo Pereyra (cello) e Toneco da Costa (produção musical, piano, violão e arranjos).
Entusiasmado, João mudou de ideia e resolveu que também cantaria! Ele cantando foi uma grande surpresa para nós! Era a primeira vez em que entrava num estúdio e gravou como um verdadeiro profissional.
Em junho de 1994 as gravações começaram. O clima foi sempre de muita alegria, com o João felicíssimo na companhia de seus amigos queridos vendo o seu trabalho sendo curtido e valorizado.
Tudo decorreu muito bem, com alguns pequenos percalços, rsrs. Lembro de alguns:
- O contato com o Borghetti foi feito pelo João e quando ele chegou no estúdio não sabia em que músicas participaria (seria em duas, ambas cantadas pelo João). Levou uma gaita ponto que só “tocava” em um determinado tom (não sei se todas eram assim), mas o João já tinha gravado cantando em outro tom. E, para piorar a situação, o Borghetti só poderia gravar naquela noite porque já tinha uma viagem programada.
Foi quando o Bozó lembrou de umas “máquinas” antigas que havia no estúdio, que tinham vindo dos Estados Unidos em 1970, quando o estúdio foi montado pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana. Foi a nossa salvação!
Moral da história: o Borghetti tocaria no tom da sua gaita, mas a tal máquina modificaria o som a ser gravado passando para o tom em que o João cantava. Mas, para complicar um pouco mais, ele tocaria em um tom e nos fones de ouvidos escutaria o João cantando em outro.
Mas, tudo saiu perfeito, com Borghetti improvisando e mais uma vez mostrando ser um grande músico!
- João tinha porte de arma e andava sempre armado. Por isto, combinamos que logo que chegássemos no estúdio ele me entregaria a arma para eu guardar (às vezes levava mais de uma). Quando saíamos do estúdio eu devolvia a arma ou as armas.
Numa noite entrou no carro, me mostrou que tinha trazido um soco inglês e disse que não me entregaria. Tive um chilique, parei o carro e disse que ele podia descer com o seu soco inglês. O coitadinho se assustou com a minha reação e achou que seria melhor me entregar.
- Em uma outra noite, entrou no carro com uma garrafa de vinho e uma taça. Embrabeci, mas não adiantou nada. Chegamos no estúdio e a primeira coisa que ele fez foi encher a taça e beber. Bem nesta hora, entra o Aneli e o João não sabia o que fazer. Ficou completamente sem graça, escondeu a taça e a garrafa e não tomou mais o vinho.
- No final das gravações o estúdio ofereceu um churrasco em sua homenagem. O clima era de seriedade e ele estava bem faceiro. Lá pelas tantas, surgiu aquele outro João e começou a fazer um discurso sobre o exército brasileiro na guerra. Foi se empolgando e o Toneco e eu sabíamos que não ia dar certo. Então, o Toneco, que estava ao lado dele, deu-lhe uma joelhada por baixo da mesa e na mesma hora ele ficou querido de novo.
Agora fico pensando naquela passagem, acontecida em 1967, quando o grupo “Canta Povo”, do qual o João fazia parte, estava pronto para assinar um contrato com a Philips e João brigou com o diretor artístico da gravadora Armando Pittigliani. Quem sabe faltou alguém que desse uma joelhada nele por baixo da mesa?
Pois é, este era o João das Palmeiras, um menino transgressor. Não foi por acaso que durante muitos anos ele era o Joãozinho.
O CD, modéstia à parte, rsrs, ficou muito bonito, fez muito sucesso e os que participaram comentam que se sentem orgulhosos. João ficou feliz e, o mais importante, seu talento foi reconhecido e valorizado.
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